Texto e colagem: Ana Lorena Franco
Quase meia noite de 2 de março de 2025. Noite da premiação mais famosa da indústria cinematográfica mundial, o Oscar, no domingo de Carnaval. Nas ruas do Brasil, como esperado, as pessoas fantasiadas carregavam réplicas da famosa estatueta e, bandeiras nacionais estilizadas com o rosto da atriz Fernanda Torres apareciam penduradas em bares, lanchonetes e nas fachadas das casas. O motivo, o filme – e a repercussão que criou – Ainda estou aqui.
Ainda estou aqui é o primeiro filme brasileiro a ser citado logo após a famosa frase “e o Oscar vai para…”. O filme ganhou um lugar na História brasileira. História também contada no enredo e história com H maiúsculo. Walter Salles, diretor da produção, apresenta um dos períodos mais sangrentos do Brasil. Com prisões, exílios e mortes, a ditadura é um marco da história nacional, nos últimos anos constantemente questionada. Entre os mortos, o então deputado do Rio de Janeiro, Rubens Paiva, interpretado por Selton Mello.
Congressista assassinado pelas mãos dos militares, por tentar resistir às restrições impostas pelo regime, nesta história ele representa todas as pessoas desaparecidas e mortas durante esse período de repressão, tortura, censura, restrição de direitos políticos e perseguição a opositores.

Resistir, no sentido mais denso da palavra, foi, também, o que Eunice Paiva fez. Viúva de Rubens, preso e desaparecido na ditadura, e com cinco filhos, Eunice também foi presa pelos militares e lidou com o vazio do incerto por 25 anos até a certidão de óbito do marido ser entregue em suas mãos, em 1996. Formou-se em Direito e lutou ativamente pelos direitos humanos e se tornou símbolo da luta contra o regime autoritário. O filme mostra, em Eunice, a história de tantas famílias que lidaram com o luto de um familiar ou amigo sem nenhuma informação sobre seus paradeiros. Ainda hoje, muitos dos mortos e desaparecidos são apenas números, sem nome, sem lápides.
Fernanda Torres, atriz que interpreta Eunice, recebeu o carinho de brasileiros e brasileiras ao aparecer em entrevistas da divulgação do filme dentro e fora do território nacional. Nesse momento, Fernanda não era apenas uma atriz, era um país. País nosso que vem sendo deixado de lado, mesmo com obras cinematográficas dignas de aplauso. Não era apenas uma brasileira, uma mulher, mas um legado. Legado de sua mãe, Fernanda Montenegro, uma das atrizes mais renomadas da dramaturgia e cinema brasileiros, e que há 25 anos atuou no filme “Central do Brasil”, também dirigido por Walter e indicado ao Oscar. Filha que subiu aos palcos do Golden Globe, 25 anos após sua mãe, dessa vez com o prêmio em mãos, e selou não apenas uma conquista pessoal, mas um feito inédito para o cinema nacional.
Em tempos de discursos que relativizam ou negam os crimes cometidos na ditadura, levar para as plateias internacionais o quadro que dói mais na parede da nossa memória, mostra que o cinema é mais que entretenimento, é espaço de memória e de resistência. Ainda estou aqui, então, assim como Fernanda Torres, deixa de ser apenas uma ficção, para se tornar um manifesto de denúncia. Ainda estou aqui fez Carnaval em Hollywood, se tornou herança – artística e política. E apesar daqueles que amam o passado – porque ele não pode ser esquecido e define o que somos agora – nos reunimos e celebramos o cheiro da nova estação.
A ditadura militar terminou em 1985. Eunice faleceu com Alzheimer em 2018. Muitos desaparecidos durante a ditadura continuam desaparecidos. Muitos brasileiros e brasileiras continuam negando as atrocidades desse golpe militar. Apesar da luta, as cicatrizes da violência não se apagam. E talvez nem devam. Lembrar é muitas vezes o que faz resistir. O Brasil ganhou os holofotes do mundo e os dias de luta continuam nesse pedaço de terra continental e complexo que é o nosso país. Continuamos aqui.