Categorias
Reportagem 95

Mulheres e a pandemia

Precarização, violência e jornada tripla: como a Covid-19 afetou a vida das mulheres

Texto: Daniel Rockenbach (drocken@gmail.com) e Emily Lima (emilyalribeiro@gmail.com)
Curadoria de imagens e Ilustração: Emily Lima


A pandemia da Covid-19 afeta a todos. Ainda assim, é pertinente fazer um recorte e apontar para a condição das mulheres em tempos de isolamento social: jornada de trabalho estressante, cuidados com casa e família, violência doméstica e condições precárias agravam ainda mais a situação.

Para a professora Zaira de Andrade Lopes, docente da graduação e do mestrado em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), a condição da mulher na pandemia precisa ser vista dentro de um contexto social e político historicamente constituído. Segundo ela, o impacto na vida das mulheres tem que ser analisado em três grandes eixos: trabalho, cuidado e violência.

O trabalho feminino tem historicamente uma condição de maior precarização, algo que foi amplificado pela pandemia. Com a Covid-19 ocorreu uma intensificação das atividades atribuídas ao feminino: o trabalho doméstico, o cuidado da família, dos filhos e filhas que estão fora da escola e creches e também dos idosos. O aumento dos índices e a gravidade da violência doméstica somam-se aos outros aspectos para colocar a mulher em uma condição de maior fragilidade. A Covid-19 evidenciou, ainda, a vulnerabilidade das mulheres em se estruturar emocionalmente desenvolvendo sintomas de estresse, ansiedade e depressão.

Quando o trabalho vai para casa

A professora Diana Pilatti é diretora da Escola Estadual José Mamede de Aquino e também escritora. Ela lançou em setembro, em plena pandemia, seu livro “Palavras póstumas”, no qual reúne em forma de poesia relatos de abusos que colheu ao longo dos anos.

Para Diana, o isolamento chegou confuso, sem orientações específicas e qualquer preparo para a nova realidade: “Quando começou a pandemia, era meio surreal a coisa. Eu não tinha muita ideia de como isso me afetaria. Conforme o tempo foi passando, a rotina ficou bastante puxada. Fazer home office e trabalhar em escala é difícil, na minha cabeça esse ‘estar em casa’ é não estar trabalhando”, pontua.

A diretora revela dificuldade em se concentrar e regular os horários, uma vez que as mensagens dos alunos e pais chegam em todos os turnos. A nova rotina exige uma administração do tempo livre: “Isso é mentalmente cansativo, então comecei a me policiar para tentar separar melhor o tempo, tentar fazer um pouco de atividade física em casa, regular o horário, realizar alguma coisa que gosto, ler um livro, assistir um filme. Desligo o celular, mas confesso que desligo com aquele peso na consciência de que se alguém ligar eu preciso atender porque é minha obrigação”.

Sobre o processo de ensino remoto, Diana conclui: “Os professores foram mudando a forma de fazer as atividades, mudando a explicação, porque na escola a gente não recebeu orientações sobre como dar essa aula remota, a gente foi aprendendo fazendo, então foi um laboratório um tanto triste.”

A alternativa do empreendedorismo

Uma alternativa ao trabalho da mulher que tantas vezes se mostra precário e que pode constituir uma fonte de renda é o empreendedorismo. Para se ter uma ideia, segundo dados do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), em 2019, 24 milhões de mulheres empreendiam no Brasil, em comparação a 28 milhões de homens. Mas nem todas escaparam do agravamento da crise com a pandemia. Uma pesquisa realizada pela Rede Mulher Empreendedora (RME) e o Instituto Locomotiva com 1.165 empreendedoras durante a pandemia apontou que a crise significou a interrupção das atividades para 39% dos negócios comandados por mulheres. Outras 47% seguem em funcionamento, mas já sofreram os impactos negativos dos últimos meses. O problema fica ainda mais grave já que para 21% delas toda a renda familiar vem do negócio.

Quando começou a pandemia, era meio surreal a coisa. Eu não tinha muita ideia de como isso me afetaria. Conforme o tempo foi passando, a rotina ficou bastante puxada. Fazer home office e trabalhar em escala é difícil, comenta Diana Pilatti

A pandemia, para algumas mulheres, foi um fator definitivo para que elas entrassem de vez no empreendedorismo. Para visibilizar essas trabalhadoras, o Coletivo Camalote se reuniu em torno de um objetivo: divulgar o trabalho de mulheres artistas, prestadoras de serviços e empreendedoras durante o período da pandemia. Para a acadêmica de Educação Física, poeta, cantora e uma das idealizadoras do projeto, Vitória Mahmoud, a união do coletivo ajuda a propagar assuntos importantes e também a divulgar artistas locais e pequenas empreendedoras: “O principal fator é a valorização da mulher como capaz e independente, o que pouco se prega ainda pela sociedade. Muitas mulheres estão na batalha para que isso seja cada vez mais visto, e que cada vez mais mulheres consigam reconhecer sua força e sua capacidade de conquistar o que é seu”.

Já Thalya Palhares, artista independente, vê que o coletivo feminino consolida sonhos e metas de empreendedoras e artistas. “Podemos acrescentar uma à vida da outra, incentivando e apoiando, ganhando espaço todas juntas e mostrando que sororidade existe sim e que estamos aqui para fazer a diferença e não para competir umas com as outras”.

A realidade de quem cuida

As oportunidades econômicas das mulheres são também prejudicadas pelas responsabilidades predominantemente atribuídas a elas. Historicamente, cuidados e tarefas domésticas, são “coisas de mulher”, uma realidade injusta, cruel e decorrente do patriarcado e do machismo estrutural. Trata-se do que pode ser chamado de “economia do cuidado”. São as mulheres que em geral tomam a frente no planejamento e no gerenciamento da casa e do cotidiano, tentando prever as necessidades de todos e se preocupando com a saúde da família e também pensando no coletivo.

É o caso da bibliotecária aposentada Maria Antonia Cintra que está sozinha em isolamento desde o começo da pandemia, uma vez que suas filhas moram em São Paulo. “Sou do grupo de risco pela idade. Não adoecendo, deixo de ocupar leito em hospital. Quero que a pandemia passe logo.”

Para continuar firme em seus cuidados, Maria Antonia precisou adaptar sua rotina, que mantém alguma semelhança com a vida antes da pandemia, exceto por um ponto: todas as atividades são virtuais. As aulas de yoga, os encontros do grupo de leitura e as reuniões de constelação familiar passaram a utilizar aplicativos e tecnologias que Maria Antônia teve de aprender a usar.

De Thays de Souza Nogueira, a pandemia tirou algo essencial: tempo para lamentar a perda da mãe. A mãe da servidora pública faleceu bem no começo de março, dias antes de tudo mudar na rotina dos campo-grandenses. No dia 15, viria o decreto municipal nº 14.189, o primeiro de uma série de determinações da Prefeitura de Campo Grande que definia regras para isolamento social de atividades com circulação de pessoas. Para ela, o isolamento começou no luto. “Ele chegou em um momento marcante em minha vida: exatamente um mês após a morte da minha mãe. A questão é que eu havia passado por um processo de acompanhamento em uma internação hospitalar. A pandemia deu uma espécie de ‘continuidade virtual’ aos processos dolorosos pelos quais eu havia passado”.

Com a lotação de UTIs ficar em casa, para Thays, tornou-se obrigatório e doloroso: “A obrigatoriedade de me manter na casa onde cresci e voltei a morar com minha mãe fez com que eu tivesse que lidar com sua permanente ausência nos espaços. Não havia mais o respiro das horas diárias passadas no local de trabalho”.

O aspecto que machuca

A psicóloga social Marcia Paulino é coordenadora de projetos da Subsecretaria Municipal da Mulher, órgão responsável pela gestão da Casa da Mulher Brasileira. Seguindo determinação de organizações internacionais do Direito das Mulheres como a ONU Mulheres, a Casa não interrompeu os atendimentos e passou a oferecer alternativas remotas nos casos em que o serviço dependia de outras instituições.
Ela conta que, logo no início da pandemia, a restrição da circulação de pessoas em Campo Grande chegou aos transportes públicos em decreto publicado no dia 18 de março. Isso afetou a procura pelos serviços oferecidos mesmo que a Casa da Mulher Brasileira estivesse com atendimento 24 horas por dia, todos os dias da semana e adotando todos os protocolos de segurança.

Sobre a queda nos atendimentos, Marcia afirma que a expectativa era que a procura aumentasse mas aconteceu o inesperado: uma redução de aproximadamente 40%. O único serviço que apresentou um ligeiro crescimento na procura foi a solicitação de medida protetiva na Vara de violência.

Para a psicóloga, pandemia e isolamento não são causas da violência, são fatores que apenas potencializaram relações conflituosas que já existiam e passaram a ser manifestadas a partir de agressões. “O aumento do tempo de convivência doméstica e a dificuldade de lidar com esses conflitos intensificaram a situação de violência”, pontua.
Entre os casos recebidos, Marcia conta sobre uma mulher que pediu revogação da medida protetiva para que o pai pudesse voltar a comprar comida para os filhos. A respeito dele, a psicóloga observa: “Muitas dessas mulheres trabalham nos serviços informais, sem nenhuma garantia trabalhista e perderam totalmente sua renda durante a pandemia”.

Em 2019, Mato Grosso do Sul registrou cinco casos de feminicídio. Em 2020 já foram registrados oito casos até agosto, um aumento significativo de acordo com a psicóloga: “A violência cresceu com a pandemia e se você procurar em outras plataformas esses dados estatísticos, a maioria vai confirmar os índices”.

O aumento do tempo de convivência doméstica e a dificuldade de lidar com esses conflitos intensificaram a situação de violência, pontua Marcia Paulino

Os números comprovam que a pandemia da Covid-19 agravou a situação. É o que mostra a nota técnica “O Combate à Violência Contra a Mulher (VCM) no Brasil em Época de Covid-19” do Banco Mundial. Registros indicam que nos primeiros dois meses de confinamento ocorreu um aumento de 22% nos casos de feminicídio e de 27% nas denúncias pelo Ligue-180, em comparação ao mesmo período de 2019.

Uma situação delicada

Sobre os casos de violência doméstica na pandemia, a professora Zaira de Andrade Lopes comenta: “Essas violências são decorrentes do maior tempo de convivência com os agressores, da precarização financeira e da insegurança generalizada e, principalmente, pela dificuldade de acesso à rede de proteção para as mulheres.” A violência não tem origem na precarização financeira, mas o contexto da pandemia tem desencadeado uma condição de maior possibilidade das agressões se manifestarem.

A queda dos atendimentos na Casa da Mulher Brasileira tem várias explicações possíveis: “Não é porque as mulheres deixaram de procurá-la que a violência doméstica diminuiu, nós temos uma redução da procura que pode estar associada a fatores como o isolamento, a limitação do transporte coletivo, o fato das crianças estarem em casa, a própria convivência”, afirma Marcia Paulino.

As aulas remotas corroboram os temores: de acordo com a diretora Diana Pilatti, a não presencialidade impede que os professores identifiquem os casos de abuso e violência doméstica: “Como a escola fica na periferia, a gente recebe e atende várias crianças em situação vulnerável, que presenciaram violência doméstica ou sofreram abuso, mas agora nenhum relato chegou”.

A pandemia trouxe luz aos problemas estruturais em uma sociedade patriarcal. A mulher enquanto cidadã se vê diminuída e isso reflete no silêncio nos atendimentos dos serviços de proteção, no desemprego e nas dificuldades em se empreender e no desgaste emocional de ter que dar conta de toda a família.

Por estarem em posições vulneráveis, por conta da sociedade patriarcal e do machismo estrutural que insistem em assombrar e desestabilizar suas conquistas e seus direitos, as mulheres acabam precisando estar sempre em alerta e reinventando-se para que ao menos sobrevivam às crises de forma digna.

Como diria a escritora Simone de Beauvoir: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”