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Reportagem 105

1.4 MILHÃO de mulheres em um puta trabalho

A luta histórica das trabalhadoras sexuais por reconhecimento, dignidade e direitos trabalhistas

Texto: Rafaela Ancel | Rafaela Ribeiro


Ao caminhar pelo centro de Campo Grande, pessoas se cruzam, apressadas para seus compromissos. O comércio não para e os trabalhadores seguem para suas obrigações. Há um trabalho, no entanto, que passa despercebido no meio da vida cotidiana. “Puta”, “garota da vida”, “meretriz”, “destruidora de lares” são algumas das expressões pejorativas carregadas de preconceitos e utilizadas para denominar as profissionais do sexo. A profissão, conhecida como uma das mais antigas do mundo, ainda é tratada com desprezo, mas sustenta milhares de mulheres. 

Desde 2015, pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), profissionais do sexo são reconhecidas pelo Ministério do Trabalho. No documento, os verbetes número 5198 e 5198-05 descrevem como profissionais e trabalhadores do sexo aqueles/as que “buscam programas sexuais; atendem e acompanham clientes. As atividades são exercidas seguindo normas e procedimentos que minimizam a vulnerabilidade da profissão”. Em Formação e Experiência, explica-se que “para o exercício profissional requer-se que os trabalhadores participem de oficinas sobre sexo seguro; o acesso à profissão é restrito aos maiores de dezoito anos”. Ainda assim, dez anos depois, não existe regulamentação da profissão. 

Em 2016, foi aberta uma Ideia Legislativa para a profissão com o objetivo de atingir 20.000 apoios, porém, foram alcançados apenas 45 assinaturas | Foto: Rafaela Ancel

Em 2012, o então deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) propôs um projeto de lei intitulado Lei Gabriela Leite para regulamentar a profissão no Brasil. 

A lei buscava diferenciar prostituição de exploração sexual, além de garantir direitos trabalhistas e previdenciários para as profissionais do sexo, incluindo o registro no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), como autônomas, e acesso à aposentadoria especial. A lei recebeu esse nome em homenagem a Gabriela Leite, prostituta e ativista pioneira pelos direitos das trabalhadoras sexuais, falecida no mesmo ano. O projeto foi protocolado e, em 2025, segue parado no Congresso Nacional. No sentido contrário, este ano, o deputado federal Kim Kataguiri (União-SP) propôs um projeto de lei que criminaliza a prostituição, prevendo prisão simples de 15 dias a três meses para quem praticar o serviço em via pública, além do pagamento de multa. 

Para as mulheres que se prostituem, os desafios trabalhistas são notórios e diários. Falta de garantia à saúde, à segurança, condições adequadas do local de trabalho, licença médica e proteção contra qualquer tipo de discriminação são inexistentes na área. Não há números exatos – e esse é um outro problema importante de ser observado -, a última pesquisa realizada foi em 2013, pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), que contabilizou cerca de 546.848 prostitutas no Brasil.

Em 2025, porém, no dia dois de junho, para celebrar o Dia da Profissional do Sexo, a Fatal Model, plataforma voltada para usuários encontrarem acompanhantes, fez um levantamento de acordo com a quantidade de cadastros e chegou a 1,4 milhão de profissionais. É importante ressaltar que a maioria das mulheres que se denominam como acompanhantes, não se identificam como profissionais do sexo, pois ser acompanhante não significa necessariamente realizar o ato sexual. Algumas apenas trabalham com a venda de conteúdo online, como imagens, vídeos e áudios. O levantamento afirma, ainda, que 58% das mulheres sustentam outras pessoas além de si e estima que o mercado do sexo no Brasil pode movimentar até R$ 5 bilhões por ano.

Por indicação de uma amiga, Letícia começou a trabalhar como garota de programa. Hoje, atende seus clientes a domicílio e esta é sua principal fonte de renda. Ela diz que não sente falta de ter o registro na Carteira de Trabalho e Previdência Social, mas deseja que o acesso a tratamentos voltados à saúde feminina seja mais acessível. “A questão da saúde é super interessante. Uma amiga comentou que tem um [passo a passo], como se fosse um protocolo. Você faz pra se prevenir de todas as doenças [sexualmente transmissíveis], como sífilis… todas as outras milhões de coisas que existem”, ressalta.

“Você é tão bonita, por que não estuda?”

Desde o início na profissão, Leticia recebeu comentários como “você é tão bonita, por que não estuda?” ou “mas você não sente medo?” Porém, a opinião alheia parou de lhe incomodar e o maior preconceito que enfrenta hoje acaba vindo de si mesma. “É diferente. São questões de cobranças pessoais. Por que eu fiz isso? Sabe, aquela coisa que parece que não cumpri tudo que queria. Tenho 30 anos, o que fiz da minha vida? […] Eu tinha medo de me envolver na minha vida pessoal. Que iria chegar num lugar e iriam falar ‘será que aquele cara tá pagando pra ficar com ela?’. Parece que eu chegava nos lugares e as pessoas iriam me olhar, não por estar bem vestida, bonita, ou cheirosa, mas porque sabiam o que eu fazia e eu pensava: ‘gente, mas eu não sou ninguém’”. 

Letícia conta que não tem interesse em trabalhar em casas de show, pois teve contato com uma exposição excessiva dos corpos femininos nos locais | Foto: Rafaela Ancel

Em Campo Grande, a prostitução ainda é um tabu. Um levantamento do Instituto de Pesquisa DataSenado, de 2024, revela que 31% da população de Mato Grosso do Sul se intitula como cidadãos de direita e 38% se define como “nenhum lado”, o que pode resultar em um pensamento conservador predominante. O preconceito com relação à prostituição, muitas vezes, surge de um pensamento conservador relacionado à pureza da mulher e à ideia de que o sexo é algo que deve existir apenas dentro do matrimônio.  

Por conta disso, as trabalhadoras sexuais são vistas como mulheres que não são dignas de respeito e dignidade. “São os próprios conservadores que me procuram. É uma hipocrisia. Se a gente posta na internet falando sobre o assunto, são os primeiros a fazer comentários do tipo ‘vagabundas’, ‘não valem nada’, ‘destruidoras de lares’. Até mulheres falam coisas assim. Eu estou aqui prestando um serviço, quem me procura são eles. Não vou atrás, então por que elas falam tão mal da gente?”, desabafa. 

Letícia sente falta de uma rede de apoio e da união entre as trabalhadoras sexuais na cidade. Ao ficar conhecida, chegou a sentir vontade de lançar um ‘manual’ para ajudar mulheres iniciantes na profissão. “As meninas entraram em contato comigo, no Instagram, pedindo dicas e tirando dúvidas. Já ouvi muitas histórias de meninas que quando assumiram a profissão foram abandonadas pela família. E isso acaba gerando uma solidão, sabe? Como se elas fossem algo contagioso que precisa ficar longe, lá no cantinho”, finaliza.

A luta é coletiva

Em contraste com a capital sul-mato-grossense, a região Sudeste possui grande diversidade de grupos de pesquisas, associações e coletivos que, além da função política, servem como rede de apoio às mulheres que realizam serviços sexuais. Em Minas Gerais, a Articulação Nacional de Profissionais do Sexo (Anprosex), trabalha com projetos em prol da luta pelos direitos trabalhistas de trabalhadoras sexuais. Na capital de São Paulo é ainda mais fácil encontrar pontos populares e históricos, entre dezenas de movimentos sociais. No Rio de Janeiro, entre muitos outros, há o Puta Davida, principal coletivo que acolhe prostitutas desde 1992.

Entre as mulheres que fazem parte do Puta Davida, está Naara Maritza. Pedagoga, com mestrado em Educação Básica, Naara foi prostituta por dez anos e foi com esse dinheiro que pagou a faculdade. Agora, é uma das coordenadoras do coletivo, que conheceu na pandemia, quando uma professora lhe deu o livro de Gabriela Leite. 

Ela conta que no seu último programa sofreu uma violência sexual, que a fez parar com a prostituição e, ao ler o livro, os gatilhos emocionais a fizeram abrir os olhos para uma questão: a prostituição e a política devem andar juntas. “Sempre fui envolvida com política, fui presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE), e sempre achei que estava fazendo uma coisa super errada, que tinha que esconder isso. Com o livro, entendi o lado político e as questões dos direitos humanos. Inclusive, no dia que sofri a violência, não precisava ter passado pelo o que eu passei, sozinha”, ela desabafa.

Naara também explica que após entrar na profissão, sua relação com o gênero masculino começou a ser mais genuína | Foto: Luca Meola

Naara enfatiza que é diferente ser uma mulher negra na prostituição. “É a primeira vez que a gente tem uma liderança negra no coletivo. É lindo, mas é complexo, porque na hora de ir para uma Marie Claire não são as prostitutas negras que vão, né? Primeiro porque elas têm muito mais a perder, então elas não querem se expor. É muito arriscado. Segundo porque a sociedade não tem a mesma empatia com a prostituta negra”. 

Com projetos de leis estagnados e oposições surgindo cada vez mais fortes, as profissionais também se sentem sozinhas na política, e de acordo com ela, independente de esquerda ou direita, ninguém está ao lado das prostitutas. “Ninguém quer se envolver com essa problematica, nem politicos de direita e nem de esquerda, ninguém quer se comprometer. É algo que está sempre ali, todo mundo sabe e todos fingem não ver e jogam para baixo do tapete”, explica.

Ninguém quer se envolver com essa problemática, nem políticos de direita e nem de esquerda, ninguém quer se comprometer. É algo que está sempre ali, todo mundo sabe e todos fingem não ver e jogam para baixo do tapete

Além do apagamento na política, os comentários pejorativos carregados de preconceito são os principais fatores que levam à vitimização da profissão. A história mostra que mulheres cis e transexuais são maioria, e isto está ligado ao sexismo e à transfobia que levam à exclusão social. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), realizou uma pesquisa, em 2020, que aponta que cerca de 90% da população trans no Brasil têm a prostituição como profissão única ou principal fonte de renda, devido a falta de oportunidade de empregos por conta da transfobia. Em 2010, segundo o programa A Liga, 87% das mulheres estavam na prostituição de rua. Porém, existe escolha no trabalho sexual, e isto não pode ser apagado.

Putafeminismo

“Eu gosto muito da palavra puta. Um dia espero que se torne uma palavra bonita, porque você não faz movimento nenhum debaixo da mesa”, advertiu Gabriela Leite em 2010, durante sua campanha eleitoral para o cargo de deputada federal pelo estado do Rio de Janeiro.

Com origem na década de 90, o putafeminismo é um movimento dedicado à luta das trabalhadoras sexuais por direitos e à desconstrução dos estigmas relacionados ao trabalho sexual. O movimento defende que as prostitutas podem ser feministas, lutar pelos seus direitos e que não precisam se envergonhar da profissão. Gabriela Leite foi pioneira no ativismo pelo direito das profissionais do sexo e acreditava que ser prostituta não era motivo de pena ou de ser vista como “vítima”. Para Gabriela, ser prostituta é uma escolha.

Anos após a morte de Gabriela, o movimento voltou a ter destaque nas discussões por meio do lançamento, em 2018, do livro “Putafeminista”, de Monique Prada. A escritora reflete sobre o uso da palavra “puta” e como ela está presente na sociedade, sempre remetendo ao que há de ruim e impuro. Também questiona o apagamento das prostitutas em pauta de feministas liberais e radicais; o moralismo, quando pessoas levantam questões religiosas e tentam separar garotas de programa de outras mulheres; e explica que a prostituição é uma instituição tão antiga e sólida quanto o matrimônio. A autora aborda a aceitação e naturalização do comportamento do homem que paga por sexo, atribuindo isso à “natureza masculina”, ao mesmo tempo em que desumaniza e inferioriza as mulheres que se prostituem. 

Não há dados regionais exatos, mas no Primeiro Encontro Estadual de Mulheres Profissionais do Sexo, realizado em 2004 no Mato Grosso do Sul, há registros da participação de 200 profissionais | Foto: Rafaela Ancel

Os números mostram que o trabalho sexual é uma realidade e milhares de mulheres têm a prostituição como principal ocupação. No entanto, há uma persistência de muitos em se recusarem em o enxergar como profissão, devido aos preconceitos e estigmas enraizados na sociedade. Ainda assim, é inegável a existência das profissionais do sexo, e como todas as mulheres, elas também merecem respeito e dignidade. E tal como em todas as profissões, também merecem ter seus direitos garantidos.