A tradição musical que atravessa o tempo e sustenta a identidade de MS
Texto: Nayane Aleixo | Mileny Barros
No Pantanal sul-mato-grossense, a música não é só arte e diversão, é herança. Um fio condutor de memórias e territórios. Em cada acorde de chamamé, em cada verso da polca paraguaia e em cada dança do rasqueado, existe uma identidade forjada entre a poeira das estradas de terra vermelha e os ecos das influências fronteiriças. É música de encontros, marcada por séculos de trocas culturais que ainda reverberam nos ritmos e nas vozes do presente.
Essa relação entre música e território não é apenas sensorial, é também histórica e política. Os ritmos que ainda hoje ecoam nos salões e nas rádios do estado carregam narrativas de pertencimento, resistência e mestiçagem cultural. Entender como esses sons se fixaram na alma sul-mato-grossense é mergulhar em processos de formação social e fronteiriça que ultrapassam o campo artístico-musical.
É sobre esse enraizamento que se debruça o jornalista e pesquisador Waldir Rosa. Ele explica que esses estilos estão entre os mais executados por artistas locais e se tornaram os principais marcadores dessa identidade musical. Em seu estudo, destaca o peso das influências fronteiriças, sobretudo do Paraguai, na construção da cultura local. “Apesar do preconceito histórico com os paraguaios, principalmente após a Guerra [do Paraguai], a música vinda de lá encontrou solo fértil aqui”, comenta.
É no rasqueado que a maneira de tocar o violão, deslizando os dedos sobre as cordas mais agudas, se materializa em tradição de forma mais visceral. “O rasqueado é a maneira como o chamamé, a guarânia e a polca são tocados por aqui”, explica Waldir. Mais do que um estilo musical, ele representa um modo de manipular os instrumentos e sentir o que foi sendo transmitido de geração em geração.
Nos salões de baile, essa é uma herança que ainda vive com força. Debaixo das lonas ou no piso de madeira das associações comunitárias, os casais se encontram ao som da sanfona, da viola, do violão e do acordeon. As melodias carregam o peso das histórias locais: falam da terra, do rio, do povo. Trazem nas letras o amor às belezas naturais e à região. São versos que cantam o pertencimento e transformam a música em território, também, emocional.
Nos salões de baile, essa é uma herança que ainda vive com força. Debaixo das lonas ou no piso de madeira das associações comunitárias, os casais se encontram ao som da sanfona, da viola, do violão e do acordeon
O pesquisador e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Evandro Higa, reforça que essa musicalidade fronteiriça se consolidou no estado como uma marca identitária profunda. Segundo ele, a presença dos paraguaios na região desde o século XIX, foi intensificada no período da Guerra do Paraguai e trouxe para o estado a polca paraguaia, gênero que passou a ser praticado em fazendas, bailes e em pequenas cidades. “Isso aí vai acabar se tornando uma marca de Mato Grosso do Sul, uma marca das nossas fronteiras com o Paraguai”, explica.
A partir da polca paraguaia, um dos primeiros estilos musicais no estado, é que surgiu um leque de influências e novas formas de expressão. O chamamé, que nasce no nordeste da Argentina, e o rasqueado brasileiro, que foi criado por músicos caipiras encantados com as polcas aqui nas fronteiras, são desdobramentos dessa tradição.
Essa mescla de gêneros configura o que Higa chama de música fronteiriça: um conjunto que carrega traços do Paraguai, da Argentina e do Brasil, mais especificamente do estado, onde os estilos são praticados até hoje. Na capital sul-mato-grossense, as tradições resistem. Programas de rádio como A Hora do Chamamé, da rádio Educativa, tocam clássicos que embalaram gerações e conectam o passado ao presente.
Zé Corrêa foi um dos primeiros artistas a interpretar e gravar o chamamé com elementos regionais sul-mato-grossenses. Nasceu em Nioaque e nunca teve um professor que o ensinasse a tocar qualquer instrumento, mas aos 15 anos já era um exímio musicista. Foi em Campo Grande que sua arte transcendeu. Em uma carreira profissional de cerca de 10 anos, lançou quase 40 álbuns e compôs 72 músicas. Essa produção inclui trabalhos solos, compactos e participações com duplas como Milionário & José Rico, Délio & Delinha, Crione & Barreirito, entre outras.
Márcio Filho, que hoje ajuda a regar essas raízes. Músico, bandoneonista e pesquisador, ele vê no chamamé muito mais que uma herança familiar, um eixo de construção cultural e emocional do povo pantaneiro. Destaca que, nos anos 1960, seu avô teve papel essencial na naturalização desse ritmo no estado. “Não trouxe o chamamé como algo estrangeiro, mas como a revelação de uma alma musical que já existia no povo do lado de cá da fronteira, ainda que latente”, afirma.
Foi nesse ambiente de confluência que nasceu e cresceu o músico Evanio Vargas, o Guarany, da dupla com Tostão. Natural de Campo Grande, mas criado no bairro Dom Bosco, em Corumbá, e musicalmente moldado pelas tardes no Porto Geral. “Ali no Porto a gente tinha a oportunidade de ver de tudo. Vinha o pessoal do Paraguai, da Bolívia, do interior. Era sanfoneiro, violeiro, era o cara com bumbo… e tudo se misturava. Ouvia-se muita polca, guarânia, chamamé. Muita música paraguaia, mesmo”, conta. Guarany se lembra com carinho da infância vivida às margens do rio Paraguai e afirma que foi em Corumbá que ele se formou músico, cidadão e ser humano.

Entre as rádios AM e os bailes de bairro, Guarany ouviu as vozes de Zé Corrêa, Dino Rocha, Almir Sater e tantos outros artistas que ajudaram a formar sua identidade musical. “Aquilo foi uma escola. A gente ia nos bailes do Zé Corrêa, mesmo criança, ficava do lado de fora só pra ouvir. A música vinha de dentro do salão e batia direto no nosso peito”.
Naquela época, as festas de comadres e compadres no próprio Dom Bosco eram alimentadas por essas referências. Guarany lembra que os eventos familiares, religiosos e comunitários da cidade sempre foram marcados por essa música de fronteira, que circulava sem pedir passaporte. “A música aqui sempre foi esse amálgama. O cara que tocava chamamé também tocava samba, às vezes tocava até um bolero. Era tudo muito livre”.
Capital do chamamé
Campo Grande, considerada por lei federal a Capital Nacional do Chamamé, parece respirar o ritmo fronteiriço que nasceu entre os rios Paraná e Uruguai, atravessou a Argentina e chegou ao coração de Mato Grosso do Sul. A sanção presidencial ao Projeto de Lei nº 4.528/2019 não fez mais que colocar em letras oficiais o que há muito ecoava nas esquinas, nos rádios e nas pistas de madeira: aqui, cada acorde é território.
Campo Grande, considerada por lei federal a Capital Nacional do Chamamé, parece respirar o ritmo fronteiriço que nasceu entre os rios Paraná e Uruguai, atravessou a Argentina e chegou ao coração de Mato Grosso do Sul
É no chamamé onde se entrelaçam heranças guarani, afro-americanas e europeias; é onde a polca correntina, a guarânia paraguaia e o rasqueado sul-mato-grossense trocam sotaques e formam uma língua musical única. Quando o bandoneón, ou a sanfona se alinham a dois violões, nasce o típico “conjunto chamamezeiro”, pequeno suporte de orquestra que põe o corpo em movimento e a memória em festa. Foi por essa força que, em 2020, a Unesco cravou o chamamé como patrimônio cultural da humanidade.
A Presidência da República, ao anunciar a honraria, definiu-a como tributo à “comunidade campo-grandense e a todos quantos se permitem dançar”. E lembrou o nome mais antigo desse sopro guarani: “chamamé”, que seria um chamamento para a dança, improviso, a vontade súbita que faz o casal se erguer da cadeira e insinuar um primeiro passo.
No Clube Bom Demais, endereço onde a noite se veste de luzes coloridas e os campo-grandenses aproveitam para dançar, Justina Moura desliza há trinta anos. Foi ali que o chamamé lhe apresentou José Lopes, convite de dança primeiro, namoro de olhares depois, e amor para a vida inteira. “Dançar me deixa animada, me faz feliz. Aqui conheci o amor, fiz amigos e vivi minha vida”, confessa, enquanto o acordeão gira feito um relógio de lembranças.

Alguns passos adiante, Edemir Cândido dos Reis, 67 anos, encontra na cadência do chamamé remédio contra a tristeza. Chegou ao baile por um acaso, procurando por alegria e descanso, e ficou por uma vida inteira. “É terapia”, resume. “Quando a depressão apertou, foi a música que me abriu a porta”, define alegre.

Felicidade essa compartilhada por Maria Marielle e Iracy Sampaio, que também marcam presença com passos afinados e olhares cúmplices. Moram no mesmo condomínio há mais de uma década e frequentam juntas o salão quase todo fim de semana e feriado. “A gente escuta uma música, conversa, dança. É gostoso”, conta Iracy. “Desde menina que eu danço”, emenda Maria, enquanto enumera os estilos preferidos: chamamé, vaneira, sertanejo. “Qualquer coisa que tocar, a gente dança. Até o Tchaka Tchaka!”, brincam. Foi no boca a boca, de amiga em amiga, que conheceram o clube. O salão virou casa. E a música virou rotina.



O anfitrião de tudo isso é Alan Tunis. Inventou o clube para equilibrar a vida de pai com o desejo de trabalhar. Antes trabalhava numa empresa privada durante a semana toda e só lhe restavam os finais de semana para aproveitar. Agora, é o contrário, trabalha somente aos sábados e domingos, quando o local funciona. Apesar de ser um amante do rock, escolheu o bailão quando percebeu que a cidade pedia pelo coração da sanfona. “Todo sábado e domingo a casa enche. É maravilhoso”, conta, observando a pista fluir, no bairro Tijuca.
Resiste entre gerações
“Aqui no meu Mato Grosso do Sul
O céu é mais azul
A natureza é mais bela”
Assim começa a música de Thauanne Castro, cantora sul-matogrossense de apenas 23 anos. Ela descobriu a música ainda menina, quando seus dedos pequenos aprenderam os primeiros acordes no violão aos seis anos. Quando tinha apenas oito, já levava sua voz aos palcos, às rádios e à televisão com uma naturalidade impressionante. Desde então, sua presença passou a ser notada como promessa viva de uma nova geração da música pantaneira.
“Aqui no meu Mato Grosso do Sul
O céu é mais azul
A natureza é mais bela”


Inspirada pelas melodias profundas de Almir Sater, mestre das cordas e das paisagens sonoras do Pantanal, Thauanne floresceu não só como intérprete, mas também como compositora. Aos 10 anos, gravou seu primeiro trabalho, O Canto dos Passarinhos, um voo de estreia que mesclava composições próprias com interpretações sensíveis, revelando maturidade rara em tão pouca idade.
Em 2016, conquistou os jurados e o público no Festival Fesmorena, e quatro anos mais tarde, o lançamento do clipe História de Amor firmou seu nome entre as grandes vozes da música sertaneja e pantaneira contemporânea.
Em 2024, brindou seu público com a composição Pantanal Sul-mato-grossense, uma ode em forma de chamamé ao chão onde nasceu. A canção, suave e vibrante como o voo de uma arara ao entardecer, exalta a riqueza da fauna e da flora do estado, traduzindo em melodia o amor profundo que a artista sente por sua terra. Com versos que convocam à preservação e ao encantamento, Thauanne se firma como uma voz que ecoa não apenas canções, mas a riqueza da cultura sul-mato-grossense.
Ela que vem de uma família de músicos e sempre recebeu apoio para seguir seu sonho na música, nunca pensou em estilos diferentes, sua voz sempre seguiu o verdadeiro ‘modão raiz’. “Eu sou apaixonada pelo nosso estado. Tudo que tem aqui é lindo demais. Gosto muito de trazer nas minhas músicas as belezas da natureza, da nossa cultura. Não tinha como eu ser diferente”.
Mais do que tradição, a música relembra o que foi vivido e projeta o que ainda pode ser sonhado. Das memórias construídas por antigos artistas aos novos nomes como Thauanne Castro, o que se ouve é uma cultura que pulsa no presente, feita de encontros, memória e paixão. Porque no Mato Grosso do Sul, o que se canta também se espalha, se transforma, e a melodia se mantém. Viva onde for sentida.