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Reportagem 101

Migração tem gênero

Desde 2021, mais de 70% dos migrantes no Brasil são crianças e mulheres entre 18 e 33 anos

Texto: Daphyne Shiffer | Vitória Martins
Edição: Giovanna Siqueira | Gyovana Marinho | Ian Neto

Infografia: Ana Beatriz Leal


Migrar: ato de mudar em busca de melhores condições de sobrevivência. Comportamento que está na base do desenvolvimento e da evolução dos seres humanos.

Muitos dos maiores fluxos migratórios da história foram motivados por desastres ambientais, guerras, perseguições políticas, étnicas ou culturais.

A história de formação do Brasil não é diferente. As navegações europeias impuseram a miscigenação étnica e cultural do povo branco com o povo nativo, de forma extremamente violenta. Outro fenômeno traumático na formação cultural brasileira é a escravidão, uma migração forçada. Em 350 anos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foram traficados para o Brasil quatro milhões de africanos e, entre 1870 e 1930, migraram quatro milhões de europeus.

No século XXI, os fluxos migratórios no Brasil ganharam nova cara. As burocracias e restrições impostas pela Europa, Estados Unidos e outros países do chamado “norte global” contribuíram para que o Brasil passasse a ser cada vez mais visto como destino cotado para imigrantes de diversas partes do planeta. Nas últimas décadas, a maior parte dos movimentos migratórios ao redor do mundo está relacionada a questões econômicas.

Foto: Ricardo Moraes

Os relatórios anuais do Observatório dos Migrantes Internacionais (OBmigra), que identificam características dos imigrantes no Brasil, constatam o aumento considerável de mulheres e crianças. Desde 2021, os dois grupos somam 151.155 (74,5%) registros. As mulheres totalizam 67.772 (44,8%) e os menores de 18 anos representam 29,7% do total, sendo 29.795 (19,7%) crianças e 14.555 (9,6%) adolescentes. De 2011 para 2021, o número de mulheres imigrantes triplicou.

Entre 2011 e 2015, as bolivianas lideravam a imigração. Um fator decisivo foi a pouca burocracia de entrada no país e a facilidade da travessia das fronteiras. Naquele período, as mulheres correspondiam a 26.108 e as crianças a 5.384, caindo para 15.701 e 4.538 em 2020, respectivamente. Somente as crianças e adolescentes bolivianas representavam 29,9% da imigração.

Até 2015, as bolivianas encabeçavam o ranking de imigração feminina no Brasil. Nos anos seguintes, as haitianas passaram a ocupar o primeiro lugar, cenário que se manteve até 2018. Atualmente, o número de venezuelanas ultrapassou o de cidadãs da Bolívia e do Haiti.

A venezuelana Lidia Ribas, que reside no Brasil desde 2018, chegou ao país através da fronteira com Roraima. Junto ao marido e aos dois filhos pequenos, caminhou cerca de 16 quilômetros até o Posto de Recepção e Apoio (PRA) da Operação Acolhida, gerido pela Agência da Organização das Nações Unidas para as Migrações (OIM), em Pacaraima-RR. Fez a travessia, que durou três dias, grávida de sete meses. Lidia relata o medo e insegurança que sentiu durante a passagem ao território brasileiro. “Não tínhamos comida suficiente e passamos fome em alguns momentos. Um dia precisamos dormir na calçada, não tinha um teto para cobrir a cabeça, passei muito medo com meus filhos”, recorda.

Só em Roraima, o número de imigrantes venezuelanas cresceu 183% em quatro anos, tornando as mulheres personagens centrais da crise migratória no estado. A expectativa é que os números continuem subindo no Brasil, pois só em janeiro de 2023 foram registradas 9,3 mil entradas de mulheres, quase três vezes mais do que no mesmo período do ano anterior.

Não tínhamos comida suficiente e passamos fome em alguns momentos. Um dia precisamos dormir na calçada, não tinha um teto para cobrir a cabeça, passei muito medo com meus filhos, Lídia sobre a passagem ao território brasileiro

De acordo com a socióloga e especialista em políticas públicas, Soraya Alviano, além de os imigrantes já atravessarem questões delicadas de raça, etnia e origem, para a mulher as questões de gênero se somam a todas as dificuldades envolvidas no processo de estabelecer moradia em um novo lugar. A socióloga explica que houve avanços nas legislações referentes à migração no Brasil. Em 2018, foi implementada a lei de migração que trouxe avanços em relação ao extinto Estatuto do Estrangeiro.

Porém, a especialista afirma que é preciso lutar para que as regras sejam cumpridas, para garantir que as pessoas tenham a proteção do Estado e o acesso efetivo a direitos. “É necessário também garantir a proteção dessas pessoas mais vulneráveis em suas trajetórias migratórias, que são as mulheres, especialmente gestantes e crianças”, aponta.

As mulheres que escolhem deixar a terra natal, o fazem em busca de melhores condições de vida, na tentativa de fugir de desastres naturais ou da instabilidade política e econômica do país de origem. Elas são jovens, entre 18 e 33 anos, possuem ensino médio completo e são naturais de países do “Sul Global”. Venezuela, Paraguai, Bolívia, Cuba e Haiti são as principais nacionalidades desses imigrantes no Brasil.

São Paulo foi o principal estado receptor de imigrantes entre 2011 e 2015. Porém, a maior proporção de crianças (13,8%) ocorreu em Roraima, que faz fronteira com a Venezuela. Entre as mulheres, 53,2% estabeleceram moradia em Mato Grosso do Sul, sendo, em sua maioria, bolivianas e paraguaias provenientes das regiões de fronteira. A partir de 2019, a concentração de mulheres imigrantes na região Norte tem aumentado. O fluxo crescente das venezuelanas mudou o cenário espacial da imigração.

Em 2018, foi implementada a lei de migração que trouxe avanços em relação ao extinto Estatuto do Estrangeiro

Agora, Roraima e São Paulo têm maior peso e importância quanto aos indicadores femininos, de crianças e adolescentes e somam mais 19 mil novos residentes. O estado do Amazonas e a região Sul têm entre 10 mil e 19 mil residentes. Os dados suscitam uma reflexão sobre a crescente liderança feminina nas famílias imigrantes. Nota-se que os comportamentos social e cultural mudaram. Nos últimos sete anos, apenas em 2020, início da pandemia, houve redução neste segmento migratório.

Cada vez mais mulheres chegam sozinhas com seus filhos para morar no Brasil em busca de condições melhores de vida, influenciando diretamente na educação e no trabalho formal no país. Além dos direitos básicos de moradia e alimentação, a inserção das crianças nas escolas é uma grande preocupação entre as famílias de imigrantes. A Operação Acolhida foi criada pelo Governo Federal em 2018 para prestar apoio às famílias de venezuelanos que passaram a cruzar a fronteira.

A operação foi a resposta humanitária ao fluxo histórico de refugiados e migrantes nos últimos anos proporcionando acolhimento, documentação, cuidados médicos básicos, imunização e alimentação. Também disponibiliza abrigo, educação, cuidados psicológicos e proteção social. A ação foi reconhecida como um modelo na América do Sul.

A iniciativa faz parte dos direitos assegurados pela Constituição Federal e por outras leis específicas no país. O Art. 1 da Lei no 13. 445, de 24 de maio de 2017, que regula a entrada dos imigrantes no Brasil, tem como diretrizes a acolhida humanitária, a inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas. Promove o acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, entre outros benefícios.

O Brasil precisou se adequar ao novo cenário. Atualmente, existem cerca de 1,3 milhão de imigrantes residentes no país, crescimento de 24,4% nos últimos dez anos, segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Os novos imigrantes têm enfrentado grandes dificuldades e certa desconfiança por parte dos brasileiros, principalmente aqueles oriundos de países em situação de conflitos, que são forçados a se submeter ao trabalho precarizado e também ao preconceito de uma sociedade com forte herança escravista.

De acordo com a OBMigra, o rendimento médio dos trabalhadores formais entre os imigrantes caiu pela metade nos últimos dez anos. Os imigrantes que sofrem discriminação e preconceito vivem em situação de alta vulnerabilidade e, em muitos casos, sofrem violações de direitos. Da mesma forma, são vistos muitas vezes como ameaça no mercado de trabalho, no uso dos serviços públicos e como responsáveis pelo aumento da violência. Enfrentam uma série de dificuldades cotidianas pela ineficiência dos serviços burocráticos e pelo despreparo dos serviços públicos, além do desconhecimento da sociedade sobre os seus direitos de cidadania.