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Opinião 102

Amor só dura em liberdade

Texto: Emilly Nunes
Ilustração: Anne Marinho


“É tudo safadeza. Isso é coisa de gente imoral. Quando se apaixonar de verdade, quando encontrar o amor da sua vida, vai deixar essa vida. Não dá para amar mais de uma pessoa”.

Será mesmo? Antes de tudo, temos que entender os termos monogamia, poligamia e poliamor. O primeiro remete à relação apenas entre dois indivíduos. O segundo, às várias relações afetivo-sexuais ao mesmo tempo. O terceiro é outra variação que amplia o sentido das relações. Tanto a poligamia quanto o poliamor são sinônimos da verdadeira discussão do texto, a não monogamia.

A não monogamia também remete a qualidade e, não necessariamente, a quantidade das relações; é entender que não temos a posse da pessoa com quem nos relacionamos. É sobre ter autonomia e liberdade para se afeiçoar a quem quiser, e para terminar uma relação sem o perigo da retaliação vinda do desejo do outro.

Mas de onde veio a rejeição social à liberdade de amar? Essa é uma discussão antiga. Aqui no Brasil, vem desde a chegada dos colonizadores. Como explica a obra “Descolonizando Afetos”, de Geni Núñes, a sociedade europeia cristã cultua um único deus, que só se sente amado se for único, exatamente da forma que a monogamia se baseia: a não simultaneidade de relações românticas como critério de fidelidade. A noção de adultério vem primeiro desse cenário religioso para depois se inserir nos relacionamentos interpessoais. Ao se depararem com o modo como os povos indígenas do Brasil se relacionavam e cultuavam sua espiritualidade, centrados no respeito da autonomia, os padres jesuítas não conseguiam conciliar com sua própria noção de casamento, e assim atribuíram a verdade espiritual a si mesmos, e a falsidade aos indígenas e suas tradições. Foi nesse cenário de colonização que as sociedades ocidentais se expandiram e basearam seu entendimento de relações. No Brasil, inclusive existe uma lei que criminaliza a não monogamia, o artigo 235 do Código Penal.

Veja bem, a monogamia é de longe um entrave para uma sociedade livre. O preconceito que pessoas não monogâmicas aturam é o que devemos problematizar. Monogâmicos se sentem ameaçados ao se depararem com alguém que não desiste da sua liberdade de criar vários laços afetivos e sexuais. É quase uma ofensa grave propor uma relação única, exclusividade que os casais monogâmicos exigem até com amizades. Sem contar a ideia do adultério, que potencializa as violências de gênero, já que, muitas vezes, a namorada ou a esposa passa a ser considerada posse do seu parceiro.

Na tentativa de validar a escolha de estar com um parceiro por vez, estereótipos foram criados sobre a não monogamia. Um deles é que os parceiros não se amam de verdade. Na verdade, quando decidem se relacionar romanticamente, as pessoas não monogâmicas possuem a mesma capacidade de afeto pelos seus parceiros, e a quantidade de relações não define de modo algum a qualidade e o tamanho do amor que compartilham. Um exemplo é o trisal formado entre Diogo, Graziela e Natália, influencers do perfil ‘Vivendo a Três’ nas redes sociais. Em sua história, houve situações em que o ciúmes tomou conta, e quase levou ao término da relação. Porém, com muito diálogo, os três compreenderam seus sentimentos e limites, e estão juntos há quatro anos.

A falácia mais difundida é que não monogâmicos são os maiores disseminadores de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), por se relacionarem com múltiplas pessoas. Esse é um pensamento perigoso, ingênuo e preconceituoso. Ser consciente e praticar sexo seguro é responsabilidade de cada um, assim como os relacionamentos.

Temos a impressão que os mais jovens têm aceitado mais as relações não monogâmicas em relação à geração passada. A exposição nas redes sociais e a luta contra o patriarcado podem ser compreendidos como fatores motivacionais desse cenário, afinal, a monogamia acaba por acentuar a violência masculina contra as mulheres (sim, sempre elas), tanto física como psicológica. O consentimento, a liberdade e a honestidade, que são a base das relações poliamorosas, têm atraído a nova geração progressista, que parece ser mais aberta a aceitar diferenças. Pelo menos é o que esperamos, mas por enquanto, fica a pergunta: somos livres para amar?