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O que veste meu corpo?

Como a indústria da moda pensa e inclui mulheres negras 


Saber expressar a própria identidade através da roupa é, ao mesmo tempo, sobre resistência e autenticidade | Foto: Ninfa Ribeiro

O visual chega antes dela. Veem o cabelo, às vezes com seu black “quanto mais volume melhor”, às vezes experimentando diferentes penteados e estilos de tranças. Os acessórios se destacam e compõem um estilo único, ao mesmo tempo que carregam muita história.

Maria Carolina Ferreira, mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), escritora e ativista em movimentos de moda, arte e resistência negra, entendeu desde cedo o poder da moda para uma mulher preta. Com 26 anos, ela não se veste ao acaso, e sempre tem a intenção de comunicar algo com as escolhas que faz em cada item que compõe sua maneira de se apresentar para o mundo.

Essa relação com o universo da moda começou na tentativa de se encaixar em seus próprios padrões e aqueles impostos pela sociedade. “Foi muito uma insatisfação, por não gostar de como eu era e de como as pessoas me viam, aí a moda e a escrita foram ferramentas para eu conseguir existir”.

Um exemplo foi a relação com seu cabelo, e a falta de referências e produtos que a levaram a alisá-lo ainda criança. Ela sofreu com as reações adversas e efeitos colaterais dos produtos químicos agressivos utilizados.

A situação mudou quando o letramento e reconhecimento racial passaram a fazer parte de sua vida. Então, procurou elementos que valorizavam e realçavam seus traços. Percorreu longo caminho até (se) encontrar. Assim como muitas meninas negras na época da sua juventude, as poucas referências com quem pudesse se identificar e a ausência de itens específicos para a beleza negra foram obstáculo para sua aceitação.

Roupas, acessórios, maquiagens e outros elementos podem ser usados para definir a mesma palavra: moda. Mas, esse conceito abrange infinitos fatores, da matemática à sociologia. Pensar e estudar moda para entender a sociedade pode ser, de fato, relevante. Em especial, se considerarmos os primeiros registros da moda na antiguidade e o caminho que ela percorreu até os dias atuais, em contextos e grupos diversos, traçando desta forma, um paralelo com a racialidade, classe, exclusão e inclusão, entre outras questões.

Da ancestralidade até aqui

Historiadores que estudam a influência de Mansa Musa, décimo líder do império Islâmico do Mali, conhecido pelo seu gigantesco império e dono da maior foturna da história mundial e exuberante estilo de vida, apontam como ele reafirmava sua riqueza por meio de sua imagem, em roupas e joias impactantes. A ostentação e a vaidade iam além de suas vestimentas, alcançando também quem estava no seu entorno.

O uso da vestimenta para reforçar uma identidade social ajuda a ilustrar e a pensar o impacto atual desses elementos identitários, que posteriormente foram compreendidos como parte da moda. A pesquisadora e coordenadora de Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI) da UFMS, Eugênia Portela, explica que a relação da população e dos movimentos negros com a moda é principalmente como ferramenta de pertencimento e afirmação identitária, coletiva e/ou individual, pois a definição de movimento negro vai além da existência de um grupo de pessoas.

Com o apagamento histórico da cultura, religião, costumes e outras características dos povos originários negros, surge a necessidade de resgate ancestral como forma de resisistência a opressão. É quando passam a se comunicar através das roupas. Segundo Gustavo Antoniuk e Marcela Luiza Casagrande no artigo “O ato de vestir: o negro entre a moda e a sobrevivência”, a moda passa a atuar contra as práticas discriminatórias. “Foi fundamental para a consolidação de algo que havia se perdido nas centenas de anos da escravidão: a identidade desse povo.”

No Mato Grosso do Sul, a moda que busca prestigiar a ancestralidade existe, ainda que escassa. Karla Velasco, produtora cultural e responsável por eventos de moda inclusiva na região, acompanha diariamente esse cenário, e sabe que, apesar da importância, a evolução acontece aos poucos. “Desafios a gente já está deixando para trás, acho que agora a gente precisa estimular as pessoas […] Estamos em um linguajar onde a moda africana e a moda ancestral estão muito em pauta”.

Este ano, o MET Gala, um dos eventos mais prestigiados e importantes no mundo da alta costura, teve como foco a cultura cheia de história e ativismo do povo preto. O Superfine: Tailoring Black Style (Superfino: Alfaiataria do Estilo Negro) reuniu celebridades, como a cantora Lauryn Hill e a rapper Doechii, demonstrando a resistência e força da identidade negra. Na história, a ascensão das vestimentas e do alfaiate fino na comunidade surgiu pelo dandismo, um movimento que buscava transmitir elegância e excelência por meio da aparência.

Nos holofotes, a presença de mulheres influentes no meio artístico complementando a moda com o cabelo afro e acessórios como o durag, fez do MET Gala 2025 um momento de reunião entre a moda histórica e a atual. A quebra de padrões até a inserção na moda, inicialmente esteve ligada a uma elite europeia, realizada pelo dandismo negro, simboliza hoje o que seria a inclusão construída por meio da resistência.

Símbolo de cultura e de movimentos que lutam por direitos de igualdade para toda uma comunidade, o cabelo crespo solto e com muito volume, as tranças e os acessórios que se popularizaram devido a cultura da população negra, ultrapassam a ideia de busca pela autenticidade, pois carregam o uso que traduz identidade, força e reafirmação racial. O termo Black Power é até hoje usado para definir cabelos crespos volumosos, de formato arredondado e com menos definição, mas na verdade representa força, luta, um movimento que surgiu na década de 60, nos Estados Unidos, como protesto e revolução de grupos afrodescendentes que buscavam direitos civis e equidade. Esse movimento influenciou não somente a política, mas também a cultura e, principalmente, a moda. Criando uma marca e o forte resgate cultural e social da cultura afro-americana, que posteriormente tornou-se mundial.

Do lápis “cor de pele” ao tom de nude rosa claro

A criação de produtos que atendem especificamente às necessidades da população negra, é algo muito recente. As opções atuais para o cuidado com todas as curvaturas de cabelo e os itens de maquiagem, como alguns contornos até para a pele mais retinta, só estão nas prateleiras do mercado devido à lutas sociais e à demanda do público consumidor. Por muito tempo, as possibilidades eram escassas ou inexistentes. O foco das marcas eram produtos que buscassem amenizar traços que estivessem fora do padrão eurocêntrico hegemônico. Em artigo publicado em 2024 por pesquisadores da Escola de Humanidades da PUCRS, sobre as representações da pessoa negra na publicidade brasileira nos séculos XX e XXI, foi demonstrado que os primeiros fabricantes de produtos capilares que pensaram nos cuidados com o cabelo cacheado e crespo só surgiram a partir de 1986.

Em 2024, a empresária e influenciadora Bianca Andrade, mais conhecida como Boca Rosa, lançou a base multifuncional com 50 tons, atualmente a maior cartela de cores do Brasil. Sua fórmula ainda se adapta a diferentes subtons, acolhendo as inúmeras nuances e particularidades de cada pele. No mesmo ano, a empresária Mariana Saad, lançou produtos que não atendiam peles retintas e gerou insatisfação nas redes sociais, levando a marca e a proprietária a se redimir publicamente.

Os casos retratam que quando se trata de inclusão de pessoas pretas como público alvo de um produto de beleza, o mercado pode possuir vertentes diferentes, mas a demanda existe e os posicionamentos da marca definem seu consumo.

A limitação de referências de mulheres pretas e a negação da beleza de suas características e traços naturais, fizeram com que personalidades como Grace Jones fossem uma quebra dos ideais impostos no cenário da moda. A pele retinta, nariz negroide e lábios carnudos e hiperpigmentados, o corte de cabelo Flat Top crespo e o conjunto de alfaiataria com ombreira compuseram a capa de seu álbum Nightclubbing, de 1981.  Essa imagem é, até hoje, uma das referências mais fortes e populares da moda afro.

Para mulheres negras, que durante a infância não poderiam se sentir representadas no universo de filmes de princesa, que só gostavam do cabelo quando alisado, e que não encontravam maquiagens que valorizassem sua beleza, ver as pequenas e grandes mudanças para as novas gerações é um motivo de esperança. Essas transformações podem parecer insignificantes aos olhos de quem não vive o preconceito, mas em uma realidade onde ser negro é, constantemente, resistir a um sistema excludente, quem sente na pele, nos pelos, na modelagem, sabe.

Quanto custa a inclusão?

Além da ideia de construção de uma imagem intencional e da demonstração de personalidade por meio do vestuário, a moda, quando entendida como uma indústria e potencial ferramenta de inclusão e identificação de uma comunidade, torna-se a causa da presença ou ausência do sentimento de pertença de um público.

Conforme Miguel Gonçalo, mestre em Design Management, a moda precisa refletir mais sobre as possibilidades de inclusão. “O termo Inclusão, no ponto de vista da indústria da moda, é visto como uma tendência pesada e influente, que normalmente é utilizado de forma negligente pelas marcas sem que estas tenham a noção do nível de responsabilidade que ela tem”.

A negligência das empresas quanto ao tamanho da responsabilidade pode ser vista por exemplo em campanhas publicitárias, com estratégias que são normalmente pensadas e construídas de acordo com seus valores éticos. Em 2017, a Dove, por exemplo, foi responsável por uma propaganda que levantou sérias pautas raciais devido ao seu conteúdo questionável. O comercial apresentava uma mulher negra se “transformando” em mulher de pele clara, após fazer o uso do produto corporal divulgado.

Em 2024, lançou outra linha de cosméticos específicos para pessoas de pele preta, e a campanha de divulgação focou intensamente na inclusão e na preocupação com esse público específico. Essa nova postura pode ser um exemplo de como o mercado adapta seus discursos de acordo com necessidades e demandas capitais e sociais.

Segundo a pesquisadora Eugênia Portela, o mercado é movido pelo capitalismo, um sistema que age de forma intencional. Ele busca enxergar onde há demanda que gere potenciais lucros. Quando o mercado se modifica para atender as necessidades de um determinado grupo, na maioria das vezes, passa a vender essa estratégia como inclusão, quando na verdade é apenas a ampliação do mercado, visando impulsionar o consumo de outros públicos e lucros ainda maiores. Entretanto, apesar do foco central ser o capital, isso demonstra a necessidade da indústria reconhecer a existência da população negra como público e seu potencial poder socioeconômico.

A cultura dos brechós e a moda autoral, por exemplo, aparecem como alternativas que além do lucro, buscam enaltecer as identidades por meio da reutilização e customização com elementos, formas e cores muitas vezes identitárias. Neste cenário, que se preocupa mais com a valorização das características da cultura de diferentes povos, a identidade da mulher preta e a sua representação, parecem bem mais definidas.

Para a indústria, esse processo que inclui, de fato, elementos estilísticos que tornam cada mulher negra única, ainda é contínuo e constante, principalmente após tanto tempo a mulher sendo socialmente excluída e desvalorizada. Ver tantos nomes importantes e influentes na mídia resgatando a cultura ancestral por meio dos eventos e ações  da moda, também pode ser uma forma de criar e ampliar as boas referências para que haja identificação, cada vez maior, de sensação de pertencimento da população negra.

Além da criatividade, a customização de roupas carregam identidade e autenticidade | Foto: Pietra Vasconcelos