Texto: Nayane Aleixo
Ilustração: Mileny Rodrigues
Em tempos de apagão pedagógico, quando cada vez menos pessoas sonham em ser professoras. Escutar a história da minha avó, Marlene Alaide Aleixo da Silva, foi como voltar ao centro de tudo: ao amor pelo ofício, à dedicação diária, e à vocação que sobrevive mesmo quando o mundo parece ir na direção contrária. Durante a conversa, fui surpreendida por detalhes que nunca tinha ouvido, por memórias que ela guarda como quem segura um diário com as duas mãos. Com voz firme, mas emocionada em muitos momentos, ela foi desfiando sua história como alguém que costura, ponto por ponto, a paixão de uma vida.
A conversa aconteceu sem pressa, como só as boas conversas sabem ser. Foi bonita e emocionante. A cada frase, transbordava dela o carinho por uma profissão que, apesar de tantas dificuldades, sempre lhe foi tão importante. Esse amor não é recente, tampouco silencioso, é algo que atravessa a forma como ela fala dos alunos, das escolas, das dificuldades, das pequenas vitórias que marcaram os seus dias em sala.
Nascida no interior de São Paulo, Marlene é a única filha de seis irmãos. Cresceu em uma casa simples, onde o afeto vinha mais do convívio entre os irmãos que da presença constante dos pais, sempre ocupados com o trabalho. Estudar era um luxo distante, e o sonho de ser professora parecia improvável. Começou a faculdade só depois dos vinte anos, numa rotina de conciliar os estudos com o trabalho e os filhos pequenos.
Ao longo da conversa, foi notável que tudo nela transborda afeto, pelo que viveu, pelas crianças que ensinou, pelos espaços onde passou. Guarda o primeiro dia como professora com nitidez comovente: foi em 3 de março de 1975, como substituta na Emei Lions Club e na Escola Estadual Torquato Minhoto. Ela tem certeza que lá sentem saudades da tia Marlene, e a lembrança dos reencontros com ex-alunos às vezes a emociona.
Contou sobre o período em que lecionou em uma escola rural onde havia apenas sete alunos, do primeiro ao terceiro ano. A estrada até lá era longa e incerta. O episódio mais marcante foi o dia do vazamento de gás de cozinha no carro adaptado pelo meu avô, que estourou. Só via criança correndo por meio do canavial. Marlene conta essa história rindo, e mesmo com tantos percalços, não desistiu. Pelo contrário, fazia a merenda, preparava os lanches e acolhia. “Às vezes, o simples gesto de oferecer um lanche era o que eles mais esperavam. Isso me fazia sentir que estava cumprindo minha missão”, conta com um brilho nostálgico nos olhos.

Foi preciso coragem para equilibrar as exigências do trabalho com as da maternidade, e, por vezes, abrir mão. Aposentou-se do Estado em 2012, mas nunca deixou de ser professora. Hoje, avó de três, segue ensinando. Seja nos resumos para as tarefas escolares, nos cochilos da tarde seguidos de pão na chapa, até nos ventiladores disputados durante os dias quentes. Há sempre algo que remete à sala de aula, mesmo dentro de casa. Ela transforma rotina em aprendizado, e até tarefa vira abraço.
Na verdade, nada do que ela disse me surpreendeu tanto. Cresci vendo minha avó ser apaixonada pelo que fazia, até meus oito anos, ela ainda lecionava. O que me impressiona é ver como essa paixão ainda permanece intacta.
Segurou o choro em vários momentos. No fim, sorriu e disse: “Ó, consegui não chorar”. Minha avó é assim, intensa e emotiva, mas firme. Relembrou os alunos com afeto, as famílias que confiavam nela, e até os desafios. “O que mais me tocava era quando eles conseguiam aprender algo que não imaginavam ser possível”.
Em um país onde cada vez mais professores se sentem desvalorizados, e o mundo parece esquecer o valor da sala de aula, minha avó é um lembrete de que a sala de aula continua sendo território de afeto e transformação. Ela não romantiza as dificuldades. Mas há em sua trajetória uma convicção serena de que valeu a pena insistir. E escutar tudo isso foi como entender de onde vem o meu próprio jeito de olhar o mundo, com esperança.