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Opinião 96

O uso exagerado de tecnologia na infância

Texto: Gabriel Neri (gabriel.neri@ufms.br) | Leandra Mergener (lemerg1211@gmail.com
Ilustrações: Bianca Esquivel e SYUNOI (Sara Welter)


Hoje, tem se tornado bastante comum ver dispositivos móveis como smartphones e tablets sendo usados por pessoas de todas as idades. Isso vale desde os mais idosos até os mais jovens. O Brasil, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de 2020, tem mais de um ‘telefone inteligente’ – ou smartphone – por pessoa, totalizando 234 milhões de aparelhos para 213 milhões de habitantes. Desse modo, os dispositivos estão ao alcance de quase toda a população e as crianças não são excluídas. Na ‘correria’ do dia a dia ou na hora de um passeio, é complicado prender a atenção delas por falta de tempo, cansaço após os afazeres ou criatividade dos responsáveis.

Ilustração: Bianca Esquivel

No entanto, os aparelhos eletrônicos não são uma novidade para aqueles que nasceram depois dos anos 1990, a chamada ‘geração Z’. Antes de existirem celulares com aplicativos e jogos, haviam outros dispositivos para ‘distrair’ as crianças. No século XX, as televisões criaram uma programação infantil. Anos depois surgiram os primeiros videogames, como o Super Nintendo, PlayStation, Mega Drive e outros, além dos computadores pessoais com sua diversidade de aplicativos. Todos passaram a ser usados pelos adultos para ocupar o tempo e distrair os mais jovens.

Mas a infância antes dessas tecnologias era marcada mais por brincadeiras motoras, que estimulavam a movimentação. Elas envolviam bolas, carrinhos, bonecas, montagem de peças, entre outras atividades.

Quando as diversões eletrônicas surgem o controle do que a criança consumia estava condicionado aos pais, especialmente com a televisão. Mas conforme a tecnologia evoluiu, passamos a ter menos aparelhos ‘coletivos’ e mais dispositivos pessoais. Além disso, as mudanças econômicas promovidas pelo capitalismo obrigaram os responsáveis a saírem de casa para trabalhar e sustentar a casa. Assim, a tecnologia passa a ter um papel primordial no dia a dia, preenchendo uma lacuna da presença dos pais na vida cotidiana dos mais novos. E mesmo quando reconhecemos a importância de saber usar os novos dispositivos tecnológicos de modo a não ‘parar no tempo’, é preciso pensar e definir limites do uso que não deveriam ser extrapolados.

Atualmente, pela mudança de hábitos, algumas brincadeiras são preteridas em detrimento das telas. Isso é ilustrado em números da AVG Technologies através da pesquisa Digital Series realizada com famílias de todo o mundo em 2016. Ela cita que 76% das crianças de 3 a 5 anos que foram pesquisadas já sabem ligar um computador e/ou um tablet, 73% jogam online, 42% sabem abrir um navegador e 42% sabem usar um smartphone, mas apenas 31% sabem o endereço de casa. Na faixa etária dos 6 aos 9 anos elas se mostram ainda mais integradas ao mundo digital: uma em cada três participa do mundo digital, 15% se comunicam através de algum sistema de mensagens instantâneas e 21% usam o e-mail.

Os efeitos negativos desse exagero precoce podem ser vistos desde cedo com a perda de algumas habilidades cognitivas, isto é, de habilidades de aprender e compreender algo, conforme matéria publicada no portal Drauzio Varella por Mariana Varela, editora-chefe. O uso exagerado pode ser conceituado levando em conta o tempo de interação com os dispositivos. Por exemplo, se a criança fica acordada 15 horas por dia, estuda por quatro, faz suas tarefas por duas, toma banho e faz suas refeições em três e no restante do tempo fica somente ‘mexendo os dedinhos’, o alerta deve ser ligado. Estudo publicado na revista de saúde pediátrica The Lancet Child & Adolescent Health indica que crianças devem ficar no máximo duas horas em frente a uma tela.

Ao analisar a relação entre crianças e tecnologias, o psicólogo norte-americano Jim Taylor, estudioso da tecnologia no desenvolvimento infantil, aponta que a geração atual está menos altruísta, menos preocupada com o outro. “A tecnologia parece minar o desenvolvimento das crianças nesses relacionamentos fundamentais nesta fase de vida”, relata Taylor em entrevista ao site Desenvolvimento do Bebê. Além disso, ele cita que tem havido aumento no individualismo e declínio na empatia entre os jovens porque as crianças ficam mais tempo conectadas aos eletrônicos, ‘esquecendo’ das outras pessoas e do mundo ao redor, ou seja, sendo individualistas por causa da tecnologia.

Outro ponto a ser analisado na interação exagerada com aparelhos eletrônicos são os problemas de saúde que podem decorrer desse uso contínuo e/ou exagerado, como obesidade, sedentarismo, insônia, agressividade, hiperatividade e problemas de atenção segundo a agência do governo britânico Public Health England (PHE). Outros distúrbios, também segundo a PHE, são a depressão, ansiedade e baixa autoestima. Além de doenças que estão surgindo com esse cenário da tecnologia atual, como a que vem sendo chamada de ‘medo de perder’, um tipo de ansiedade social que faz as crianças não se desligarem dos aparelhos, e a ‘demência digital’, que provoca razoável perda nas habilidades cognitivas e da memória.

Ilustração: SYUNOI (Sara Welter)

Portanto, o problema não é a utilização de um dispositivo, mas o exagero. Em um contexto atual de pandemia, onde se passa muito mais tempo em casa, a interação com amigos e família, jogos online, filmes e redes sociais são importantes. No entanto, a Covid-19 só agravou, não sendo o começo e nem o final de nossa relação com esses aparelhos, posto que a vida online tornou-se cultural para jovens, adultos ou idosos. Só que perder o limite da exposição a longo prazo traz prejuízos, especialmente para quem ainda nem conheceu a vida adulta. Os responsáveis por essas crianças devem ter isso em mente ao ver o filho compenetrado somente em ‘mexer os dedinhos’ num aparelho.