Categorias
reportagem 97

É possível salvar o mundo sem ouvi-lo?

Como heróis, o Rei do Pop e lavar roupas podem ajudar a compreender as necessidades do outro

Texto: Anna Gabriela Rozante | Maria Isabel Manvailer | Valesca Silva

Lucas Caldeira em primeiras ações do entrega por SP – Foto: Thainá Ronati / acervo do Instituto Ninho Social

Em 2013, em uma de suas primeiras noites de trabalho voluntário, Lucas Caldeira Brant de Tolentino, um homem branco de 28 anos, alto e morador de Perdizes — bairro de classe média em São Paulo — fazia parte de um um grupo que estava nos subúrbios da capital paulista entregando cobertores para os moradores de rua. O frio intenso e a inexperiência o fizeram jogar uma coberta para um dos mendigos que moravam na região da Cracolândia, virar as costas e sair.
— Lá vai o super-homem, achando que salvou o mundo! Só falta a capa! — gritou o homem.
“Será que foi para mim?”, pensou Lucas. Cruzou então alguns olhares de dúvida com os amigos voluntários, até que se virou:
— Meu senhor, me desculpe, eu não sei se essa mensagem foi pra mim. Mas ela foi dita na minha direção, então…
— Você não perguntou o que eu queria! Me jogou um cobertor e deve estar voltando satisfeito achando que salvou o mundo. Você não perguntou se eu precisava disso. — disse o homem em situação de rua, com indignação.

Naquele momento, passou pela cabeça de Lucas um desejo de voltar para casa, para seu confortável emprego — um montador de estandes de eventos, que viajava pelo país — e nunca mais voltar a fazer aquilo.
— Você conhece o Michael Jackson? — continuou o homem.
“O que esse cara está falando?!”, pensou Lucas. Mas decidiu responder.
— Sim.
— Ah, então você conhece o Moonwalker, não é?
— Conheço.
— Então, você vai fazer o seguinte: vai para onde você veio no Moonwalker. Finge que nada disso aconteceu. Volta aqui e pede licença para entrar na minha casa. Se apresenta, diz quem você é, o que veio fazer, pergunta qual é o meu nome e aí a gente começa a conversar.

“Esse foi o melhor tapa que tomei das ruas”, diz Lucas enquanto relembra seus primeiros passos nos projetos sociais. Atualmente ele é presidente do Instituto Ninho Social, organização que abriga diversos projetos que buscam auxiliar a população empobrecida que mora nas ruas de São Paulo. A ONG atua não apenas em carências como comida, água e higiene, mas em um auxílio individual para o alcance de condições de vida mais dignas.

“Quatro pessoas morreram por causa do frio nesta madrugada”

Era sexta-feira, e durante a noite Lucas não conseguia dormir. Ele vai até o quarto de sua mãe, busca um cobertor e volta para a cama. No café da manhã do dia seguinte Dona Marilena, pergunta:
— Lucas, o que você foi fazer no meu quarto essa noite?
— Ah, mãe, fui pegar um cobertor.
— Mas já não tinha uma coberta no seu quarto? Foi pegar outra? Ah já sei, sua janela estava aberta, não é?
— Não, mãe.
— Então, a porta que estava aberta passando uma corrente de ar?
— Não. Se a porta estivesse aberta, eu fecharia. Estava frio mesmo.

Marilena, mãe de Lucas, participa de ações organizadas pelo filho desde 2013. Foto: Vinicius Gomes / acervo do Instituto Ninho Social

Naquela manhã, propositalmente, Marilena lê em voz alta uma manchete do jornal que diz: “Quatro pessoas morreram por causa do frio nesta madrugada”. Ao ouvi-la, o filho logo entende a intenção da mãe em provocá-lo: Por que eu tenho um cobertor e aquelas pessoas não? O que nos torna tão diferentes? O que eu posso fazer para mudar essa situação?
Dona Marilena tem o costume de levantar questões e não trazer as respostas prontas. “Ela te faz questionar a forma que vê o mundo”, afirma Lucas, dizendo que ela sempre o incentiva a viver realidades diferentes das que está acostumado. 

Hoje, com 38 anos, ele olha para trás e vê que todas essas perguntas, feitas naquela manhã fria de sábado, lhe revelaram uma situação privilegiada por toda a vida. Afinal, quanta facilidade e conforto é ter um quarto com portas e janelas que podem ser fechadas numa noite fria, ou ter uma cama com cobertores suficientes para se esquentar.
Era com os alunos de sua mãe, professora em escolas públicas, que ele — estudante de uma escola particular — mantinha amizades e cultivava relacionamentos na infância. Lucas conta que, nessa época, Marilena convidava as pessoas que passavam por sua casa, pedindo ajuda, para sentar na mesa com a família e comer da mesma comida e em iguais condições.

Com esse modelo de educação, cresceu sendo ensinado a ter uma visão mais humana e menos discriminadora daqueles que viviam em situação de rua. Todos esses aprendizados do passado foram como uma semente plantada para dar bons frutos. Atualmente com 81 anos, Marilena continua se envolvendo em causas sociais e é uma das voluntárias mais ativas nos projetos organizados pelo filho.

Lucas e amigos nas primeiras ações, em 2018 – Foto: acervo do Instituto Ninho Social

“Pare com o seu trabalho e vá para essa causa que te brilha os olhos”

O filho sorridente e a mãe entusiasta são unidos e possuem uma relação muito próxima. Dona Marilena sempre o apoiou em todas as decisões tomadas, inclusive em uma das mais importantes: o momento em que Lucas deixou para trás seu antigo emprego — e a antiga vida — como montador de estandes de eventos para seguir a vocação no ramo social.
Desde criança, ele tinha a necessidade de conversar com todos e não excluir ninguém. Esse princípio surgiu não apenas a partir de sua mãe, mas das experiências que vivenciou, por exemplo, ao trabalhar em um museu de São Paulo reconhecido por sua política de acessibilidade, e que o levou a aprender Libras (Língua Brasileira de Sinais). A partir daí, buscou se aprimorar nos idiomas, dedicando-se ao inglês, francês, espanhol e italiano, a fim de alcançar a todos.

“Eu estava vivendo, vivendo esse caminho da vida de dormir, trabalhar, ganhar dinheiro, seguir e não saber muito bem o que é a vida, ou o porquê de se estar vivo. Hoje eu posso declarar que eu sei porque estou vivo. Eu sei porque estou vivo hoje, nessa vida, como Lucas Caldeira Brant de Tolentino”

Enérgico e vivaz, o que aparenta ser próprio de sua personalidade, organizou um grupo de voluntários para levar kits de comida, roupas, cobertores, água e objetos de higiene pessoal para os moradores de rua da Cracolândia, na cidade de São Paulo. Assim, em 2013 nasceu seu primeiro projeto, o Entrega por SP, que está ativo até os dias atuais e evoluiu para outros como o Projeto Lavanderia, carro-chefe do Instituto Ninho Social e reconhecido internacionalmente pela ONU por oferecer uma estrutura para higienização das roupas doadas e das próprias pessoas que vivem nas ruas.

Voluntários do Projeto Lavanderia já lavaram mais de 20 mil peças de roupa em um único ano – Foto: Cauê Diniz / acervo do Instituto Ninho Social

Toda aquela história de “voltar no Moonwalker” ensinou a Lucas uma lição preciosa: de que não se deve tirar conclusões precipitadas sobre as necessidades de outras pessoas. Desde aquele dia o trabalho se dá indo às ruas — sempre com uma equipe de voluntários — para conversar com as pessoas e perguntar não somente o que precisam, mas para conhecer seus nomes e histórias.

Com os relatos, soube o quão difícil era acessar água para tomar banho, lavar roupas e se higienizar, pois os lugares públicos que oferecem essa necessidade básica, em São Paulo, são escassos. A oportunidade, normalmente, surge pela caridade de um frentista do posto de gasolina na madrugada, que abre a torneira e deixa o morador encher um pequeno balde para se lavar. A partir dessas circunstâncias, despertou-se, então, o desejo de estabelecer um espaço físico com lavanderia e vestiários acessíveis para banhos.

“Não faz sentido eu continuar pedindo para o mundo roupas em bom estado, oferecer essas roupas para quem está em situação de rua e, por falta de acesso a água, elas durarem 10 ou 15 dias e irem para o lixo”

No entanto, ao estudar as possibilidades, Lucas e sua equipe perceberam que a estrutura e os equipamentos que precisavam eram caros e, naquele momento, inacessíveis. Chega então 2020, e com ele a pandemia da Covid-19, que surpreendeu o mundo e fez com que toda a busca por essa realização ficasse estagnada. Foram nessas condições, sem muitos meios para o trabalho social e vendo a situação ruim dos moradores de rua se intensificando, que o Hotel Grand Hyatt entrou em contato com Lucas para oferecer uma parceria.

Voluntários doam objetos após conversarem com pessoas em situação de rua – Foto: acervo do Instituto Ninho Social

Essa colaboração possibilitou que, em sete meses, cinco toneladas de roupas fossem lavadas e mais de mil peças que iriam para o lixo fossem reutilizadas. Isso foi feito a partir de um veículo que passava todos os dias pela região da Cracolândia e recolhia as roupas daqueles com quem os voluntários do projeto mantinham uma relação de amizade individual. No dia seguinte, as peças eram devolvidas, lavadas e secas.

A partir do momento que a parceria com o hotel terminou, o desejo de Lucas passou a ser construir uma estrutura própria para o Instituto Ninho Social. Isso começou a ser feito a partir do valor alcançado no prêmio do programa do Caldeirão do Hulk, na Rede Globo, em abril de 2021. Atualmente, a sede do Ninho possui lavanderia, vestiários, banheiros com chuveiro — inclusive com acesso para deficientes, — sala de apoio psicológico e sala para acolher novas propostas de projetos sociais. Contando com 11 voluntários fixos, possui equipes de trabalho em comunicação e marketing, contabilidade, conselho fiscal, planejamento estratégico e outros projetos de arrecadação de recursos.

Trabalhando com âmbito social e ambiental, a lavagem de roupas proporciona às pessoas novas oportunidades e acessos, possibilitando que as peças durem por mais tempo, além de se preocupar com sua dignidade básica e visibilidade. Desse modo, o grande propósito do Lavanderia é atender pessoas que não tenham as necessidades higiênicas garantidas, compreendendo cada um em sua individualidade por meio do relacionamento.

“Uma pessoa de roupa limpa e banho tomado consegue entrar em um ônibus sem olhares estranhos. Pode entrar no metrô sem ser barrado. Em uma lanchonete para lavar a mão, tendo ou não dinheiro no bolso. Isso são novos acessos, o que é muito importante para as relações das pessoas”

Lucas entende que isso oferece um sentimento de dignidade e autoestima, para que novos lugares sejam ocupados e novas oportunidades acessadas, como uma vaga de trabalho, por exemplo. “Em São Paulo, no Brasil e até na cidade de vocês tem uma linha de raciocínio que é assim: ‘vagabundo, não quer trabalhar’. Fechem os olhos e pensem em uma pessoa em situação de rua. Tem uma série de informações que precede a essa”, diz. Ele se refere aqui a todos os passos e ações necessárias para um trabalhador comum chegar até o emprego, como ter um relógio para acordar cedo, roupas boas para vestir e o próprio acesso à água para realizar sua higiene pessoal.

Equipe de voluntários reunida em uma noite de trabalho do Entrega por SP em 2015 – Foto: acervo do Instituto Ninho Social

SAIBA MAIS

  • Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a partir de dados de 2019, concluiu que o Brasil possui cerca de 222 mil pessoas em situação de rua. O Censo da População em Situação de Rua divulgou que havia 24.344 mil pessoas nessa situação em São Paulo naquele mesmo ano.
  • O Ninho Social é uma organização do terceiro setor criada em 2017. Em 2020, lavou cerca de cinco toneladas de roupa somando mais de 23 mil peças, arrecadou quase 30 mil reais e atendeu mais de 28 pessoas em situação de rua e projetos associados. A sede está localizada na região de Campo Elísios, na capital paulista.
  • O Projeto Lavanderia é campeão do “Creators Awards – Wework 2021” em Nova Iorque, uma competição global reconhecida pela ONU e aberta a empreendedores, artistas e organizações sem fins lucrativos.
  • Para conhecer mais sobre os projetos:
  • Site: Ninho Social
  • Instagram: Ninho Social
  • Instagram: Lavanderia Social