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“Deus me abençoou quando me fez trans”


Aos 15 anos, em plena adolescência, uma fase em que as emoções se intensificam e aprender a lidar com a vida se torna inevitável, Lucas se reconheceu um homem trans. Antes disso, já se identificava como bissexual, mas o desconforto com o próprio corpo o fez passar por um processo de questionamento de gênero. “É meio maravilhoso a gente se dar conta de quem realmente somos, ainda mais sendo adolescente, mas eu sabia que seria difícil”, conta.

Ao revelar sua identidade, Lucas Pirat recebeu apoio da maioria dos amigos e colegas. Para os familiares, o processo foi mais gradual. Sempre morou com o pai e os avós paternos, e foi à avó a quem primeiro contou, por meio de uma cartinha. “Ela guarda até hoje, na bíblia”, lembra com carinho. Foi ela também quem comprou suas primeiras roupas masculinas e o acompanhou em cada passo da transição. “Ela sempre foi uma mãe para mim.”

Aos 16 anos, um pouco antes do início da pandemia e um ano depois de se reconhecer, Pirat se assumiu como homem trans em sua nova escola e fez um pedido essencial, que passassem a usar seu nome social. “Todos os professores lidaram muito bem, eu fiquei muito feliz.” No entanto, esse período também trouxe grandes desafios. A pandemia foi uma fase difícil para muitos. Ele enfrentou momentos delicados e chegou a fazer uso de antidepressivos. Nesse momento conturbado, seu pai descobriu que ele era trans.

Aos 17 anos, ingressou na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Inicialmente, decidiu cursar Pedagogia. “Sempre gostei de ensinar e tem mais mil motivos, mas principalmente porque sofri muita transfobia da diretora da escola. Eu tinha todos os meus professores do meu lado. A educação acolhe e transforma”, afirma.

Aos 21 anos, Pirat é estudante de Psicologia. Seis anos após se reconhecer, está em um relacionamento transcentrado com uma jovem de 24 anos e diz que a maior parte de sua família o trata com muito afeto e respeito. “Nunca tive vontade de destransicionar”, afirma com convicção. Para ele, ser trans é uma bênção que lhe proporcionou aprendizados únicos. Cita um trecho do livro O ato da criação, que o marcou profundamente. “Deus me abençoou quando me fez trans, pelo mesmo motivo que fez o trigo, mas não o pão, a fruta, mas não o vinho: para que toda a humanidade pudesse compartilhar do ato da criação”.

Pirat conta que as maiores dificuldades enfrentadas durante sua transição foram financeiras. “É muito caro tomar testosterona. Precisei parar por um período. O Sistema Único de Saúde (SUS) não estava fornecendo e eu não tinha condições de pagar”, lembra. Realiza exames e consultas periódicas há três anos no Hospital Universitário, onde recebe as injeções mensais.

A questão do preconceito ainda é delicada. Ele lembra de situações constrangedoras no ensino médio e quando tentou doar sangue, ambas envolvendo o uso do nome social. Já na faculdade, esse reconhecimento melhorou muito. A retificação do nome e do gênero em documentos oficiais também foi um processo desafiador, principalmente pelos custos envolvidos. “Demorei para fazer. Retifiquei só a certidão de nascimento por enquanto, um dia antes do meu aniversário. Era muito complexo e caro. Mas aconteceu um mutirão de cartórios pelo país inteiro, e consegui fazer gratuitamente”. Sua namorada também aproveitou para retificar seus documentos.

Um espaço importante no processo de transição e reconhecimento foi o Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), referência no atendimento a pessoas LGBTQIAPN+ e em situações de vulnerabilidade. “O CTA é incrível. Eles são muito bem treinados para lidar com a gente, sem tabu, com acolhimento de verdade”, elogia.

Lucas Pirat é um homem trans que trilhou sua jornada desde jovem. Sua trajetória é marcada pela coragem, pela força das conexões afetivas e pela certeza de que a identidade é, antes de tudo, um ato de criação e amor.