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Opinião 97

Ser artista trans no Brasil é revolucionário

Vitória Martins


Considera-se um ato revolucionário agir para transformar determinada realidade. Podemos citar como exemplos a luta contra a opressão vigente durante a ditadura militar ou o simples fato de existir e ser você mesma em um país que mata e oprime. Ser porta voz das minorias no Brasil machista, racista e transfóbico, é no mínimo audacioso. Não é para qualquer pessoa.

Liniker (esquerda) e Majur. Foto: Thi Santos / Acervo Liniker / Instagram

Pautas de gênero e população LGBTQIA+ tem se mostrado em alta nos últimos anos. Sem dúvida alguma, houve conquistas. No entanto, elas não são suficientes, já que existem inúmeros grupos dentro de uma mesma comunidade, cada qual com sua particularidade e interesses distintos. Dentre os participantes dessa parcela excluída e marginalizada, estão os transgêneros e travestis, vivendo no país que mais mata pessoas trans no mundo.

Fora do contexto branco e hétero cis, as minorias tentam provar o seu valor. Tratados durante décadas como aberrações, hoje esforçam-se para mostrar suas faculdades e se inserir em áreas inimaginadas por eles alguns anos atrás. A vida artística é uma delas. Porém, o intuito não é somente cantar ou atuar. O mais importante é levar a mensagem de que é possível. A Liniker acreditou no seu sonho, e se tornou uma referência na MPB e na música afro-brasileira.

Nascida no ano de 1995 em Araraquara, interior de São Paulo, Liniker foi criada por sua mãe. “Negra, pobre e periférica” é como a artista se refere a si mesma. Dona de uma voz sem igual, obteve sucesso na carreira musical em 2015 com a banda Os Caramelows, após três faixar montadas de modo independente viralizarem na internet, chegando a ter reconhecimento internacional. Assumidamente transsexual, a artista canta sobre amor e atuou em filmes e séries que contribuíram para a representatividade trans. Bixa Travesti (2018) e Manhãs de Setembro (2021) são alguns deles.

Além da voz, a cantora se destaca visualmente. Saia, turbante, bigode e batom fazem parte do seu ‘eu’. Para muitos, isso não significar nada. Já para outros, é o se ver como igual, pois a representatividade em alguém que possui visibilidade tem um peso grande para quem ainda se esconde. É como um grito de reafirmação de existência, ou melhor, resistência.

Em uma entrevista para a Revista Marie Claire em 2019, Liniker comentou sobre a falta de espaço para pessoas trans no mercado profissional: “falta escuta, espaço […] falta estarmos em capa de revista, em série de TV…”.

O mercado possuía um único padrão até pouco tempo atrás, mas as coisas estão mudando, mesmo que aos poucos. Dois anos e seis meses após a entrevista dada pela artista, a cantora Majur, 26, estreia como a primeira mulher trans a ser capa da Vogue Noivas. Baiana, ela ficou conhecida nacionalmente após participar do single ‘AmarElo’, de Emicida, em 2019. E em diversos momentos contou que um encontro com Liniker em 2018 fez com que pudesse acreditar no sonho de se tornar cantora porque viu alguém como ela no palco. Quantas Majur existem por aí?

Ambas são cantoras, mulheres, pretas, transexuais e periféricas. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), em 2020 houve 175 assassinatos de transsexuais, o equivalente a uma morte a cada dois dias. A idade variou de 15 a 29 anos e cerca de 65% delas trabalhavam nas ruas com prostituição. Há ainda uma questão racial aparente: cerca de 78% das vítimas eram negras. São Paulo é o estado que lidera esse ranking brasileiro, seguido de Ceará e Bahia. Liniker e Majur se encaixar no perfil daquelas que foram mortas.

Elas cantam sobre suas respectivas vidas: o amor, a dor e a descoberta do ser. Temos muito a aprender com artistas donas de timbres que – assim como elas – são fortes. Pessoas que se tornaram fortes e que hoje têm carreiras promissoras. Que defendem sua bandeira sem nenhuma vergonha e inspiram suas/seus iguais. Sejam elas negras, periféricas ou transsexuais. Em um país como o nosso, qualquer desejo de fazer a diferença é um ato de coragem.