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Reportagem 101

Uma chance para viver

Da descoberta à recepção, a história de pessoas que reviveram a partir de uma doação. Transplante de órgãos em Mato Grosso do Sul tem obstáculos, mas resiste

Texto: João Pedro Buchara | Lizandra Rocha
Infografia: Gabriella Couto


De estatura média, cabelos longos e pretos, a estudante de Contabilidade Kátia Silva Rocha teve planos interrompidos ao ser diagnosticada com insuficiência renal em 2020. “Foi difícil. Pensei que tudo tinha acabado.” Os primeiros sinais da doença apareceram com o ganho de peso e inchaços nos pés, rosto, pálpebras, dores de cabeça e tonturas, que a fizeram suspeitar do problema.

Foto: Santa Casa de CG / Divulgação

No atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) descobriu que estava com insuficiência renal em estágio cinco e com apenas 10% de funcionamento de um dos rins. “Não estava acreditando no resultado do exame e questionei o médico do porquê estar com a doença se urinava normal?”. Engana-se quem pensa que a insuficiência renal ocorre somente quando o indivíduo para de urinar.

Existem duas condições da doença. A aguda, que pode ser revertida a base de medicamentos e a crônica, que necessita da realização do transplante, mas também tem reversão. Fatores como pressão alta e diabetes contribuem para o surgimento da doença, que no caso de Kátia, já era crônica e autoimune. “Nunca imaginei essa situação de um dia precisar fazer hemodiálise, entrar em uma fila de transplante e esperar por um órgão compatível. Eu tinha que aceitar, mas a verdade é que até hoje não aceito.”

O pensamento de que morreria naquele mesmo ano era constante, pois seria impossível sobreviver com apenas 10% dos rins funcionais, exceto pela hemodiálise, seu maior medo. O emocional ficou fragilizado devido a redução de alimentos e líquidos, junto ao uso constante de medicamentos sugeridos pelo médico. Em meio à dificuldade, sua irmã, Dalila, a ajudou a enfrentar a situação e não a deixou desistir. A partir desta conversa, seus pensamentos mudaram e uma nova perspectiva tomou conta.

Depois de cinco meses de acompanhamento com um urologista na Santa Casa, a hemodiálise iniciou em agosto. O rim que estava com 10% de funcionamento, agora ficou com apenas 6% e, para sobreviver, precisava do auxílio de uma máquina que funciona como um rim artificial que filtra o sangue por meio do uso de um acesso capilar, retirando líquidos e toxinas do órgão três vezes na semana durante quatro horas.

Um cateter foi colocado no pescoço por 41 dias. Depois, Kátia realizou a cirurgia da fístula arteriovenosa (FAV), que é a junção da veia com a artéria no antebraço esquerdo onde ficaram duas agulhas de grossos calibres 16g. Esse procedimento serve para a pessoa suportar as quatro horas de hemodiálise e não causar danos à estrutura das veias, que podem arrebentar.

A perda de nutrientes ocasionados pela hemodiálise fez com que emagrecesse e precisasse tomar o suplemento apropriado para renais crônicos. “Por ele ser caro, tive que entrar na Defensoria Pública para conseguir e depois que comecei a usá-lo passei menos mal e fui ganhando peso.” Além das complicações, a fístula causou dilatações nas veias chamadas aneurismas venosos.

O tão sonhado momento

Em janeiro de 2023, o telefone tocou às 7h da manhã de uma terça-feira. A ligação da Santa Casa foi para informar que conseguiram um rim compatível com Kátia. “Quando escutei da enfermeira, não acreditei. A primeira pessoa que contei foi minha mãe. Meu pai chorou muito de alegria e ao mesmo tempo de tristeza, porque para eu viver uma pessoa teve que morrer.”

As informações que repassaram sobre o doador foram somente a idade e causa da morte, um rapaz de 20 anos, que deu entrada no hospital após sofrer um traumatismo craniano resultante de um atropelamento. Ele ficou quatro dias internado e fez uma cirurgia, mas não resistiu. A família, ciente do seu desejo de ser doador enquanto vivo, autorizou a doação.

A captação dos órgãos iniciou às 14 h. Emocionada e ao mesmo tempo com medo de morrer na mesa de cirurgia, o sentimento de ansiedade só cessou ao deitar na maca estreita e ir para o centro cirúrgico quatro horas depois. Na sala, havia aproximadamente 20 médicos. Uma sonda foi colocada para manter o controle urinário, e imunossupressores na veia para evitar a rejeição do órgão. À meia-noite, acordou no Centro de Terapia Intensiva (CTI) já transplantada, com a pressão, batimentos cardíacos e saturação do pulmão conferidos. “Assim que o rim foi colocado em mim ele já funcionou e, desde a hora do transplante, havia produzido 700 ml de urina.”

Olhar clínico

A Santa Casa é o hospital público que mais realiza transplantes de órgãos no Mato Grosso do Sul, principalmente de rim, que é o mais procurado. De acordo com a Central Estadual de Transplantes, mais de 160 pessoas estão na fila de espera pelo órgão. Além disso, o rim pode demorar um tempo para funcionar, algo considerado comum vindo de um doador falecido. Essa demora é chamada de função tardia do enxerto, que ocorre quando o órgão ainda está em fase de adaptação, pois um terceiro rim é colocado e ligado por uma anastomose, intervenção feita para juntar veia, artéria e ureter do paciente com o órgão transplantado.

A nefrologista Rafaela Campanhol, explica que o transplante renal funciona como um tratamento e não como cura, diferente do transplante de medula óssea, por exemplo. “Você vai substituir a função de um rim que não funciona, por um órgão transplantado que não é seu e por isso terá que fazer o uso de medicamentos para o resto da vida”. Muitos pacientes optam por não querer transplantar, motivados pelo medo ou pela adaptação à hemodiálise. Outros, que desejam, podem ser interrompidos por conta da condição clínica. “Caso seja da escolha do paciente se manter na hemodiálise, ele deve saber que ela tem suas sequelas e complicações. Muitas delas são doenças ósseas relacionadas à parte renal, anemia e piora na parte cardíaca”.

Cada órgão tem um tempo determinado para ficar fora do corpo humano. O rim é o único órgão que pode ficar até 48 horas fora do corpo.

Marley da Silva Costa é psicóloga nas clínicas Associação Beneficente Dos Renais Crônicos (Abrec) e Pró-renal e atua como analista de comportamento e instrutora de mindfulness funcional, uma terapia interpessoal de atenção plena. Para ela, pessoas que estão na fila de espera por um transplante podem ficar com o psicológico abalado e nesse momento, a ajuda psicológica se torna indispensável. “A presença de conversas proporcionadas pela Abrec gerou o aumento no número de pacientes renais que buscam a ajuda psicológica. Além disso, a roda de conversa também abre espaço aos familiares que buscam entender sobre o assunto”.

A participação e compreensão da família se torna algo fundamental. A coordenadora da Central Estadual de Transplantes (CET) em MS, Claire Carmem, explica que diversas vezes, a falta de conhecimento dos familiares no assunto, aliada ao medo de interferir na integridade física do falecido, resulta em impedimento para os transplantes. “A Legislação brasileira prevê que a autorização da doação de órgãos de uma pessoa falecida seja feita somente por alguém da família. Então, para que isso seja possível é necessário que ainda em vida, a pessoa manifeste para seus familiares o desejo de ser um doador”.

Mato Grosso do Sul ocupa o quarto lugar no ranking regional de rejeição para doações de órgãos do país. Para auxiliar na problemática, existem na maioria dos estados as CET que são ligadas à Central Nacional, em Brasília. Em Mato Grosso do Sul, o centro fica na capital, encarregado de administrar todas as atividades relacionadas à doação de órgãos, tecidos e transplantes.

Cicatrizes contam histórias

Any Raissa Ferro, 30 anos, é estudante de Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e também recém-transplantada do rim, assim como Kátia, descobriu que precisaria da cirurgia em 2020. Porém, havia diferenças da enfermidade, apesar dos sintomas serem os mesmos. “No começo, achei que os inchaços fossem normais pelo cansaço já que eu subia escadas diariamente. Mas no momento em que meu rosto ficou inchado o dia inteiro e minha barriga parecia uma grávida de nove meses, percebi que tinha algo errado.”

Foto: Geovanna Bortolli

Foi constatado que ela tinha Síndrome Nefrótica com glomerulonefrite, doença rara, considerada agressiva, recente e que ainda não possui estudos científicos para o seu entendimento ou medicação apropriados. De acordo com o médico, até então nenhum brasileiro havia sido diagnosticado e foram poucos os casos notificados nos Estados Unidos. Por conta disso, o tratamento foi feito com medicações e fisioterapia que não garantiam eficácia. “O médico me falou que como não havia um parâmetro nacional, iria me tratar com base em estudos dos EUA, mas lá é outra realidade, poderia não dar certo e não deu”.

Mesmo após dois anos, as cicatrizes das cirurgias permanecem no braço de Any Rayssa – Foto: Geovanna Bortolli

Raissa deveria fazer seis sessões de pulsoterapia, para injetar altas doses de medicação direto na veia. Na terceira sessão, o organismo não estava reagindo bem ao tratamento. Iniciou então, outro método que fazia o uso de medicação para paciente já transplantados e precisou entrar na justiça para ter acesso. “Depois de dois meses tentando, consegui tomar a medicação, mas só dava uma reação que era diarreia. Esta reação foi a responsável por fazer eu perder 36% da função renal”.

Ela precisou fazer oito cirurgias para colocar a fístula que lhe causou cicatrizes nos dois braços e pescoço. Durante dois meses de hemodiálise, descobriu um tumor benigno no coração e precisou fazer a cirurgia para retirar. Deu continuidade ao tratamento três vezes na semana, o que a fez passar mal e ser hospitalizada. Desta vez, seu quadro era crítico, uma hidrocefalia, ocasionada pela pressão no cérebro, que foi eliminada com o uso de uma válvula de drenagem.

Em 2021, a esperança de conseguir entrar na fila de espera de um transplante era mínima dada à quantidade de cirurgias que realizou. Mas após os exames de aptidão, conseguiu entrar na lista nacional em abril de 2022 e recebeu a notícia que seria transplantada em 8 de março de 2023. “Fiquei mega feliz porque estava realizando um sonho de verdade, pois muitas pessoas desacreditaram em fazer o transplante aqui em MS e eu consegui.” O doador era um funcionário da saúde de 35 anos, que tinha o desejo de doar seus órgãos. O técnico de enfermagem salvou não só a vida de Raissa, mas também de três pessoas que aguardavam por um órgão. Saber que o doador era alguém da área da saúde fez com que aprendesse a valorizar mais os profissionais da área, mas não são só eles que devem saber a importância da doação de órgãos. Informar, conscientizar e se importar são os caminhos para mais casos de transplantes bem-sucedidos.

Glossário

Capilar: acesso que retira e repõe o sangue da hemodiálise;

Fístula: canal patológico que liga duas vísceras que comunicam entre si;

Cateter: dispositivo interno utilizado para infundir medicamentos na corrente sanguínea;

Aneurismas venosos: lesões vasculares benignas que representação dilatação de um segmento da veia;

Nefrose: distúrbio renal que faz o corpo excretar proteínas em excesso na urina;

Anastomose: ligação de artérias e veias em um órgão para comunicarem entre si;

Lúpus: doença inflamatória autoimune;

Hidrocefalia: aumento da quantidade de líquido no cérebro