Texto e Ilustração: Noysle Carvalho
Noite de terça, os sentimentos à flor da pele, o cansaço e a exaustão me dominam. Normalmente, as terças não são cansativas, mas as semanas têm sido cheias. Ontem, coloquei para fora a falta de criatividade – e a ansiedade junto dela – que senti. Para os meus amigos, a desculpa era a pressão das muitas coisas para fazer. Me indicaram sentar, tomar um vinho, encontrar meios de relaxar e que isso resolveria o meu bloqueio criativo. Sendo sincera, não se trata de bloqueio. Adiantei meus outros compromissos, para ganhar tempo. Pensei e repensei se tinha mesmo a coragem de abordar o tema, adiei o quanto pude.
Em uma sala não tão cheia, mas não tão vazia, peguei o notebook pela quarta vez. Confusa, a cabeça a mil, me questionei qual era o problema. A verdade é que esse receio todo faz parte do medo. O medo de me expor, me escancarar, levar para fora de mim uma parte que eu mesma (re)conheci há pouco tempo.
Escrevo, apago e reescrevo. Uma, outra, diversas vezes. Quase como se pisasse em ovos para falar de algo que deveria ser natural. Não consigo por em palavras. Um passo para frente, dois para trás. Tento relembrar os momentos que me remetem à questão inicial. Algum detalhe que ajude. Quem sabe ao menos a diminuir o medo. Só consigo fazer uma única pergunta, talvez a mais difícil: quando eu me entendi preta? A minha certidão diz: parda. O que ser parda significa? Sempre achei, e também me falaram, que era porque meu pai é branco e a minha mãe é preta.
Branco + preto = pardo?
Me lembro bem, quando fiz essa pergunta para ela. Minha mãe, mulher de pele mais escura que a minha, me surpreendeu com uma resposta diferente da que eu esperava. Na ponta da língua: “Na certidão sou parda”. Desfiz meu arco de convicções e ali, naquele instante, meus olhos se abriram para uma verdade diferente da minha. Como era possível? Não que ser parda fosse um problema, mas porquê, ela, uma mulher de pele quase retinta, se diria parda apenas por um documento? Uma nova pergunta gritou nos meus ouvidos: qual o valor desse papel diante do sentimento de identificação?
Vou mais afundo na lembrança. Recordo do tempo de criança, em que me sentia suja perto das meninas de pele mais clara. Lavava o cabelo com frequência, finalizava o cabelo, que na época era longo, com gel dos mais consistentes, na tentativa de diminuir o volume e mantê-lo baixo. Ter ao menos algo próximo ou parecido daquelas que pertenciam ao grupo que um dia ouvi ser o meu.
Recorto partes que a memória já não suportou armazenar, mas não consigo lembrar o exato momento que entendi: “sou preta!”. Como poderia? Cabelo cacheado. Nariz nem grande, nem pequeno. Lábios inchados só quando acordava e depois de tamanho “normal”. A pele então, me chamavam de morena a vida toda. Morena sou. Marrom? Só se for nos tons mais clarinhos.
A verdade é, me dou conta agora, que não me sentia pertencente. Não dá pra ter nada fora do lugar. Se o cabelo não tem volume suficiente? Falsa negra. Sem lábios carnudos? Falsa negra. Branca? Com certeza não branca, aliás termo bom de se usar, não-branca. Negra de pele clara?
No mínimo curioso, algo tão banal significar tanto. Só que quando penso em um lugar no mundo, o autoconhecimento parece ponto chave. Como validar esse meu lugar? Como definir a que grupo pertenço, sem saber reafirmar minha existência? Uma vida buscando-me em outras que são tão distantes do que vejo no espelho. Forçar finalizações, usar roupas, me fazer caber em estereótipos, por mais que eu tente. Não me representam.
Incômodo. Um sentimento que não é ruim e não é confortável, isso é fato. Incômodo me faz crescer, me faz querer e buscar entender. Talvez eu seja grata por ele. Quando a mente não cala e o peito não se aquieta, alguém precisa fazer alguma coisa. Com ele, me afirmei negra. Me reconheci. Aquilombei. Resisti negra. Percebi a força de uma singularidade plural, pude ter consciência de mim mesma. Meu ser. Meu pertencer. Meu grupo.
Reconhecer-se tem muita força. O receio de virar-me do avesso deu lugar à afirmação de quem sou. Nasci negra, sou negra e vivo negra. Vou morrer negra.
