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Reportagem 100

A fé em cada um

O Apóstolo Silvio Sandim, o Pastor Lucas Cohen, Frei Cláudio, Pai Geiser e Pai Augusto debatem com os repórteres da 100ª edição os diferentes tabus que transpassam a sociedade, na visão e dogmas de suas próprias religiões

Texto: Gabriel Issagawa | Mariana Piell | Lucas Artur
Imagem: Lucas Artur


Tabu e religião sempre permearam o Projétil. A edição 79, por exemplo, se dedicou unicamente à religião. Já os tabus, estão presentes em todas as edições do jornal, afinal é parte de sua missão discutir temas “controversos” ou que são, muitas vezes, deixados de lado. Sexo e sexualidade, gênero e intolerância religiosa foram os temas escolhidos por nós para esta reportagem.

Tentar compreender o que as principais religiões do Brasil tem a nos falar sobre esses tabus e como enxergam os temas para além de seus templos, foi o que motivou uma ateia, um ex-católico e um candomblecista a desenvolverem esta pauta

Não imaginamos que nossas experiências pessoais fossem se entrelaçar tanto na hora de construir o texto ou na interação com as fontes.

Mariana Piell:

Crédito: Gabriel Issagawa

Nossa entrevista com o apóstolo Silvio Sandim foi a primeira das cinco. Eu fiz questão de chegar depois para não ficar sozinha, cara a cara, com os ideais que durante toda minha vida lutei para me desprender. Cada “puta” que ouvi, cada assédio que sofri sem poder reclamar, cada racismo e homofobia que presenciei ecoavam na minha mente. Tudo feito em nome de um Deus (pra mim, deus) cuja existência não faz sentido pra mim.

Ao chegar na casa de Silvio fui recebida com um café e um guarda-chuva. Na sala, Gabriel e Lucas estavam no sofá e ouviram, aliviados, Silvio falar sobre a minha liderança na entrevista. Apesar dos pesares, eu conhecia o terreno em que estava pisando, a conversa de uma hora e meia que se seguiria a partir dali não poderia me surpreender. Com o pastor Lucas Cohen foi mais tranquilo porque eu sabia que, justamente por ser mais jovem, seus preconceitos seriam apenas isso – preconceitos – sem a desculpa geracional de que no seu tempo era tudo diferente.

Toda a experiência forçada que tive na bolha evangélica me fizeram ler as entrelinhas e entender os papos sobre anjos e querubins de Silvio, a referência à “dominação mundial” do Islã mencionada por Lucas e os laços entre protestantes e o judaísmo percebidos em ambos.

Lucas Artur:

Crédito: Fernanda Monteiro.

Criado na Católica, sempre me ensinaram a como me portar dentro de uma igreja. Sinal da cruz ao entrar, nada de chapelaria, sempre entrar pela porta da frente, me curvar diante do altar… Mesmo não frequentando mais a igreja há três anos, quando atravessei a rua tirei o chapéu. Antes de passar pelo portão de entrada, me curvei e fiz o sinal da cruz.

Gabriel não parecia confortável em estar em frente ao Cláudio, disse que já tinha falado com a secretária e que o Frei não parecia ser muito aberto, cara de bravo e sério. Não me intimidei. Crescer dentro de uma igreja me ensinou que padres não são um monstro de sete cabeças. Nessa entrevista fui eu quem guiou a conversa, diferentemente das outras, em que fui o fotógrafo. O Frei usava roupas simples em uma sala cheia de imagens e símbolos religiosos, a igreja era a maior e mais robusta dos templos que visitamos.

Curvei-me e fiz o sinal da cruz ao adentrar a igreja. Expliquei ao Gabriel que não se entra pela porta lateral. Mesmo depois de anos, aquele ambiente ainda me era muitíssimo familiar, como uma segunda casa. Gabriel, parecia perdido.

Gabriel Issagawa:

Crédito: Mariana Piell.

Fui o primeiro a chegar no terreiro, estava em casa, era dia de gira de marujo, baiano e boiadeiro e como filho já pensei de forma espiritual. “Xetro, marrumbaxetro! Xetruá, Boiadeiro”, saudação que significa “braços fortes, pulsos firmes”. O babalorixá ou Pai de Santo Geiser estava jogando búzios e eu seria o próximo a descobrir como andam meus caminhos pessoais e profissionais. No meio do jogo meus dois parceiros de reportagem chegaram, meio perdidos e sem certeza se era a casa de axé. Fui até eles e disse para se sentirem à vontade que logo iniciamos a entrevista. Voltei para o “ifá”, que na tradução significa comunicação divina transmitida por meio da oralidade.

“Seu retorno é daqui 15 dias meu filho, faça os banhos e depois iremos fazer o ebó,” assim se encerrou a sessão e o Pai puxou uma cadeira para dar a entrevista, acendeu um cigarro e pegou uma xícara de chá e iniciamos. Ao ser questionado sobre o que é Exu, o líder do terreiro respondeu de forma sorridente: “Exu é caminho, Exu é abertura, Exu é tudo na vida é a entidade mais próxima do ser humano, é a boca que tudo come e coloca as energias em ação. Laroyê!”.

Amor é cristão, sexo é pagão
À esquerda: o Apóstolo Silvio Sandim. 60 anos. Ministra há 30 anos. Pastor na igreja Ministério Effraim. Hospitaleiro e empolgado com a entrevista.
À direita: Pastor Lucas Cohen, 29 anos. Criado na Igreja Batista, começou sua jornada como missionário e atua no Ministério El Elion.
Créditos: Lucas Artur.

As denominações cristãs enxergam que o sexo é algo natural, prazeroso e fundamental à vida do casal, composto por um homem e uma mulher. A Igreja Católica até fala que o sexo é uma celebração entre ambos. Sem o casamento, porém, é um pecado. Já no Candomblé, não existe o conceito de pecado, então o sexo fora do matrimônio é aceito. “Sexo é escolha, partindo de um princípio de segurança e preservação ao seu corpo, a sua integridade e a sua saúde”, explica Pai Geiser, que acrescenta que se deve respeitar preceitos específicos a certos rituais. “Pro povo Iorubá o sexo é sagrado”, adiciona Pai Augusto, e não é visto como tabu.

Mas se há sexo, como se faz a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis e gestações indesejadas? Para as igrejas evangélicas, o uso de camisinha e outros métodos contraceptivos, como DIU (Dispositivo Intrauterino) e pílulas anticoncepcionais, é aconselhado e encorajado. Independente do método, entende-se que esses meios antecedem a concepção. O Apóstolo Sandim conta que ministrou cursos para casais recém unidos sobre sexo no entendimento religioso e métodos contraceptivos.

Já a Igreja Católica, aborda os contraceptivos de forma diferente. Para ela, são aceitos os métodos que sejam “não abortivos”. Métodos de barreira, como a camisinha, são aconselhados. Os métodos hormonais, como a pílula anticoncepcional e o DIU, são vistos como abortivos, pois a Igreja entende que eles funcionam após a fecundação do óvulo. Vale lembrar que o Ministério da Saúde e a Organização Mundial da Saúde explicam que eles impedem a fecundação.

O Pai Augusto fala que o Candomblé cuida da parte espiritual, métodos anticoncepcionais são uma questão pessoal ‒ algo entre o indivíduo e o especialista. “‘Não quer ter filho’, logo use camisinha porque foi dado pela sociedade”, indica Pai Geiser, que critica a noção de sexo só depois do casamento. “Namorar, casar sem transar, e depois eu transo e vejo que não é nada disso. Não tem química, não rolou compatibilidade, mas eu tenho que ficar em nome de algo, seja quem for. Seja Deus, seja santo, seja orixá”.

No cristianismo, a relação sexual entre pessoas do mesmo sexo é vista como um pecado, um ato contra as leis naturais

“‘Não está fazendo mal a ninguém, só a eles mesmos’, já é uma relação que já é perigosa, já é contra a natureza. Até porque, a parte íntima que se usa pra fazer isso, não foi feita pra isso”, explica o Pastor Lucas. O Frei Cláudio explica que a Igreja Católica possui vários debates envolvendo a sexualidade e há opiniões diversas no próprio Vaticano. “O Papa Francisco falou que não cabe a ninguém julgar ninguém”, comenta. Ele discorre que a sociedade trata a população LGBTQIA+ de maneira hostil e discriminatória e que deve haver mais diálogo, mas frisa que a união homoafetiva não está prevista nas escrituras, portanto, a igreja não aceita.

Está, contudo, autorizado no Candomblé. “É casamento. Como a gente acredita no amor e na sua pluralidade, é uma união de afetos, de escolha. Um escolheu viver com o outro, é isso que tem que seguir, não tem distinção”, explica Pai Geiser. “O que mais tem no Candomblé são pessoas homoafetivas”, acrescenta Pai Augusto.

Se eu quiser falar com Deus
À esquerda: Pai Geiser, 34 anos. Há 20 anos faz parte do Candomblé e há 7 anos é pai de santo.
À direita: Pai Augusto, 32 anos. Desde a barriga da mãe no Candomblé. Ao contrário da crença popular, usava roupas coloridas e desmentiu a ideia de “pai de santo em branco”.
Créditos: Lucas Artur.

Até 2022, o Disque 100 recebia, em média, três denúncias de intolerância religiosa por dia e naquele ano teve um aumento de 106% de acordo com a central, sendo as religiões mais atacadas as de matrizes africanas. Mas o que falam os pastores, padre, e pais de santo?

Durante a entrevista com Sandim, questionamos qual seria a diferença entre incorporar o espírito santo e um orixá e sua resposta foi incisiva. “É demônio, as batidas da Umbanda e do Candomblé estão fora da palavra de Deus, eles se conduzem numa prática fora do preceito cristão”. Na visão do pastor, a Quimbanda deveria ser punida dentro da lei penal, já que na sua lógica ela prejudica as pessoas. Para ele, a prática cristã deve ser de amor pleno.

Seguindo a linha, está o Frei Cláudio ao ser perguntado sobre intolerância. “Temos que respeitar todo mundo, vai contra o que a gente prega, mas não aceitamos nenhum tipo de preconceito”, já Pai Geiser acrescenta que o terreiro é para qualquer pessoa.“Candomblé é para todos, orixá é para todos, aqui pode pisar pastor, padre, freira, pois é uma religião de acolhimento”.

Pai Augusto tem um terreiro no Bairro Jacy, em Campo Grande. As batucadas do tambor e as cantigas em Iorubá, uma língua nigero-congolesa, incomodam a vizinhança, que tem um forte preconceito com sua religião. “Tenho um vizinho que nunca me deu bom dia e nem boa tarde, quando tem função aqui na casa ele coloca o som na camionete dele no último”. Questionamos se ele já fez alguma denúncia e ele negou. “Eu não posso parar meu ritual que tem importância, que tem material, que envolve dinheiro para combater intolerante”, mas ele diz que pretende denunciar. Há quem diga que religião e política não se misturam, ocupar um espaço é também lutar pela existência dele.

“Enxergo o terreiro como um espaço político, de luta pelos nossos direitos de existir, a gente acolhe pessoas e ajudamos no que for possível, damos nosso axé”, completa.

No Brasil, foi criado no dia 21 de janeiro de 2000, pelo governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o dia de combate à intolerância religiosa após a morte da Mãe de Santo Gilda dos Santos

Nascidas para servir
Frei Cláudio, 69 anos. Vindo de família italiana e católica, já soma mais de 40 anos de sacerdócio.
Crédito: Lucas Artur.

“E Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou ; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou, e disse: frutificai e multiplicai-vos” (Gênesis 1:27). Essa é a primeira menção da mulher na Bíblia, no relato do sexto dia da criação do mundo. A segunda menção aparece em Gênesis, onde é narrada a criação da mulher a partir da costela de Adão. A primeira narrativa é atribuída à Lilith, que segundo a história conhecida, teria sido expulsa do Paraíso por se negar a estar em posição de inferioridade perante Adão. Eva, então, é criada a partir do corpo do homem e, dessa forma, estaria inferiorizada e subordinada ao homem.

O Pastor Lucas é crítico às igrejas que não consagram mulheres como pastoras. “Eu tenho um embate muito grande com igrejas que não tem reconhecimento de pastoras. Aqui na El Elion a minha esposa pastoreia junto comigo e ela tem a equipe de mulheres dela. Para mim, o papel da mulher é de cinquenta por cento na igreja”, explica. “Todo homem que tem uma dificuldade de reconhecer a liderança da mulher, na verdade tem medo de todo mundo perceber que ele é irrelevante”, opina.

Já o Apóstolo Sandim exemplifica uma liderança feminina dos tempos antigos. “Na nossa igreja, entendemos que a mulher tem o mesmo acesso que o homem ao cargo pastoral, pois vemos isso na teologia bíblica e também na história, como Débora, há mais de três mil anos atrás em Israel. Embora naquela época a mulher não tivesse o mesmo acesso e empoderamento que tem hoje, ela já estava desempenhando um papel importante”, contextualiza o pastor.

No candomblé a figura feminina é tida com grande importância. “O papel da mulher dentro do candomblé é tudo. A mulher é começo, meio e fim. A mulher no candomblé tem voz, a mulher no candomblé representa pra gente a continuidade”, afirma Pai Geiser. O candomblé, além de valorizar as mulheres, é um espaço de aprendizado para os homens. “Dentro do Candomblé, quando a pessoa chega ela aprende a reverenciar, porque o seu pai é quem cuida da sua vida espiritual, ou a sua mãe”, explica Pai Augusto.

Já na Igreja Católica, as mulheres estão longe de conquistar a equidade. “Hoje, cada vez mais, há uma abertura e a gente espera que no futuro seja maior ainda a ação da mulher na igreja”, conta esperançoso Padre Cláudio.

Oxalá. Axé. Amém. Namastê. Insh’Allah.