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Reportagem 104

Prostituição além das ruas

De Maria Madalena às garotas do job, elas ainda buscam seu lugar na sociedade


Na ficção ou na vida real, as prostitutas sempre fizeram parte da história da humanidade. Hilda Furacão, Bruna Surfistinha, Anora. Independente da trama ou do contexto social, todas têm algo em comum: seus corpos têm um preço. É uma das profissões mais antigas do mundo. Desde Maria Madalena, às gueixas e às bailarinas da ópera de Paris, mulheres de diversas idades trabalham oferecendo seus corpos à atenção.

O termo “prostituição” tem origem no latim prostituere, que significa “colocar-se à frente”, em exposição. Desde as civilizações sumérias, gregas e romanas já havia registro dessa prática. Na Grécia Antiga, mulheres podiam ser escravizadas como prostitutas, enquanto em Roma, casas de prostituição eram comuns e regulamentadas e as trabalhadoras viam sua função como uma oportunidade de expressar suas paixões sexuais a serviço de deuses.

Com o avanço do cristianismo, no entanto, a moral religiosa impôs à sexualidade feminina uma repressão intensa. Na Bíblia, capítulo 7, do Evangelho de Lucas, é narrada a história da salvação de uma pecadora, uma prostituta, que muitos acreditam ser Maria Madalena e que Jesus perdoou. A mensagem de desagrado e pecado relacionado à prostituição, causou danos às mulheres que viviam desse ofício, já que agora sofriam críticas e violência, por serem consideradas impuras, sujas e pecadoras.

Para Guilherme Passamani, professor da UFMS e doutor em Ciências Sociais na área de Estudos de Gênero, o tratamento do cristianismo com a prostituição é controverso. “A relação de Jesus com Maria Madalena não é de rejeição, é de acolhimento, mas a prostituição ao longo da história tem sido vista, sobretudo no ocidente, com muito estigma. Primeiro porque ela é associada às mulheres e depois porque tem uma relação que envolve o sexo comercial. Para o cristianismo, o sexo tem que ser marital e para a reprodução”, explica.

Guilherme Passamani, doutor em antropologia, diz que a visão do cristianismo sobre a prostituição, é controversa

Ele ressalta a hipocrisia da sociedade brasileira em relação a esse tipo de trabalho. Antes da chegada dos europeus, o Brasil “não era cristão”, lembra o pesquisador, e essa lógica cristã acompanha o país nestes  525 anos. “Essa é a perspectiva, a visão que se tem sobre a prostituição”. O Brasil sempre consumiu prostituição, seja por homens casados ou solteiros.

Tem uma contradição entre aquilo que os homens fazem publicamente e aquilo que eles fazem privadamente. Eles cometem o suposto pecado. Faz parte de uma hipocrisia cristã que acompanha a história desse país desde quando esse país existe como país

 O controle das mulheres e seus corpos também se manifesta no folclore brasileiro. Segundo o doutor em linguística e professor do curso de Letras na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Marlon Leal Rodrigues, uma das lendas que se entrelaça com a realidade da repressão às mulheres, é a do Boto Cor de Rosa, que expõe uma estrutura social que naturaliza a violência sexual e culpabiliza as mulheres.

A figura do boto, segundo ele, nasce para justificar a gravidez ou perda da virgindade fora do casamento. “Ser mãe solteira era uma vergonha, como você explica?”, questiona o pesquisador. “O Boto Cor de Rosa! Aceitava-se [a gravidez], mas sabia que [o filho] era do irmão, era do parente, ou era do vizinho. Por isso que tem essa lenda, para amenizar”.

Durante séculos, muitas mulheres foram para a prostituição por falta de alternativas. Desde meninas abusadas a jovens expulsas de casa e grávidas sem apoio. O que restava era encontrar nesta profissão uma possibilidade de sustento. Com a modernização dos meios de comunicação e movimentos revolucionários como o feminismo, a profissão, há alguns anos, recebe trabalhadoras que praticam a atividade também por outros motivos

Durante séculos, muitas mulheres foram para a prostituição por falta de alternativas. Desde meninas abusadas, a jovens expulsas de casa, a grávidas sem apoio. O que restava era encontrar nesta profissão uma possibilidade de sustento. Com a modernização dos meios de comunicação e movimentos revolucionários como o feminismo, a profissão, há alguns anos, recebe trabalhadoras que praticam a atividade por iniciativa própria

Para Marlon, a visão sobre a prostituição começou a mudar a partir dos anos 1990, quando o prazer feminino e as redes sociais ganharam foco. “As meninas da classe média se prostituíam, não por necessidade, mas por prazer. À medida que a gente vai se desenvolvendo, enquanto consciência política, histórica, dividindo papel social, vamos olhando também para o prazer. Porque o nosso mundo é um mundo muito prazeroso, muito estimulante”.

Nessa época, surgiu uma nova nomenclatura para as profissionais do sexo, a conhecida “garota de programa”. Algumas de classe média, com maior acesso à educação, tecnologia e redes sociais, passaram a escolher esse termo para o trabalho autônomo e sem intervenção de terceiros. “O termo muda de acordo com a forma da prática”, cita Marlon.

Passamani ressalta que dentro de movimentos sociais como o feminismo, a relação com o trabalho sexual ainda é conturbada. “Elas [as prostitutas] estão ali por inúmeras razões, muitas vezes por falta de opção e outras vezes por escolha”.

Alguns espaços de entretenimento na capital sul-mato-grossense apresentam, na fachada, os números do estabelecimento em grande formato – bem maiores que o padrão, uma indicação de casas de prostituição

De acordo com o professor, isso divide o movimento feminista, já que parte percebe o “trabalho sexual como exploração das mulheres, e outra como uma emancipação delas”. Ainda, o antropólogo diz que há uma diversidade de oferecimento do trabalho sexual que muitas vezes nem passa perto da rua.

O trabalho sexual se tornou “mais privado, mas ainda pode ser explorado por outras pessoas, sejam as cafetinas ou donos dos bares”, ressalta Passamani. Porém, observa que neste processo de mudança, as mídias digitais incrementaram uma série de ferramentas que podem oferecer mais segurança, autonomia e ganhos para as profissionais. O antropólogo questiona se a sociedade mudou seu olhar sobre o trabalho sexual.

De Maria Madalena aos dias atuais, a prostituição resiste em contradição, seja por uma questão de necessidade ou de prazer das trabalhadoras do sexo. Um negócio privado, mas com exposição pública, que enfrenta o julgamento e é estigmatizada pela sociedade.

Novas vitrines

Com as novas tecnologias da comunicação, a prostituição tem migrado das esquinas para espaços mais “reservados”: as redes sociais, onde as profissionais criam novas formas de contato com sua clientela. Televisão, filmes pornôs, anúncios em jornais impressos e em sites, os serviços são oferecidos com certa margem de segurança e lucro.

Plataformas de conteúdo adulto como OnlyFans, Privacy e sites de acompanhantes como Fatal Model, permitem que as profissionais do sexo negociem diretamente com seus clientes, estabelecendo preços, horários e limites. Para algumas, a atividade é esporádica. Para outras, é a única fonte de renda.

Em novembro de 2023, a plataforma OnlyFans tinha cerca de 4,1 milhões de criadores de conteúdo e contava com mais de 305 milhões de usuários, segundo o site. Em novembro de 2024, a criadora americana Sophie Rain divulgou em suas redes que conseguiu faturar mais de 42 milhões de dólares somente com o dinheiro advindo do trabalho na plataforma.

Apesar do grande alcance desse tipo de conteúdo nas redes sociais, a estigmatização e o preconceito com as trabalhadoras do sexo não teve quase nenhuma melhora. O tempo de apuração para essa reportagem talvez seja um reforço desta percepção. Entramos em contato com mais de 30 garotas de programa, criadoras de OnlyFans e Camgirls (garotas que produzem e publicam materiais de sexo on-line, e pode ser ao vivo), porém, nenhuma delas se disponibilizou a dar entrevista ou participar de alguma maneira. Algumas por problemas pessoais, por falta de tempo, e outras, declaradamente, por ainda terem medo de expor sua profissão e a história de suas vidas conectadas à prostituição.

Mesmo a prostituição sendo um exercício da exposição constante, histórica e tão presente, e a internet com as redes sociais terem aumentado ainda mais a amplitude desse alcance e, portanto, as possibilidades de acesso e conhecimento; uma busca rápida do termo em buscadores da internet, como o Google, reforça essa percepção.

“Prostituir é sinônimo de: degenerar, perverter, depravar, desonrar, infamar, aviltar, libertinagens, meretrícios. Mulher que se vende por dinheiro: uma meretriz, perdida, puta, rameira, concubina, cortesã, dama, garota de programa, marafona, messalina, …”. E a lista continua, na maior parte das vezes, a partir de uma perspectiva bastante negativa. Se a internet reflete a sociedade – assim como também é formada por ela – não é surpreendente o receio dessas mulheres.

Elas mesmas se protegem

A falta de regulação, sindicato ou direitos trabalhistas refletem diretamente na vida pessoal dessas mulheres. Consequentemente, todos os cuidados envolvendo segurança, questões financeiras, saúde física e mental ficam na responsabilidade da profissional, que por sua vez precisa escolher qual área priorizar e enfrentar o medo dos julgamentos relacionados ao seu trabalho. 

A psicóloga clínica Karin Louise Schroeder, especialista em avaliações psicológicas e psicoterapia de orientação psicanalítica, já trabalhou com garotas de programa e afirma que os estereótipos negativos ligados à profissão são os pontos que mais afligem essas profissionais. “Ela já recebe toda uma representação social, toda uma generalização da personalidade, ela é assim, ela tem que ser assim, ela tem certeza que ela é assado, né? Então são falas muito, muito imaturas, preconceituosas e retrógradas”.

Uma das principais formas de se proteger dentro do meio é o uso do “nome de guerra”, um apelido ou pseudônimo usado como substituição do nome civil por um alter-ego ou um personagem disposto a satisfazer as vontades dos clientes. Para Karin, esse costume funciona como um mecanismo de defesa que protege o pessoal e o separa do profissional.

“Quando eu estou num trabalho onde me relaciono com vários tipos de pessoas o tempo todo, eu acabo utilizando essa máscara para me proteger, uma segurança, para a pessoa também não ter acesso ilimitado a minha história, a quem eu sou de verdade”

A luta por direitos básicos, como o acesso à saúde, também fazem parte do cotidiano de quem vive da prostituição. Nesse cenário, a prevenção das infecções sexualmente transmissíveis e o HIV se tornou uma tarefa urgente. Gabriel Nolasco, doutor em psicologia e professor na UEMS de Coxim, trabalha há quase dez anos, em um grupo de cuidados pelo Instituto Brasileiro de Inovações para a Sociedade Saudável (Ibiss) do Centro-Oeste, com pessoas que se prostituem, em Campo Grande. 

Nolasco conta que o grupo pensou em estratégicas de prevenção a partir de abordagens comunitárias, ou seja, uma equipe se desloca para territórios de prostituição para entregar preservativos e testes de HIV. Além disso, o psicólogo explica que a partir do material da Prevenção Combinada, lançada pelo Ministério da Saúde, os profissionais orientam sobre o acesso aos preservativos e o uso correto do gel lubrificante.

O doutor também afirma que não são apenas as profissionais do sexo que se sentem recuadas ao fazer os exames e sim, a sociedade, por conta do estigma e a associação do sexo a uma prática suja. “Existe um discurso moral em torno da discussão das IST’s e de todas as tecnologias, por isso a gente tem um número muito baixo de acesso das trabalhadoras sexuais, que estão lá embaixo na cadeia de acesso às profilaxias”.

Nolasco acredita que faltam ações e investimentos como o diálogo com sensibilidade e o trabalho de prevenção durante o ano inteiro. Alega que três instituições que trabalham com o grupo vulnerável foram aprovadas no ano passado e até o momento, não receberam recursos.

A falta desses recursos é um reflexo claro da negligência do estado com as trabalhadoras do sexo. Apesar dos avanços nos tratamentos de ISTs e a praticidade do trabalho feito pelas mídias digitais, o olhar sociedade sobre as prostitutas e o sexo continuam sendo de nojo, julgamento e principalmente hipócrita.