A pandemia trouxe mudanças, desde o contato pessoal ao home office, dentro de diversas profissões
Texto: Carla Andréa (c_andrea@ufms.br) | Carolina Rampi Gimenes (c.rampi@ufms.br)
Ilustração: João Soares Rampi

Dezenove milhões de brasileiros afastados temporariamente do trabalho; 30 milhões sofreram redução nos rendimentos; 18,5 milhões não puderam procurar emprego. Esses números dão uma noção do estrago provocado pela Covid-19 entre março e maio deste ano, segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
No Mato Grosso do Sul a pandemia fez com que 30 mil pessoas fossem afastadas temporariamente dos seus trabalhos, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – coletados entre março e agosto de 2020. Isso significa que 2,5% de 2,62 milhões de habitantes do estado foram afetados por esse fenômeno. Só quem está passando por isso sabe o que significa na prática todos esses dados.
Os cuidados para quem sai
O surgimento da Covid-19 alterou completamente a rotina dos trabalhadores, que se expuseram ao risco de contágio para realizar suas atividades. Regramentos foram criados, estabelecimentos e escolas fecharam, a mobilidade urbana foi alterada.
No dia 18 de março, uma norma municipal instituiu uma quarentena de 15 dias em Campo Grande. Período no qual somente hospitais, supermercados, conveniências e algumas poucas lojas, como pet shops, puderam abrir normalmente. Mas para permanecerem abertos esses locais tiveram de adotar medidas preventivas, como o oferecimento de álcool em gel para clientes e funcionários, e o uso obrigatório de máscaras.
Essa mesma norma diminuiu a circulação dos transportes coletivos entre os dias 21 de março e 5 de maio. Isso levou muitos trabalhadores a precisarem adotar diferentes estratégias para chegar aos seus locais de trabalho. O atendente de Telemarketing, Lázaro Pansanato, 26, que trabalha na BTCC, teve ajuda da empresa para isso. Um ônibus foi fretado para transportar os trabalhadores, traçando uma rota pelos bairros dos funcionários. Em cada par de poltronas era permitido apenas uma pessoa; todos deviam usar máscara; as janelas precisavam ser mantidas abertas; e havia álcool em gel na entrada.
Antes nós faziamos visitas, atendimentos aos familiares. Essa era a rotina todos os dias. Com a pandemia nós não visitamos mais os leitos e o trabalho é feito remotamente, somente por atendimento telefônico – Juciany Ferreira
Pansanato também relata que a empresa estabeleceu uma distância maior do que era adotada antes entre um operador e outro para reduzir a possibilidade de contágio. Juntamente com seus colegas ele ainda foi orientado a zelar pela limpeza do local de trabalho. Até o espaço de descanso foi modificado para evitar aglomerações.
E embora o objetivo fosse o mesmo, cada empresa adotou medidas diferentes. Isso pode ser visto, por exemplo, no setor de distribuição para supermercados, onde foram adotadas precauções mais simples. O entregador, Dime Klark, conta que na distribuidora onde trabalha a principal orientação dada foi evitar aglomerações. Além disso, passou a ser obrigatório o uso de máscaras, luvas e álcool em gel. Dime diz que o contato dos entregadores com os funcionários do escritório foi restringido. Medida adotada em função do risco de contágio por causa do contato direto com pessoas de fora do ambiente de trabalho que Dime e outros colegas têm ao longo do dia. Ele também relata que foi aconselhado a tomar banho e trocar de roupas caso fosse almoçar em casa.
No Hospital Regional, instituição de referência no tratamento contra o coronavírus em Mato Grosso do Sul, a Assistente Social Juciany Ferreira, 40, explica que sua principal adaptação foi precisar realizar o acolhimento aos familiares dos doentes – o que incluía vítimas da Covid-19 – por telefone. “Antes nós fazíamos visitas, atendimentos aos familiares. Essa era a rotina todos os dias. Com a pandemia nós não visitamos mais os leitos e o trabalho é feito remotamente, somente por atendimento telefônico”.
Os métodos de prevenção contra a Covid-19 são essenciais e lidar com um vírus até então desconhecido gerou muitas dúvidas. “A princípio foi uma loucura, pois era uma doença totalmente nova, com um contágio extremamente alto”, destaca a fisioterapeuta residente do Hospital Regional, Caroline Gerke, 25. Ela relata que todos os residentes – ou seja, os pós-graduandos que atuam na instituição – passaram por treinamento ligado ao controle de infecção hospitalar nos primeiros meses de pandemia. Eles foram orientados desde questões mais simples até as mais complexas, como intubação, procedimento para paradas respiratórias e pós-óbito.

Nos ambientes hospitalares o risco de contaminação é muito maior, o que leva os profissionais de saúde a precisarem usar máscaras – parcial e total – óculos de proteção, roupas descartáveis e, dependendo do nível de contato com um paciente infectado pelo coronavírus, até três roupas descartáveis, uma por cima da outra. Caroline Gerke destaca que foi proibido vestir qualquer roupa que tenha sido usada no ambiente externo dentro das dependências hospitalares. Mas todos esses cuidados também cobram um preço: “É muito intenso o calor. E um dos maiores problemas do hospital é que não podemos ter ventilador, pois espalha o vírus para mais longe”.
Algumas empresas também realizaram testes de Covid-19 nos seus funcionários. Dime Klark explica que na distribuidora os exames foram restritos aos funcionários que apresentavam sintomas, e cinco pessoas testaram positivo. Na BTCC, além de serem feitos naqueles que apresentavam sintomas, os testes eram aplicados também nos funcionários do grupo de risco. Depois de um tempo, no entanto, a empresa de telemarketing passou a selecionar aleatoriamente os operadores a serem submetidos ao exame. Assim, Lázaro Pansanato foi testado duas vezes. No Hospital Regional isso também foi feito e, em meados de junho Caroline Gerke foi submetida ao exame. Como ela estava com conjuntivite, isso pode ser um dos sintomas do coronavírus, precisou ficar em isolamento até saírem os resultados. Ela mora com mais cinco pessoas e todas tiveram que se manter isoladas.
O trabalho em casa
Mas nem todas as pessoas se mantiveram atuando no local onde trabalhavam antes da pandemia. Várias empresas adotaram o que é conhecido como home office, ou seja, realizar o trabalho a partir de sua própria casa. Segundo a pesquisa Gestão de Pessoas na Crise Covid-19, feita pela Fundação Instituto de Administração (FIA), esse modo de trabalho foi adotado por 46% das 48 empresas pesquisadas. Em contrapartida, 67% delas relataram ter passado por dificuldades quando foram mudar para o trabalho em casa.
Uma área que adotou o home office foi a educação. “Sim, neste momento estou em aula”, disse a professora de escolas públicas de Campo Grande, Katiuscia da Fonseca Cruz, 42, quando estava sendo entrevistada. Várias vezes durante a entrevista Katiuscia teve que se dividir entre a aula, as perguntas e o filho pequeno.
Ela diz que além do trabalho de professora ainda tem uma tripla jornada com os cuidados dos filhos e da casa. “É cinco minutos que você tem livre e já aproveita para passar um pano na casa. E como tem criança em casa eu geralmente espero ele dormir para fazer as coisas. E assim a rotina dele também mudou porque às vezes ele só vai dormir na mesma hora que eu. Porém eu vou dormir muito tarde, então ele está muito desregulado”.
No setor da educação de Mato Grosso do Sul, as escolas particulares logo adotaram o EAD como saída na pandemia, já nas da rede pública, as aulas presenciais ficaram suspensas até 3 de maio, quando adotaram as Aulas Remotas Vinculantes (ARV), para não atrasar o calendário escolar. E para aqueles que passaram a dar aula online uma dose extra de esforço foi necessária. A professora fala que teve dificuldades técnicas e humanas para se adaptar à realização de aulas via internet. “Foi difícil, eu digo por mim, pois não tenho muitas habilidades. Tenho muita dificuldade com a tecnologia, sou tímida para aparecer em câmera. É uma luta dia a dia”.
Mas o home office também é visto como forma de aprendizado. Como afirma o advogado Vinicius da Cunha Maggione Morais, 32. Na pandemia, o hábito adquirido de usar aplicativos de chamada, como o Google Meet, mostrou que também é possível facilitar o contato de advogados com os clientes que não conseguiam comparecer às reuniões presenciais. Por outro lado, uma das dificuldades são os clientes idosos, pois o escritório onde Vinícius trabalha atua bastante na área de Previdência Social e isso dificultou um pouco a comunicação, pelo fato preferirem ir até o gabinete.
Já a adoção de aplicativos específicos tem o objetivo de melhorar o andamento de um determinado trabalho. “Vamos colocar assim: a cada cem processos, cinco tiveram algum problema”, disse Vinicius, revelando que a adoção do contato virtual também tem seus percalços.
Mas o trabalho em casa também exige mudanças nas rotinas dos lares. Silêncio e um local adequado são ideais, mas nem sempre isso é possível. Os pais dos alunos menores de Katiuscia preferem que ela os atenda no turno da noite, pois é o período em que estão em casa. Entretanto, a professora fala que às vezes trabalha durante a madrugada, porque é o horário que a casa fica em silêncio, porém é um momento difícil para esses pais sanarem as dúvidas sobre as atividades, já que é o tempo em que estão descansando.
Vinicius e a família estipularam horários de forma que cada um pudesse fazer suas atividades sem que ninguém fosse prejudicado. Para cuidar do filho pequeno ele relata que o colocava sentado perto de si, fazendo as devidas atividades da escola e assim ia revezando com a esposa.
Mas a mudança da rotina e todas as transformações ocasionadas pelo trabalho em casa também provocam estresse nesses trabalhadores. Para Vinicius o principal problema foi a mudança brusca no cotidiano. “Todo mundo estava trabalhando em uma rotina, quando freou e passou a ser em casa é algo diferente do que você acordar e ir pro escritório”. Ter que se adaptar a essa nova realidade foi a maior dificuldade para ele.
Katiuscia relata que não é só ela que está sendo afetada psicologicamente no seu meio de trabalho: “Na verdade eu acho que são poucos os professores que podem falar que não foram afetados. Eu tenho muitas colegas que estão de atestado. É muita coisa junta, e você se sente incapaz, um sentimento de incapacidade. Tanto que dois dias atrás eu tive um pequeno surto, chorei das sete e meia até às onze da manhã. Estou com tosse, mas é tudo estresse. O corpo está gritando de cansaço. Eu não consigo descansar”.

Microempresários
Outra parte desse cenário que sofreu mudanças foi a ocupada pelos microempresários, na qual em julho de 2020 foram fechadas 419 microempresas. Essas perdas foram causadas pela redução da atividade econômica no Brasil e segundo o presidente da Junta Comercial de Mato Grosso do Sul (Jucems), Augusto de Castro, o número de fechamentos foi impulsionado pela retração econômica devido às medidas contra o coronavírus e pela extinção das cobranças das taxas para fechamento de empresas.
A proprietária do bar Batata Mais, em Campo Grande, Grazyelle Soares dos Santos Neves, 45, teve que manter o seu estabelecimento fechado de maio a setembro. “Todo o prejuízo que tive nos últimos sete meses eu acho que não recupero nem em quatro anos”. Buscando compensar as perdas que estava tendo com o fechamento do bar Grazyelle montou uma pizzaria delivery, no mesmo prédio.
Embora tivesse pensando até em fechar definitivamente o bar, Grazyelle foi motivada a buscar novas opções por estudantes da UFMS, que há tempos adotaram o estabelecimento como o “Bar das atléticas”. Assim foi criado o projeto “Adote uma mesa”, onde cada agremiação esportiva – as ‘atléticas’ de cada curso – comprava uma mesa, não para ser um objeto de posse, mas para elas assinarem, desenharem artes próprias e até divulgarem suas atividades, seja pintando ou modificando a mesa. Mesmo com toda boa vontade dos estudantes Grazyelle precisou criar uma nova fonte de renda, e por isso investiu na montagem da pizzaria. Em função do tamanho das perdas, ela diz que pretende manter a pizzaria funcionando, tanto para atendimento delivery quanto presencial, juntamente com o bar.

Também em Campo Grande, o microempresário José Claudio Soares da Silva, 53, dono do Prime Buffet, teve que recorrer à montagem de uma panificadora no local onde eram produzidos os alimentos para as festas. Há 15 anos comandando o negócio, foi obrigado a demitir alguns funcionários, por conta da redução dos lucros, e a quebrar contratos, em função do risco de uma festa gerar aglomeração durante a pandemia.
Ele relata que teve quebra mensal de aproximadamente 4 milhões de reais. Então, como já possuía máquinas de panificação – que o Buffet usava para produzir os lanches servidos nas festas – montou uma panificadora. As festas estiveram paradas de maio a setembro, e retornaram em número menor e com restrições. “Não pode haver aglomeração. Todos os nossos produtos são embalados individualmente em saquinhos e embalagens individuais; cada pessoa vai lá, pega o que vai comer tudo separadinho. Não pode ter nada como era antes, como por exemplo, colocar tudo em uma bandeja e servir. O protocolo ficou muito rígido e o lucro diminuiu muito pelas embalagens. Mas estamos fazendo pequenos eventos sim”. E o que era para ser só um ‘quebra-galho’ tornou-se negócio fixo. José diz que mesmo depois da pandemia a panificadora vai continuar funcionando. “Nós não podemos deixar os clientes na mão porque voltaram os eventos. A produção está só crescendo e não podemos prejudicar quem nos deu apoio na pandemia. E já estamos com projeto de montar um local especificamente só para a panificação”.