Ao longo da história, pessoas pretas tiveram que lutar para ter seu espaço no esporte e construir uma identificação com cada modalidade enfrentando questões sociais, genéticas e econômicas
Texto: Marcos Melo | Noysle Carvalho
A presença de atletas pretos no esporte ganha projeção na Alemanha nazista comandada por Hitler em 1936, nas Olimpíadas daquele ano. O regime nazista buscava provar a supremacia da raça branca e Hitler não esperava que Jesse Owens, atleta afro-americano, chocaria o público no Estádio Olímpico de Berlim. O velocista conquistou quatro medalhas de ouro nos 100 e 200 metros rasos, salto em distância e no revezamento 4X100. Com o nome marcado na história do atletismo, quebrou a expectativa daqueles que reforçavam estereótipos e racismo no esporte.
Preconceito, racismo e questionamentos acerca de pessoas pretas não são de hoje, muito menos na Berlim de 1936. Sentimento e identificação, inúmeras vezes tiveram tentativas de apagamento e fortemente resistiram a esses ataques. Mas qual é esse sentimento? A vontade de ser parte de algo com o qual possa se identificar vai muito além do singular, faz parte do coletivo de pertencer.
Após a Segunda Guerra, o esporte se popularizou e as pessoas negras foram se integrando cada vez mais ao mundo das competições. Se anos antes, Owens se consagrava, nos anos seguintes grandes nomes se destacavam na luta por um mundo esportivo mais inclusivo. No Brasil, Pelé, aos 17 anos, conquistou a primeira Copa do Mundo de futebol em 1958, e depois em 1962 e 1970.
Nos Estados Unidos, Michael Jordan, na década de 1990, brilhou com seis títulos da National Basketball Association (NBA) pelo Chicago Bulls, além de dois ouros olímpicos com a seleção americana de basquetebol. A tenista Serena Williams, vencedora de 73 títulos da Women’s Tennis Association (WTA) além de 23 grand slams, se consagrou como a maior vencedora da modalidade. Outros exemplos que brilham: o britânico Lewis Hamilton e suas sete conquistas da Fórmula 1, um recorde; a ginasta Simone Biles com seis títulos mundiais no individual geral e outras sete medalhas de ouro olímpicas.
Todos têm algo em comum: são considerados por muitos os maiores nomes de seus respectivos esportes. Ainda que em modalidades distintas, cada um deles nutre um senso de identificação, que surge de diferentes formas, tanto para quem já está dentro do esporte, quanto para pessoas negras que os admiram.
A questão genética
Muitos defendem que pessoas de diferentes raças possuem características físicas específicas que favorecem a prática de determinado esporte. Essa concepção não é totalmente falsa, mas é uma perspectiva simplória. O professor do curso de Educação Física da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Hugo Santana, esclarece que “a característica corporal pode sim influenciar. A depender do esporte, a altura, que é disposta geneticamente, pode ser favorável à prática de basquete e vôlei, por exemplo”.
Porém, ressalta que outros aspectos não tão visíveis aparecem em indivíduos de determinada etnia. As fibras vermelhas apresentam resistência maior, favorecendo a continuidade no exercício; as fibras brancas estão associadas à potência. Mas essas características dependem muito do método de análise porque podem aparecer em diferentes músculos presentes no corpo humano. O mais importante disso tudo é: a influência genética pode existir, mas não é tão significante.
As pessoas negras têm maior predisposição de fibras brancas, o que impacta no desempenho de provas de potência rápida, como no atletismo. Porém, não necessariamente provas de resistência, que são preferidas pelas fibras vermelhas, que favorecem atletas brancos. “Essa influência genética não é tão significativa, algo em torno de 10% que favorecem à prática dessas modalidades. Fatores sociais e econômicos são muito mais influentes nesse sentido”, explica Santana.
Desigualdade étnica
Além do genético, o social é um dos fatores presentes não só no Brasil, mas no mundo acerca das escolhas e influência na prática de esportes. O estudo “Desigualdades sociais por cor e raça no Brasil,” de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que aspectos sócio-econômicos como a taxa de pobreza, desemprego, educação, renda e moradia aparecem mais favoráveis às pessoas brancas do que pessoas pretas ou pardas.
Pessoas abaixo da linha da pobreza representam 32,9% da população preta ou parda, enquanto apenas 15,4% da população branca. Já a pobreza extrema afeta 3,6% dos brancos e 8,8% dos pretos ou pardos no Brasil. Essa diferença gritante também aparece na representação política, cargos gerenciais, analfabetismo e taxa de homicídios.
Nesse contexto, a desigualdade aparece como dificuldade para praticar esportes de elite que exigem mais recursos financeiros, como automobilismo, golfe e hipismo. Portanto, quanto menos o esporte demanda para praticá-lo, mais acessível ele é. Essa razão explica o porquê esportes de corrida são tão populares na África – para além da questão genética – e em outros países que têm presença de populações de origem africana, como a Jamaica, referência no atletismo.
Racismo e Identificação
Todas essas questões influenciam na escolha de uma modalidade, além da motivação. Para Camila Rojas, 18 anos, atleta de futsal e futebol, sem a inspiração de pessoas pretas, ela não estaria no esporte. “Entre as mulheres, foi a Formiga. Eu acho muito lindo a representatividade que os negros têm dentro do esporte. Inclusive, o Vini Júnior, o Endrick. Eles me inspiram bastante”.

A identificação dessas pessoas pretas no esporte é o que as colocam em local de pertencimento. A ideia de que para existir uma identidade dentro de algo que se pratica, só faz sentido quando o lado emocional se liga ao racional, de forma que seja uma construção de mão dupla. “Dá realmente um lugar de fala para as meninas e os meninos, né? É mostrar quem realmente são. O esporte, com certeza, muda vidas, transforma, traz autoestima. O esporte é tudo,” argumenta Camila.

Essas dificuldades também influenciam na decisão da pessoa preta em praticar um esporte ou não. O psicólogo do Operário Futebol Clube e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Edilson Reis, o único na área da psicologia esportiva em Campo Grande, afirma que a psicologia no esporte é necessária não só para entender o emocional dos atletas quando em jogos, mas para promover a inclusão social. A escalada para ser atleta em esportes que exigem mais do que a bola no pé, é difícil e ultrapassa a barreira do condicionamento físico ou da habilidade.
O futebol é o esporte mais praticado no Brasil e é uma paixão nacional. Concentra o maior número praticantes negros no país. Estudo da Escola de Educação Física e Esporte da USP (EEFE) mostrou que, em 2023, aproximadamente 60% dos jogadores da Série A do Campeonato Brasileiro masculino eram negros. Porém, essa proporção fica um pouco apagada quando se vê que esse ambiente também é bastante afetado pelo preconceito racial, tanto dentro quanto fora de campo.
O Levantamento do Observatório da Discriminação Racial no Futebol da Fisia Comércio de Produtos Esportivos em parceria com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), revela que mais de 41% dos jogadores dos principais campeonatos do país já sofreram racismo. As ofensas vão de “piadas” à ataques pessoais e ocorrem em sua maioria nos estádios (53%), seguido pelas redes sociais (31%) e centros de treinamento (11%).
Um exemplo é o episódio da torcedora do Grêmio, que desclassificou o time gaúcho da Copa do Brasil ao insultar Aranha – então goleiro do Santos – em 2014. Torcedores e jogadores brasileiros sofrem manifestações preconceituosas por parte dos sul-americanos nas competições continentais, sobretudo na Argentina. Na Espanha, Vinicíus Júnior vêm enfrentando perseguição e preconceito há anos.
Quando o racismo no esporte é posto em pauta, o psicológico daquele que é vítima é colocado em jogo também. “É um impacto pessoal. Ele deixa de ser visto como uma pessoa humana e é objetificado. Você tira a identidade dessa pessoa. Ele deixa de existir. E isso é traumático. Não só na vida profissional, mas na vida pessoal dele”, afirma o psicólogo.
É um impacto pessoal. Ele deixa de ser visto como uma pessoa humana e é objetificado. Você tira a identidade dessa pessoa. Ele deixa de existir. E isso é traumático. Não só na vida profissional, mas na vida pessoal dele
Para Camila, o esporte pode mostrar quem as pessoas são. Ela reconhece as dificuldades quando se é uma atleta preta, mas não desanima. “A gente vê tanto racismo, tanto preconceito em relação às mulheres e também ao povo negro. Nunca tive uma pessoa aqui para me apoiar, sempre fui eu por mim mesma. Mesmo assim, eu sinto que essa é minha casa, sinto que é o meu lugar”, afirma a jovem.
Esporte de Clube
Enquanto alguns esportes são mais democráticos, outros exigem mais para que possam ser praticados. “Barreiras surgem já que muitos dos esportes são praticados em clubes, que exigem filiação. Essas filiações normalmente são caras. Quanto melhor a estrutura, mais gastos. O acesso à esses espaços é bastante dificultado olhando pelo lado social”, explica o professor Hugo Santana.
Modalidades como a natação e o tênis são clássicos exemplos desse tipo de limitação imposta pelas necessidades de clubes. O vôlei, ainda que em menor escala, também entra nesse âmbito. Embora seja um dos esportes mais praticados no Brasil, sofre com uma sub-representatividade quando se olha para o lado racial. Fê Garay, Wallace, Fofão e Lucarelli aparecem como alguns dos poucos nomes de atletas pretos que já representaram as seleções de vôlei do Brasil.
Historicamente, o voleibol brasileiro, até os Jogos de Paris, em 2024, mostrava que 18 homens negros de um total de 98 – em 15 edições – e 17 mulheres negras de 74 ao todo – em dez torneios – já disputaram as Olimpíadas vestindo os uniformes amarelo e azul.
Ainda que baixa, essa representatividade é importante para jovens da etnia que praticam o esporte e se inspiram nesses raros exemplos. Matheus Henrique, 17 anos, é atleta da Escolinha Leomar de Voleibol e vê em Darlan Souza, destaque da seleção brasileira masculina, uma fonte de motivação para a prática esportiva. “A gente vê várias pessoas por aí cometendo pequenos delitos, na mesma idade que eu. Indo para caminho errado. O esporte ajuda muito. O recurso que eu achei foi aqui dentro, jogando, para ficar fora das ruas. E hoje eu me encontro aqui, treinando. E não pretendo sair tão cedo”, conta o jovem atleta.

A gente vê várias pessoas por aí cometendo pequenos delitos, na mesma idade que eu. Indo para caminho errado. O esporte ajuda muito. O recurso que eu achei foi aqui dentro, jogando, para ficar fora das ruas. E hoje eu me encontro aqui, treinando. E não pretendo sair tão cedo


Matheus entrou no vôlei influenciado pelos amigos, que também praticavam o esporte. Ele relata que vem notando cada vez mais a presença de colegas negros nos treinos, assim como em outras equipes nos campeonatos que disputa. “Eu me identifico muito com o vôlei. Às vezes as pessoas tentam colocar a gente em um nível abaixo por conta da nossa cor, então, ver atletas como o Darlan e outros da minha cor jogando ao meu lado e contra mim me inspira e nutre esse carinho que eu sinto pelo esporte”.

A professora Marcela Lima, atleta e técnica de vôlei na escolinha de Matheus, como mulher preta, reforça esse sentimento no seu modo de ensinar. “Tem todo um contexto social, então desde que eu entrei aqui, coloquei na cabeça dos meninos que isso aqui é uma família, não uma simples equipe. É um pelo outro. Aqui eu sei que eles se sentem bem agregados, são muito unidos”, enfatiza a professora.

O que para alguns é visto como lazer, para outros o esporte é questão de oportunidades e que não são oferecidas a todos. “Nós sabemos que temos vários talentos aqui, que muitas vezes vêm da periferia, dos bairros, de cidades pequenas do interior. Muitas vezes são negros, são pardos, são indígenas, são filhos de trabalhadores rurais que não têm essa oportunidade”, acrescenta.
Marcela explica que, no esporte, é preciso entender e respeitar as diferenças de cada um, deixando de lado estereótipos, como os que falam que aqueles que jogam vôlei são gays, ou que a modalidade é exclusiva para brancos. Desta forma, as crianças e adolescentes que ingressam nesse mundo podem se sentir acolhidas e construir uma identificação, e lembrar que o esporte é lugar de pertencimento para todos.