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Reportagem 101

Preconceito que corre no sangue

Até 2020, homens gays e bissexuais eram impedidos de doarem sangue. Medida discriminatória foi derrubada, mas estigma persiste

Texto: Amanda Ferreira e Beatriz Santos
Edição: Lívia Medina | Giovanna Montoso | Julia Barreto
Ilustração: Pedro Oliveira


Por um período de 12 meses, após a prática sexual de risco, indivíduos do sexo masculino – que tiveram relações sexuais com individuos do mesmo sexo e/ou parceiras sexuais destes – foram considerados inaptos a doarem sangue, conforme a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC), número 34, de 11 de Junho de 2014, da Agência Nacional de Vigilância (Anvisa) e a Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde.

Foi em 2020, por meio do Projeto de Lei 2353 proposto pelo senador Fabiano Contarato (PT) que essa normativa mudou e homens homossexuais e bissexuais passaram a poder doar sangue. Antes disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) já tinha declarado como inconstitucional a Portaria do Ministério da Saúde que impedia a doação de sangue por homossexuais masculinos.

Hemocentros vazios são reflexo de estigma ainda não superado. Foto: Amanda Ferreira.

Esse impedimento era reflexo do surto de HIV/Aids ocorrido nas décadas de 1980 e 1990. Em vídeo sobre o assunto, o médico Drauzio Varella destaca como esse preconceito influenciou a RDC nº 34: “Quando ainda nem havia o teste para o HIV, o simples fato de ser homossexual colocava a pessoa em suspeita para doar sangue. Por isso, se criou nos bancos de sangue essa restrição, que hoje não tem mais nenhum sentido em existir”.

A obrigatoriedade da testagem de doadores de sangue só veio a acontecer em 1987, após o governo do estado de São Paulo determinar por lei que deveria haver a testagem para HIV. Depois, a norma se estendeu nacionalmente. Antes disso, os doadores só faziam o teste ELISA (Enzyme-Linked Immunoabsorbent Assay), testagem sorológica imunoenzimática, sem a rechecagem no caso de resultados positivos. Nessa época, a janela imunológica, período em que o vírus ainda não criou anticorpos e não pode ser detectado por exames, era de seis meses. Hoje, com os avanços tecnológicos, esse tempo caiu para de 30 a 60 dias. Apesar das mudanças, algumas regras em relação a doação de sangue se mantiveram arcaicas.

Os efeitos da pandemia

Com a pandemia da Covid-19, as doações de sangue caíram drasticamente no mundo inteiro e a necessidade de bolsas sanguíneas aumentaram. A gerente de relações públicas e comunicação corporativa do Hemosul de Campo Grande, Mayra Franceschi, conta que foi um dos piores momentos desde que começou a trabalhar naquele departamento. “Foi terrível. Um monte de gente doente, morrendo, precisando de sangue. Muita gente com medo de continuar a doar, principalmente os mais velhos”.

Nos Estados Unidos, para manter os estoques abastecidos, a Food and Drug Administration, agência federal de saúde americana, suspendeu em 11 de maio de 2020 a normativa que existia desde 2015 e que proibia que homens homossexuais doassem sangue. Outras normas também sofreram mudança, como a redução do intervalo de tempo mínimo para doação que caiu de 12 para 4 meses para pessoas que tiveram relações casuais e, caso o doador seja homem, independende se o parceiro sexual for outro homem gay ou bissexual.

No Brasil, a Anvisa publicou uma nota dizendo que não mudaria a norma que impedia homens homoafetivos de doar sangue, mas em junho de 2020 o PL 2353 foi aprovado na Câmara dos Deputados, e no ano seguinte pelo Senado, com a argumentação que a antiga regulamentação feria a dignidade humana, além de ser uma indiscriminação injustificável e inconstitucional.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde realizada pelo IBGE em 2019, entre os 159,2 milhões de brasileiros acima de 18 anos, 1.4% eram homens homossexuais e 0.4% eram homens bissexuais. Com base nesses números e numa pesquisa realizada pela ONG All Out, estima-se que cerca de 18 milhões de litros de sangue foram perdidos por ano devido a essa restrição.

Sangue que salva vidas

A estudante de Biomedicina, Maria Júlia de Oliveira Façanho, 21 anos, decidiu ser doadora para retribuir a ajuda que recebeu quando criança. Diagnosticada com refluxo grave ao nascer, enfrentou complicações e recebeu transfusões sanguíneas por dois anos.

Maju doa sangue a cada quatro meses mas, no último ano, precisou fazer uma pausa para se recuperar de uma deficiência de ferro. Em 2022, após se casar com uma mulher, foi informada pelo médico que ela não poderia doar sangue, mesmo tendo uma parceira fixa. Determinada a ajudar, procurou outro médico e este permitiu que ela fizesse a doação. Embora não tenha se sentido constrangida, percebeu o preconceito em relação à sua identidade sexual.

O primeiro impedimento imposto a Maju contradiz as normativas do Governo, até mesmo a lei de 2016 que permitia a doação por mulheres lésbicas. Mayra Franceschi, porta-voz do Hemosul, foi questionada a respeito e disse que pode ter acontecido um mal-entendido. “O que existia era uma cláusula na legislação federal que dizia que homens que fazem sexo com outros homens, e parceiras destes, estão impedidos de doar sangue pelo período de um ano [após a relação sexual]”.

Caso similar de preconceito é o de Cezar Nascimento Pires, 22 anos, natural de Fortaleza (CE), professor de inclusão escolar. Sua primeira tentativa de doação ocorreu em agosto de 2019, durante uma ação do Centro de Hematologia e Hemoterapia do Ceará (Hemoce). Ele e uma amiga lésbica foram impedidos de doar devido à sua orientação sexual. Embora Cezar estivesse apto a doar, pois não havia tido relações sexuais nos meses anteriores e havia feito o teste de ISTs, a discriminação e as restrições impostas a ambos ficaram evidentes.

Cezar realizou outra tentativa em 2021, após a aprovação da lei que liberava a doação de sangue de pessoas LGBTQIA+. Porém, se sentiu desconfortável pelo tratamento preconceituoso da equipe de profissionais, que definiu como ‘invasiva’. “Foi um pouco direta demais. Querendo saber os detalhes, sabe?”.

Ele já realizou três doações e encoraja outras pessoas LGBTQIA+ a não desistirem. Assim como Maju, também ressalta a necessidade de eliminar os estigmas e restrições impostos às pessoas LGBTQIA+. “Vá sabendo que você vai enfrentar certas resistências, mas doe. A própria doação pela comunidade LGBTQIA+, é uma forma de acabarmos com esse higienismo social que as pessoas colocam nas sutilezas”, destaca o professor.

Apesar do processo difícil, Cézar diz se sentir duplamente feliz. Ele vê suas doações como uma forma de ajudar humanamente e também de superar barreiras sociais. Para ele, cada pequeno avanço é uma vitória significativa na luta por inclusão e igualdade.

Processo para doação

A gerente do Hemosul, Mayra Franceschi, explica que a doação de sangue no Brasil segue etapas rigorosas para garantir a segurança do doador e do receptor. O sangue doado passa por exames laboratoriais para detecção de doenças, o que torna ainda mais inócua a restrição com base na orientação sexual.

No Hemosul, o doador preenche seus dados para iniciar o processo. Passa pelas triagens clínica e comportamental para avaliar aspectos da vida e hábitos, incluindo o comportamento sexual. Durante o processo é feita a testagem sorológica para seis tipos de doenças diferentes: Aids 1 e 2, HTLV (retrovírus da mesma família do HIV), doença de chagas, sífilis e hepatite B e C. Se o resultado der positivo para qualquer uma dessas doenças, é preciso realizar novo teste, para garantir que o sangue esteja livre da doença.

A triagem no Hemosul segue diretrizes federais, embora possa haver algumas diferenças entre os hemocentros estaduais. “É por isso que a segurança transfusional se dá com exames sorológicos e triagem clínica correta, de pessoas que sejam preparadas para triar e de doadores que sejam sinceros. Isso é uma questão de responsabilidade social”, destaca a porta-voz do Hemosul.

Para doar sangue é necessário ter entre 16 e 69 anos, pesar no mínimo 51 kg e estar bem de saúde. No dia da doação é preciso estar bem alimentado, bem hidratado e levar um documento oficial com foto.

Não podem doar, pessoas que tiveram Hepatite após 11 anos de idade, Doença de Chagas, Câncer, Sífilis, infectadas pelo HIV e seus parceiros, doenças hematológicas, cardíacas, renais, pulmonares, hepáticas, autoimunes, diabetes, hipertireoidismo, hanseníase, tuberculose, câncer, sangramentos anormais e convulsões.