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Quem tem medo dos estudantes?

Em meio à greve de servidores, o movimento estudantil enfrenta desafios com esvaziamento. Reivindicações históricas persistem na trajetória de acadêmicos e acadêmicas da UFMS


A porta verde fluorescente não esconde a sensação de abandono. Perto da Caixa Econômica, um mural tem escrito “Tire suas dúvidas sobre a greve aqui”. Ao lado, o Diretório Central dos Estudantes (DCE). Os acadêmicos que passam por ali, não percebem o aviso. Ao serem perguntados onde fica o DCE, muitos sequer sabem o que significa, mas ele é a entidade máxima de representação dos estudantes da UFMS. Um canal de debate, discussões, palestras e principalmente um meio que garante o contato dos estudantes do curso com os órgãos de representação geral. Sua responsabilidade é representar o corpo discente na reitoria e nos governos, estudar, discutir, definir e lutar pelos interesses do conjunto dos estudantes dentro da Universidade.

O que há dentro, porém, conta outra história. Entre várias caixas de doação para o Rio Grande do Sul, alunos se mobilizavam para a assembleia sobre a paralisação do calendário acadêmico que haveria durante a noite. Uma pergunta escrita num cartaz azul, em letras garrafais, chamou atenção: “Quem tem medo do povo?”. Em meio a um período nebuloso na história do movimento estudantil, o questionamento levanta outra dúvida: e quem tem medo do estudante?

Izabella Brytto é acadêmica de história no campus de Aquidauana, ela é também a primeira presidente mulher e primeira aluna do interior a assumir a presidência do DCE. Para ela, o sentimento de abandono vem pelo desmantelamento da universidade. Izabella acredita que não falta interesse dos alunos em buscarem melhorias, mas sim que existem obstáculos que os impedem de lutar. “Tem uma grande parcela de alunos que não vai se engajar no movimento estudantil, porque ele tem que trabalhar o dia inteiro. Você acha mesmo que uma pessoa que trabalhou o dia inteiro e chegou aqui à noite para participar de uma aula e vai chegar na casa dela meia-noite, vai ter tempo e energia para entrar no centro acadêmico para militar para a faculdade?’’.

“Você acha mesmo que uma pessoa que trabalhou o dia inteiro e chegou aqui à noite para participar de uma aula e vai chegar na casa dela meia-noite, vai ter tempo e energia para entrar no centro acadêmico para militar para a faculdade?’’

Izabella frisa a importância do diálogo direto com os Centros Acadêmicos, os pró-reitores e reitoria, por meio de reuniões periódicas, sendo essas denominadas Comissões da entidade de base (CEBS). São reuniões fechadas e assembleias gerais onde podem participar todos os estudantes. “Então a gente vai tendo esse trabalho de atuar junto com o Centros Acadêmicos para que a gestão não tome uma posição sozinha, mas que sempre que as nossas posições sejam tiradas em consonância na CEBS junto com as nossas entidades de base para que a gente não fique cada um indo para um lado’’.

A gestão de Izabella é a primeira comandada por uma mulher, o que a coloca em situações desgastantes. Ela conta que coisas antes insignificantes, tornaram-se problemas de sua responsabilidade após a posse. “Eu apanho o triplo por ser mulher o que se fosse um homem na minha posição não apanharia metade e isso eu posso afirmar até agora também, é três vezes mais ainda’’.

Presidente do DCE da UFMS Izabella Brytto em entrevista para o Projétil

Nas ruas, nas praças, quem disse que sumiu?

No dia 29 de maio, aconteceu a assembleia geral de estudantes para a discussão de pautas, como o movimento grevista de docentes e técnicos e a solidariedade dos estudantes para com esse movimento, que começou há mais de três meses no dia 11 de março com os técnico-administrativos reivindicando reajuste salarial e se ampliou para a greve dos docentes no começo de abril, onde cobram a reestruturação de carreira, revogação de normas aprovadas em governos anteriores e a recomposição salarial, que não acontece desde 2017. A suspensão do calendário acadêmico também foi pauta principal na assembleia, além dos repasses DCE e de entidades de base, que falaram sobre o Restaurante Universitário da Cidade Universitária, onde alunos relataram terem passado mal por causa da comida.

No entanto, como cada docente pode escolher sua posição de entrar ou não em greve, alguns cursos paralisaram por inteiro suas atividades e outros ficaram com matérias desfalcadas, enquanto outra parte da Universidade continua com aulas normalmente, como o curso de Jornalismo.

Durante a assembleia, estudantes de diversos campus da UFMS acompanharam tanto presencialmente como virtualmente. Todas as pautas foram votadas e alguns estudantes tiveram a oportunidade de verbalizar suas insatisfações e descontentamentos. Um dos estudantes presentes verbalizou “Quase nenhum dos nossos professores aderiram à greve, mas como estudante isso não me desanima porque só a gente sabe que a UFMS não é dez igual eles colocam lá na frente, só a gente como estudante sabe como é comer nesse RU, pagando quatorze reais”.

Entre debates acalorados, a noite foi marcada pela votação da suspensão do calendário acadêmico. Após alguns estudantes presentes repassarem o link da votação do online, os votantes que contavam com 232 pessoas, subiram para 505, e demonstrou um movimento dos estudantes contrário a suspensão. O resultado foi 49,1% contra e 48,9% a favor, e presencialmente foram 89 votos a favor, quatro contra e uma abstenção.

Além das votações, as pautas dos demais campus têm ganhado força. Com problemas de transporte, alimentação, falta de auxílio e professores, a presidente ressaltou o abandono que esses pólos estão sofrendo. “O que eu quero que vocês entendam como alunos da capital é que os campis do interior estão abandonados, nós ficamos à margem no movimento estudantil”.

Em entrevista, Izabella contou que tem auxiliado a formação de Centros Acadêmicos e representantes do diretório acadêmico nos demais campus da UFMS, que já começaram em algumas unidades, como a de Três Lagoas, Corumbá e Chapadão do Sul. “E então são essas pautas primeiro é reerguer o movimento estudantil. Botar de novo o alicerce para poder aí numa próxima gestão poder trabalhar com um pouco mais de tranquilidade, né? Então acho que a prioridade principal foi erguer o movimento estudantil, principalmente no interior que tava apagado durante muitos anos”.

Aqui está presente o movimento estudantil

Em 2008 estudantes reivindicam melhorias para o curso de Direito

Os movimentos estudantis, são acima de tudo movimentos sociais com propósito de reivindicar melhorias para os estudantes. E no centro da discussão está o ambiente educacional universitário, que promove o debate crítico e articula os acadêmicos em pautas sociais, políticas e econômicas, é a forma de mostrarem sua objeção às atitudes que os ferem. A integração em movimentos de luta, protestos em rua e paralisação das atividades é a força bruta para serem ouvidos.

Dentro do movimento, a União Nacional dos Estudantes (UNE) é a entidade máxima de representação, a organização atua ativamente em ações políticas e tratativas com autoridades governamentais. Criada em 1937, a UNE foi oficializada como representação estudantil durante a segunda guerra mundial, mas perdeu sua legalidade na Ditadura Militar. A entidade foi o primeiro alvo do golpe de 1964, tendo sua sede metralhada e incendiada por militares.

Aqui, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), nos gritos dos estudantes que já passaram, o passado escreve o presente. Agnaldo Teixeira, de 57 anos, estudou Física na UFMS no fim da década de 1980. Ex-presidente do centro acadêmico no período pós ditadura, relata que as coisas eram diferentes. A atuação do (DCE) era ainda mais limitada e dividida entre polos ideológicos de direita e esquerda. Mas a censura não era aceita por ambos os lados, que se uniam rapidamente. Je vous salue Marie, filme proibido no Brasil em 1986, contava com a exibição já agendada pelo DCE. A ameaça foi prender os alunos caso o filme fosse transmitido, mesmo com o risco de serem detidos o longa foi ao ar. Agnaldo conta que quando os estudantes souberam, desceram para a sala do diretório, onde seria exibido o filme, para dar força ao movimento, e que ele ficou longe da porta pela grande quantidade de acadêmicos no local. “Não apareceu um carro de polícia, nem ninguém da universidade. E até hoje eu nunca assisti o filme, não faço ideia do que se trata”, comenta rindo ao lembrar.

Também na época, o restaurante universitário já apresentava problemas. “Tudo era muito mal feito e muitas vezes difícil de comer. Então um dia quando eu cheguei lá, não eram os funcionários que estavam servindo, eles estavam parados do lado e os alunos de vários cursos é que foram servir. O que aconteceu é que tava tão ruim quando eles chegaram para comer, que eles afastaram os servidores, começaram a preparar alguns alimentos e servir os alunos. O que foi combinado é que depois que comessem, era pra levar o bandejão pra frente da reitoria como protesto, e assim fizemos”. Depois disso, o reitor se comprometeu com as melhorias, que duraram um período, mas que se repetem nos dias de hoje.

“Se eu não me engano, nós tínhamos coisa de três ou quatro professores efetivos. Todo o restante da grade do curso era de professor voluntário. Excelentes professores voluntários, mas muitas vezes a gente tinha que ir atrás dos professores e eventualmente eles nos deixavam no meio do semestre”. Em 2008, esse era o cenário para Tácio Neves, hoje Servidor Público da União, na época, estudante e presidente do Centro Acadêmico Jorge Eustácio Frias (CAJEF).

Curso inaugurado em 1996, o Direito não contava com salas de aulas próprias, as aulas eram ministradas no meio do corredor. Na época, a movimentação dos alunos aconteciam presencialmente ou pelo orkut. Tácio conta que todas as salas possuíam um líder, que era responsável por passar as demandas para o Centro Acadêmico. No fim, a indignação era de todos, e uma posição foi tomada. O ex-presidente do Centro Acadêmico Jorge Eustácio Frias (CAJEF) relembra que primeiro se mobilizaram e conversaram com os professores, com a reitoria e tiveram o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Eles ainda fizeram protestos no período em que houve concurso para professores na Universidade. Mas alguns meses depois, sem sucesso, se uniram a uma briga maior.

Cerca de 200 estudantes ocuparam a reitoria por mais de duas semanas. O movimento teve o principal objetivo a paridade de votos para eleição do reitor da Universidade, em que os docentes contam com 70% dos votos. Após dois meses de mobilização, o movimento criou um site para informar sobre a ocupação. “Levantamos inúmeros problemas que nos permitem dizer que a universidade vive uma crise institucional. Buscando ser vistos e ouvidos, ocupamos a reitoria”.  De acordo com o site, essa era uma das justificativas assinadas pelo Comitê da Ocupação da Reitoria da UFMS.

“Levantamos inúmeros problemas que nos permitem dizer que a universidade vive uma crise institucional. Buscando ser vistos e ouvidos, ocupamos a reitoria”

A ocupação aconteceu dentro e fora do prédio. A maioria permaneceu ao lado de fora para não ter danos ao patrimônio público. Tácio conta que eles se dividiram em pequenos bairros. “Colocamos umas barracas. O pessoal ficava meio que lá fora e eu lembro que faziam cotas para contribuírem”. Mesmo com a água e luz cortadas, os estudantes conseguiram cozinhar e permanecer o tempo inteiro ali.

O processo de desocupação foi por uma ordem judicial e a Polícia Federal interveio atrás dos líderes do movimento. A ordem estipulava um prazo de algumas horas para a retirada dos estudantes. Os acadêmicos permaneceram até o horário limite. O ato final foi marcado por discursos, mas a luta dos estudantes não terminou com a ocupação, após esse episódio alguns sofreram ameaça de morte e o DCE foi condenado a pagar 14 mil reais por danos ao patrimônio público para a Universidade. Como saldo positivo, o curso de Direito conseguiu professores efetivos.

Em 2012, durante 123 dias, 58 universidades federais deflagraram greve, sendo considerada a maior paralisação já realizada no país. As reivindicações começaram pelos professores que lutavam por reajuste no piso salarial e a elaboração de um plano de carreira único, os estudantes atuaram em solidariedade com os docentes e técnicos e também reivindicavam suas pautas. Laís Rondis, 31, hoje professora de Geografia na rede estadual, na época estudava Engenharia Ambiental na UFMS e fez parte do Centro Acadêmico no seu primeiro ano de curso, e logo depois passou a compor a chapa no DCE eleito de 2011 a 2012.

Entre as pautas que os estudantes debatiam, estava a permanência de bolsas estudantis e a falta de estrutura dos câmpus, problema esse que se mantém até os dias de hoje. “Tinha muito problema de infraestrutura, os blocos da engenharia, o Bloco 7, não podia ligar o ar condicionado que se ligasse não aguentava o padrão e caía e era o bloco da Engenharia Elétrica, então isso era muito contraditório’’.

Durante a greve, no dia 5 de junho, 15 mil pessoas, entre universitários e servidores federais do Brasil inteiro protestaram em Brasília, a ação organizada pela UNE reuniu 44 DCEs. A marcha começou em frente a Biblioteca Nacional e seguiu até o Ministério da Educação, onde os universitários buscavam contato com o então ministro Aloizio Mercadante. “Aqui a gente construiu o comando local, né? Eu não cheguei a representar no Comando Nacional. Não fiquei em Brasília, só fui pro para manifestações e atos que a gente fez, mas eu fiquei 100% no comando local articulando aqui.’’

Com a forte adesão da greve em âmbito nacional, Laís conta que houveram avanços significativos através da pressão dos estudantes, ao conseguir verba maior as assistências, a reestruturação de alguns campus e no orçamento de bolsas. A professora frisa também que não foram heróis que “conseguiram melhorar tudo”, mas a greve serviu para tensionar aquelas pautas e lutar para a melhoria das estruturas oferecidas aos estudantes.

A greve dos docentes das Instituições Federais de Ensino em 2015 foi considerada a greve mais longa da história, no total foram 125 dias. Os professores exigiam melhores condições de trabalho, reajuste salarial para ativos e aposentados e maior autonomia, com as universidades sem verbas, a greve foi o último recurso para pressionar o Governo Federal, na época comandado por Dilma Rousseff (PT), assim no dia 28 de maio iniciaram a greve na sede do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) em Brasília com a instalação do Comando Nacional de Greve (CNG).

Em 2019, ocorreu um dos grandes movimentos dos últimos 10 anos a favor do ensino, nomeado de Tsunami da educação, milhares de pessoas entre técnicos, professores, estudantes e pesquisadores foram às ruas protestar em defesa da educação brasileira e contra os cortes do Ministério da Educação, decretados pelo então ministro, Abraham Weintraub, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Os protestos eram contra o bloqueio de 30% na verba das instituições de ensino federais, dentre as 60 universidades e quase 40 institutos em todo o país. O lema em forma de grito, reafirmava a força estudantil. “Este sistema não vale: lutamos por justiça, direitos e liberdade”.

“Este sistema não vale: lutamos por justiça, direitos e liberdade”

Em meio a essas movimentações, a UFMS também foi palco desses protestos. Em julho, o Abraham Weintraub anunciou o programa ‘Future-se’, com a proposta de maior autonomia financeira às universidades e institutos federais por meio de incentivo à captação de recursos próprios e ao empreendedorismo. Como forma de protesto contra o projeto do Governo Federal, os estudantes da UFMS, após uma assembleia geral com presença de cerca de 90 participantes, decidiram ocupar o Bloco XI. Os acadêmicos realizaram atividades e debates no espaço e foram resistentes aos cortes de água e luz feitos pela Instituição durante cinco dias de ocupação.

Alice Soares, 23, na época estudante de História, Militante da União da Juventude Comunista de Mato Grosso do Sul, participou ativamente da ocupação em 2019. “Aí tem o início do Tsunami na educação, puxado pela UNE. E durante uma semana a gente faz essa ocupação do Bloco 6, protestando contra a tentativa de privatizar as universidades federais, que permite que organizações sociais e privadas atuem dentro da educação”.

A estudante ainda destaca que a ocupação foi pensada justamente para ser uma semana antes do ato unificado para dar visibilidade e um “pontapé” dentro e fora da universidade na luta contra o projeto Futura-se. “Resistimos uma semana naquela ocupação e terminamos no dia que o ato unificado iria acontecer. O ato seria na avenida Costa e Silva, então a gente saiu da ocupação direto para a rua’’.

Estudantes protestam na UFMS em 2022

Os jovens são engajados?

Durante a Assembleia, a presidente do DCE destacou a importância de retomar o sentido de movimento estudantil na UFMS, através da luta pelos direitos dos estudantes. “Nós precisamos retomar a coletividade e retomar esse sentido de movimento estudantil e retomar um pouco do gás que é a juventude. Poder ir lá e brigar por aquilo que nos é de direito. Porque vocês vão me desculpar, com respeito a todas as categorias. Mas quem come a comida podre todo dia do RU não é o professor, não é o técnico, não é o Turine, não é a Camila, não é o Albert, não é ninguém! Quem come essa comida todos os dias é a gente, então é a gente que tem que bater lá na porta da reitoria e falar “e aí vai resolver isso aí agora de um jeito bom ou a gente vai ter que começar a fazer problema aqui?”.

É quase unânime a visão de que o estudante da Cidade Universitária da UFMS hoje não se movimenta tanto quanto em tempos anteriores. De todos os entrevistados nesta reportagem, a maioria cita o quão engajados os estudantes eram, o quão vivo o campus era, entre salas e corredores, e que durante os anos foi se apagando. Claro que não é demérito, são gerações diferentes, com vivências diferentes, mas é curioso. Para o acadêmico de Arquitetura e Urbanismo, Otniel Sousa, que também atua como voluntário no DCE e participa de modo ativo no MUP, ocupar a universidade com eventos culturais, saraus e rodas de conversas é o que dá vida à universidade, onde se faz necessário esse espaço de convivência entre os alunos. “A gente quer de novo voltar a trazer essa essa cultura de convivência, mesmo com a greve”. Após três meses de movimento paredista, no dia 27 de junho o Governo Federal assinou em conjunto com as entidades representativas dos professores e servidores técnico-administrativos o fim da greve.

Protesto de estudantes em 2022