Bens culturais e históricos são registros identitários de MS que resgatam e reconhecem a história
Texto: Idaicy Solano | Rafael Pereira
Mato Grosso do Sul, com seus 79 municípios e 44 anos de história, é formado por espaços e acontecimentos que marcam suas memórias e seus caminhos até os dias atuais. O território se edifica sob uma diversidade de bens culturais e históricos, desde o Pantanal sul-mato-grossense, passando pelo Forte Coimbra e pelo Casario, desbravando o estado pelos trilhos da Noroeste do Brasil ao som da viola de cocho.
O historiador e coordenador do arquivo público estadual, Douglas Alves da Silva, ressalta a necessidade de se preservar essa memória para as gerações futuras saberem de onde nós viemos e para onde nós vamos. “Para que as próximas gerações tenham acesso à formação da nossa identidade, à formação dos nossos aspectos culturais e de onde eles surgiram”, expressa. A natureza pantaneira, emoldurada por suas serras, grutas, cachoeiras e planícies alagadas é reconhecida internacionalmente pela sua beleza e biodiversidade, e tem assumida a sua necessidade de preservação. O mesmo acontece com a cultura e os costumes de um povo, como indica o livro, publicado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2019, Memórias do Presente “um povo sem conhecimento da sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes”.
O gerente do patrimônio do Estado, Caciano Lima, acrescenta que a cultura faz parte do desenvolvimento pessoal dos indivíduos. Quando falamos de bens culturais e sociedade, falamos de duas vias que se misturam, e se tornam parte uma da outra no sentimento de preservar também a sua própria história. “Ali tem um pouquinho de nós. Conseguimos nos reconhecer como seres humanos a partir do desenvolvimento que ali é perceptível. Quando você preserva um bem [cultural] um pouco de você está lá”, explica Lima. É através desses bens que a sociedade se expressa e compartilha memórias.
Lima entende que há uma forte relação entre a construção de identidade cultural e os patrimônios culturais, ou melhor, bens culturais. “Para você seguir adiante, você precisa saber quem você é. E quando você se reconhece em alguma coisa, tudo se transforma. São esses bens que trazem esse conforto para nós”, conta. Esses bens históricos e culturais manifestam a diversidade da cultura do país. A educação patrimonial serve de referência para entender a construção identitária local. “Ela educa de uma forma que você pega aquele conhecimento que você já detém e melhora ele”, completa Silva.


A história como um bem comum
Segundo os artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988, a noção de patrimônio cultural reconhece a existência de bens culturais de natureza material e imaterial e estabelece formas de preservação como registro e tombamento.
Os bens culturais de natureza imaterial, de acordo com a seção de cultura, incluída na Constituição, dizem respeito “às formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas”. Os bens de natureza material são edificações, paisagens e conjuntos históricos urbanos. A proteção é reconhecida com o tombamento, pelo Decreto-Lei n.º 25 de 30 de novembro de 1937, que visa garantir legalmente a preservação dos bens de interesse cultural para o país.
O bem cultural tem que fazer parte da história da cidade, estado ou país, pois é essa ligação com a identidade local que traz importância ao bem. “Esses dois elementos [registro e tombamento] justificam a proteção desses bens. Normalmente precisamos encontrar motivações históricas, museológicas e talvez arquitetônicas”, explica José Augusto Carvalho dos Santos, chefe da divisão técnica do Iphan/MS.
Um passado reconhecido
Implantada no século XX, a ferrovia Noroeste do Brasil foi inaugurada em 1914. Ela atravessa o interior de São Paulo até chegar na fronteira do Brasil com a Bolívia, na cidade de Corumbá (MS). A ferrovia foi a responsável por impulsionar o desenvolvimento do setor de transporte nacional, facilitando o envio de cargas do litoral para outras partes do país.
A estrada de ferro vigorou até a década de 1990, quando foi decretado o fechamento da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), durante o governo de Fernando Collor (1990-1992). A decisão afetou boa parte dos trilhos localizados no estado, especialmente na cidade de Corumbá.
O tombamento federal foi realizado em três de dezembro de 2009, destacando a importância da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil para o desenvolvimento do Centro-Oeste brasileiro, sobretudo na cidade de Campo Grande, capital do estado.
“No entendimento estadual, o que tinha maior valor era a ferrovia. A capital Campo Grande se tornou o que é por causa dela. Olhamos para todo espaço ferroviário e procuramos localizar um trecho que servisse de referência, foi escolhido [o trecho] de Campo Grande”, explica Santos. Esse bem cultural em particular é protegido em âmbito federal, estadual e municipal, considerando toda sua extensão.
Outro exemplo de reconhecimento está construído às margens do Rio Paraguai, no município de Corumbá. O Casario do Porto é um complexo com 119 edificações de arquitetura eclética em meio a planície pantaneira, tombado em 28 de novembro de 1993. “Você tem ali uma região que guarda uma história muito grande. Ela vai ter toda essa conexão com o passado, então você faz uma viagem no tempo”, explica Silva. É um conjunto arquitetônico histórico, cultural e turístico, que fomenta a educação e a cultura e estimula o emprego e a renda local. “Corumbá e seu Casario por muito tempo ficaram em decadência, até que nos anos 1980 e 1990 começou uma movimentação para recuperação daquele espaço, por parte do governo e posteriormente a participação mais incisiva do Iphan”, pontua Santos. No começo do século XX Corumbá era economicamente fundamental para o estado, pois possuía um dos portos mais importantes do país, que recebia navios de todas as partes do mundo. Por isso, o Casario se consolidou como uma região movimentada e com comércio local rico. Porém a chegada da ferrovia voltou as atenções para Campo Grande.
Ainda em Corumbá, no distrito de Coimbra, implantado no Pantanal sul-mato-grossense, está o Forte Coimbra, o único no Brasil a ter de fato um batismo de fogo. “Quase todas as totalidades dos fortes brasileiros nunca foram usados, no entanto, o forte de Coimbra foi atingido por tiros, invadido, tomado pelo Paraguai e depois retomado; esse tipo de ação é chamado de batismo”, explica Santos.
O local fica nas proximidades da tríplice fronteira entre Brasil, Bolívia e Paraguai. Segundo registrado pelo Iphan, no livro Memórias do Presente, “o forte possui alojamentos para abrigar soldados, salas para o comandante e para a administração, paiol para armazenamento de armas, cadeia, calabouço e uma capela”. Foi o primeiro bem a ser tombado pelo Iphan no estado, no dia 31 de outubro de 1974.
Como único patrimônio cultural imaterial do estado temos a viola de cocho, um instrumento tradicional do povo pantaneiro, registrado no Livro dos Saberes em 2005 e reconhecido pelo Iphan como patrimônio imaterial. Silva explica que a viola de cocho é um elemento cultural com forte presença na fronteira e nas músicas pantaneiras. Sua origem está ligada ao povo pantaneiro e divide raízes com o Estado vizinho, Mato Grosso. “Ela tem uma grande incidência aqui em Corumbá e Ladário, e no caso do Mato Grosso tem uma grande incidência lá em Cuiabá”, resume.
Confeccionada por mestre cururueiros, tradicionalmente a base de madeira chimbuva e com linhas de pesca, o instrumento compõe as melodias que embalam o cururu e o siriri, duas danças típicas da região. Na região Centro-Oeste, o cururu é dançado em homenagem aos santos padroeiros, sendo tradição da festa do banho de São João, nos municípios de Corumbá e Ladário.
Afinal, o que é Mato Grosso do Sul? Para além do estereótipo pantaneiro é o reflexo palpável, visível e sentido da história retratada por cada bem apresentado aqui. Por meio deles entendemos um pouco melhor como se formou e por quais entraves e percalços este estado passou até chegar ao que é hoje, um lugar com identidades reconhecidas.




Mãos que entalham histórias
Intitulado pelo Ministério da Cultura como um Mestre do Saber, Sebastião de Souza Brandão, conhecido também como Seu Sebastião, ainda continua a espalhar seu conhecimento, experiência e história com a viola de cocho dentro e fora do Estado. Instrumento de som singular também reconhecido como bem cultural e imaterial de Mato Grosso do Sul.
Seu Sebastião nos concedeu entrevista por meio de videoconferência, direto da sua casa, localizada na divisa entre as cidades de Corumbá e Ladário/MS, onde também funciona a oficina de viola de cocho. Mesmo com a distância, o entusiasmo e a simplicidade em sua fala mostram a alegria do artesão ao compartilhar seu conhecimento com gerações mais jovens, que tem a missão de preservar e proteger a cultura do estado. “Você não sabe o quanto que eu to feliz agora de saber que eu to explicando isso para uma jovem, que teve o interesse de entrar em uma câmera de celular ao vivo comigo. Muito gratificante”, expressa.
Nascido em berço cururueiro, sua infância foi em meio a rodas de cururu e siriri, onde sempre achava um jeito de tocar junto aos mais velhos e mesmo quando ouvia a repreensão, continuava a dedilhar nota após nota como se fosse uma simples brincadeira de criança.
A sua trajetória vai ao encontro de outro bem de grande importância para o Estado, a Ferrovia Noroeste do Brasil, onde trabalhou por 19 anos e acabou conhecendo grandes nomes do cururu sul-mato-grossense como, por exemplo, o mestre cururueiro Agripino Magalhães Soares. Foi através do trabalho e do conhecimento repassado pelo mestre que o modo de fazer viola de cocho pode ser registrado em 2005, como patrimônio imaterial no “Livro dos Saberes”. Seu Agripino, que estava entre as poucas pessoas aptas a ensinar e a fazer a viola de cocho, morreu de causas naturais em 2020 aos 101 anos.
As lembranças e histórias da época de ferroviário de Seu Sebastião cururueiro se tornaram documentário no Circuito de Nacional de Cinema Itinerante “Revelando Brasis”, através do curta-metragem “O Trem Fantasma e a Viola de Cocho”, que além da participação de Seu Sebastião também foi produzida, editada e dirigida por ele.
Aos 77 anos de idade, ele, que desde menino já mostrava interesse pelo modo de se fazer e usar o instrumento, diz já ter perdido as contas de quantas violas já ganharam forma em suas mãos. Tão cedo não quer largar o ofício que, há décadas, é preservado pela sua família e que hoje faz parte do seu dia a dia. No vídeo abaixo, ele conta o início de sua história com o instrumento.
A viola de cocho é um importante movimento cultural e de forte presença na região pantaneira, tanto no Mato Grosso do Sul quanto no nosso vizinho Mato Grosso. Seja nas tradicionais rodas de cururu e siriri ou nas procissões de São Sebastião; nos batizados aos casamentos, nos dias de festa ou de despedida, sempre haverá alguém a tocar a viola de cocho.
O artesão viaja por todo o Brasil realizando palestras, oficinas e rodas de conversa em parceria com a Fundação Nacional de Artes (FUNARTE), com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e também já é figurinha carimbada em toda edição do Festival América do Sul Pantanal (FASP), ressaltando a importância e a necessidade de se preservar o modo de fazer viola de cocho.
Após se aposentar, foi em sua oficina, fazendo violas de cocho, que ele encontrou seu descanso. Moderno, o mestre cururueiro faz questão de garantir que as violas confeccionadas por ele tenham até amplificador de som. Com sua viola favorita, e corrigindo a postura, ele demonstra seus anos de experiência com o instrumento.

Bens culturais e históricos não tombados/registrados ou em estudo:
- Segundo informações retiradas do site do Governo do Estado de Mato Grosso, o siriri é uma dança folclórica de origem indígena, típica da região pantaneira, marcada por um ritmo contagiante e alegre. Enquanto as moças dançam, os homens fazem a corte, geralmente embalados pela viola de cocho, reco reco e ganzá. No cururu, tocado apenas por homens trajados em suas melhores vestes, existe a presença de improvisos para impressionar e cortejar as moças.
- Em fevereiro de 2022 foi apresentado um projeto de lei que propõe que a música “Boa Tarde, Boa Tarde”, composta pelos primos José Eloy de Magalhães e João Batista Carretoni, em 1969, para o bloco carnavalesco Flor do Abacate, se torne patrimônio cultural de Corumbá.
- Os Bugrinhos da Conceição são esculturas talhadas em madeira e produzidas pela artesã Conceição Freitas da Silva, conhecida como Conceição dos Bugres. Ela é considerada uma das artistas mais importantes do Centro-Oeste, nasceu em Povinho, no Rio Grande do Sul e migrou para o Mato Grosso do Sul, na época ainda Mato Grosso, aos seis anos de idade.
- Em 2021, o tradicional Banho de São João recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. O evento é uma celebração religiosa e festiva que acontece nos dias 23 e 24 de junho nas cidades de Corumbá e Ladário.
Reconhecimento internacional
- Segundo José Augusto Carvalho dos Santos, chefe da divisão técnica do Iphan/MS, o Forte Coimbra juntamente com outras 18 fortificações brasileiras estão na lista para se tornar Patrimônio Material Mundial da Humanidade, que faz parte do Livro de Registros Patrimoniais da Organização das Nações Unidas para a Educação (Unesco). No momento, a fortificação está passando por estudos técnicos e adequações de acordo com as normas da instituição internacional. Um dos pontos de destaque para a colocação do patrimônio na lista é a peculiaridade de ser um dos únicos fortes brasileiros a ter de fato um “batismo de fogo”.
- Em 2000, o Pantanal foi considerado Patrimônio Natural Mundial e Reserva da Biosfera pela Unesco. Consta nos registros do Iphan que as áreas protegidas abrangem os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e compreendem a maior planície alagada do mundo, sendo um dos ecossistemas mais ricos em vida silvestre.
Fonte: IPHAN