Uma conversa franca sobre expectativas com os autores da tirinha mais papo reto da atualidade
Texto: Daniel Rockenbach (drocken@gmail.com) e Emily Ribeiro (emilyalribeiro@gmail.com)
Ilustrações: Leandro Assis

A eleição do presidente Jair Bolsonaro vem rendendo muito trabalho aos cartunistas. Leandro Assis está entre aqueles que desde 2018 tem produzido ilustrações críticas ao atual mandatário da nação e seus seguidores. A situação se alterou em dezembro de 2019 quando Leandro decidiu mudar o foco para os eleitores do presidente: a classe média alta que fez campanha e largou apelidos como mito e frases como a memética “E o PT?”. Assim começou a série “Os Santos” que abordava temas caros ao povo brasileiro como o racismo e o preconceito de classe. As tirinhas publicadas no instagram pessoal de Leandro renderam 30 mil seguidores e na terceira edição apresentaram a ele a ativista e roteirista carioca Triscila Oliveira, que viria a se tornar co-roteirista e criadora da série “Confinada”.
Sonhamos que as pessoas consigam enxergar que isso não é ficção, é a realidade de um país contado em quadrinhos. O público “antirracista” ainda acha que estamos falando de um universo paralelo, e não do mundo do lado de fora de suas bolhas privilegiadas,
afirma Triscila Oliveira
Projétil: Tudo começou com “Os Santos” e a retratação do dito cidadão de bem. Como foi ir dessa tira para a “Confinada”?
Leandro Assis: Assim que começou a pandemia e o confinamento me dei conta de que a série “Os Santos” precisava fazer uma pausa. A história não era sobre pandemia. Não queria ficar refém dos acontecimentos. Então conversei com a Triscila e ela concordou. Mas os seguidores pediam muito para tratarmos dos problemas do confinamento para as trabalhadoras domésticas. Então me ocorreu a ideia de fazer uma espécie de spin-off dos “Santos”. Uma história “Confinada”. Em vez de duas famílias, duas mulheres. A patroa rica e sua empregada doméstica. Assim nasceu a “Confinada”.
Triscila Oliveira: As questões levantadas na “Confinada” são exatamente as mesmas de “Os Santos”, apenas numa perspectiva diferente, mais atualizada, mais jovem, dialogando com o público das influenciadoras digitais, que vendem um estilo de vida por muitas vezes fake e/ou inatingível.
P: Como são feitas as ilustrações?
L.: Não existe roteiro para as tiras. Existe conversa. Eu e a Triscila trocamos impressões e ideias sobre o assunto da tira, até eu achar que já tenho o suficiente para desenhar. Então faço as ilustrações, coloco os diálogos e mando para a Triscila. Se ela tiver uma última sugestão eu posso ainda mexer na tira. Senão eu faço as cores e pronto. As tiras são desenhadas digitalmente.

P: E como são feitos os roteiros?
T.: Tudo parte de idéias. Expomos nossas ideias e debatemos um pouco até que se forme um micro arco da próxima tira, sempre com um punch característico que leva o público à reflexão.
P: Onde pensam em levar essas histórias e os personagens?
L.: Onde pensamos em levar? No sentido de qual será o desfecho da história? Não damos spoilers. Risos.
T.: Aonde eles quiserem ir. Risos. Sonhamos que as pessoas consigam enxergar que isso não é ficção, é a realidade de um país contado em quadrinhos. O público “antirracista” ainda acha que estamos falando de um universo paralelo, e não do mundo do lado de fora de suas bolhas privilegiadas.
P: Leandro, fale sobre seus trabalhos além de “Os Santos” e “Confinada”.
L.: Eu sou roteirista. Trabalhei em uma produtora do Rio fazendo filmes e séries. Fui roteirista das séries “Mulher Invisível”, da Globo, “Surtadas na Yoga”, do GNT e “Magnífica 70” da HBO, entre outras. E dos longas “Muitos Homens num Só”, da Mini Kerti, e “Sob Pressão” (que deu origem à série da Globo), de Andrucha Waddington. Há dois anos mais ou menos comecei a desenhar profissionalmente, e já lancei um livro com o Molusco, um amigo roteirista. Ele tem um canal no YouTube onde conta suas histórias da juventude. O livro “Moluscontos” reúne alguma dessas histórias, e eu ilustrei o livro.
Um desastre completo. Um ano para esquecer.
responde Leandro Assis
P: Leandro parece curtir uma boa polêmica – o livro “Moluscontos” conta as desventuras canábicas de Molusco e seus amigos, uma espécie de “humor de maconheiro”, por assim dizer. O livro ganhou destaque com leitores como Gregório Duvivier, conhecido humorista e ativista pela legalização da maconha, e já rendeu um quadrinho mensal, a “Moluscomix”. E você Triscila, qual seu trabalho como roteirista e ativista além de “Os Santos” e “Confinada”?
T.: Estudar roteiro é meu sonho de infância. Eu sou fascinada por storytelling, mas como muitos nunca tive a oportunidade de fazer aquilo que gosto de verdade. Quando o Leandro me convidou para compor as tirinhas com ele, vi a chance de realizá-lo. Hoje continuo estudando. O ciberativismo partiu do auge da minha depressão, onde eu precisava me expressar, e falar sobre minhas experiências enfrentando racismo, machismo, classismo, pressão estética e a minha doença mental na época.

P: A que você atribui o flerte do brasileiro médio com o fascismo?
L.: Acho que o Brasil, infelizmente, é muito conservador, elitista e boa parte das classes dominantes ainda tem uma mentalidade escravocrata. Se você junta isso tudo dá um fascista raivoso.
T.: O fascismo do brasileiro é uma herança colonial. Tivemos quase 400 anos de uma escravização racial, onde uma raça e classe foi estabelecida como superior. Para além de estarmos vivendo um período pós-escravidão, a democracia ainda é muito nova e muitos são nostálgicos do terror da ditadura.
O fascismo do brasileiro é uma herança colonial. Tivemos quase 400 anos de uma escravização racial, onde uma raça e classe foi estabelecida como superior. Para além de estarmos vivendo um período pós escravidão, a democracia ainda é muito nova e muitos são nostálgicos do terror da ditadura, comenta Triscila Oliveira
P: Brasil 2020 – o que você pensa desse ano?
L.: Um desastre completo. Um ano para esquecer.
T.: Não penso. Pelo bem da minha saúde mental. Esse ano descortinou o que muitos se negavam a enxergar. O Brasil é um país racista, misógino e com uma população tão desumana que arrisca a própria vida quando seu estilo de vida é limitado.
P: A pandemia da Covid-19 tem vacina possível até 2021 mas e a política atual, passa?
L.: Acho que sim. A gente já vê um desgaste grande desse governo. Popularidade em baixa, polêmicas com outros países, aliados abandonando o barco. Acho que o conservadorismo vai persistir. Uma tendência à direita também. Mas esse governo especificamente eu espero que esteja com os dias contados. E acho que com o fim do governo muito da visão mais intolerante de seus representantes vai perder um pouco da força. Espero!
T.: Sabemos que não, e infelizmente levaremos décadas para tentar recuperar o que esse desgoverno está destruindo.

As tirinhas podem ser lidas gratuitamente no Instagram de Leandro Assis e no da Triscila de Oliveira.