Como a pandemia da Covid-19 acelerou os processos de digitalização da produção e distribuição de conteúdo
Texto: Daniel Rockenbach | Waldir Rosa

A pandemia da Covid-19 alterou a rotina de todos e uma das categorias mais afetadas foi a classe artística. Sem a possibilidade de realização de shows e eventos em tempos de isolamento social, atividades artísticas como o lançamento de um livro, uma exposição, peça de teatro ou show, foram extremamente prejudicadas. Em consequência disso houve uma queda brutal nos rendimentos, o que forçou muitos a buscar alternativas para compensar as perdas e buscar novos públicos.
O streaming, transmissão em tempo real de áudio e vídeo da internet para um aparelho como celular, computador TV, e as lives, transmissões ao vivo pelas redes sociais, começaram a surgir como alternativa para os músicos que estão entre os que mais sofreram com o cancelamento de shows e eventos em 2020. É o caso de Gabriel Sater que viu seu planejamento de celebração dos 20 anos de carreira ser drasticamente alterado com o cancelamento da turnê pelo Brasil e da festa de lançamento do DVD comemorativo. Em levantamento interno feito pelo serviço de streaming de música e podcast Spotify, no primeiro trimestre de 2020 ocorreu um aumento de 31% de assinaturas do serviço em comparação ao mesmo período em 2019, totalizando 286 milhões de assinantes.
Acompanhando os acontecimentos, o músico e produtor Gilson Espíndola percebeu que seu estúdio poderia servir como canal para a produção de conteúdo para streaming e lives e tratou de investir em equipamentos e estrutura para gravação e transmissão de shows. Gilson conta que a ideia das lives surgiu em função desse novo normal: “Não tem mais aglomeração, não tem mais show ao vivo, a gente começou a fazer essas produções na internet. Comecei a direcionar o estúdio para fazer lives. Estudei o YouTube, experimentei o Facebook no início, depois passei pro canal do YouTube”.
Gilson Espíndola e Gabriel Sater já eram adeptos de plataformas digitais como Deezer, Soundcloud e Spotify para distribuir suas produções musicais, além do YouTube e redes sociais para divulgar o trabalho. Para Gilson, no começo parecia que o público que assistiria um show seu poderia ser o mesmo que acompanha lives de um nome de peso como Ivete Sangalo. No entanto, as redes sociais foram determinantes para decidir qual artista teria mais público, ou seja, um número maior de visualizações em suas lives. “Artistas que já têm uma visibilidade na televisão e no streaming continuam em vantagem”, pontua.
Sem aglomeração, sem shows
Gabriel Sater tem carreira conhecida como ator e músico. Depois de protagonizar novelas e um longa-metragem, o jovem artista ainda tem no vínculo com o pai, Almir Sater, um grande legado a manter. Para Gabriel, os efeitos da pandemia começaram após o retorno de uma turnê, em março de 2020. “Quando voltei da Nova Zelândia a pandemia estava acelerando muito e foi tudo cancelado, nossos shows, nossos trabalhos (…). Era o ano que eu comemorava 20 anos de caminhada musical e com isso todo nosso empenho para o ano de 2020 foi por água abaixo. Não podia viajar mais com a turnê de lançamento de 20 anos, vários produtos seriam lançados, videoclipes oficiais e no final do ano o meu DVD “Quando for a hora” fechando a celebração”.
Após o impacto dos cancelamentos na agenda, Gabriel teve que repensar o ano em busca de uma alternativa para continuar produzindo e divulgando seu trabalho. A resposta estava nas lives e Gabriel logo sugeriu para a produtora Paula Cunha um projeto em que ele se apresentaria com outros artistas convidados. O apoio veio de uma empresa de compensados de Rebouças, interior do Paraná, que topou bancar a produção das transmissões e participou na arrecadação de doações para o Hospital Infantil Darcy Vargas, também de Rebouças. O projeto Lives to save lives trouxe Gabriel Sater tocando com 63 convidados ao longo de nove meses de projeto.
Ele conta que teve a ideia de fazer as lives porque era a única ferramenta que naquele momento seria possível, por conta do inesperado. “A gente não sabia quando ia acabar a pandemia. Tanto que a gente continua isolado aqui em casa, um ano depois, eu minha esposa, minha família. Então aproveitamos a ferramenta, na época o Instagram. É curioso porque não trouxe ninguém para ajudar na pré-produção. Em qualquer projeto eu traria uma equipe para me ajudar. Nesse trabalho não. A pré-produção já pulou para as gravações. Tanto que as primeiras lives ficaram ruins em termos de qualidade de imagem. O que importava era o conteúdo. Recebi Jackson Antunes, Luis Carlos Sá, uma série de pessoas maravilhosas, a lista é grande!”.
Produzindo lives
Gilson Espíndola estudou várias plataformas antes de firmar o YouTube como o meio em que faria suas lives. Para operacionalizá-las ele utiliza um programa de transmissão e gravação gratuito e de código aberto chamado OBS, que administra as imagens de três câmeras de celulares que captam as apresentações que acontecem todo sábado em seu canal. O retorno financeiro tem como pré-requisito ser cadastrado no PPY (Programa de Parceiros do YouTube), ter mais de quatro mil horas de exibição pública nos últimos doze meses, ter mais de mil inscritos no canal e uma conta vinculada ao Google Adsense, um serviço de publicidade oferecido pelo Google. Todo gerenciamento fica por conta da agência que cuida da carreira de Gilson nas redes sociais e plataformas de distribuição musical.
A produtora Raquel Carelli acredita que a pandemia trouxe novidades e incertezas com a necessidade de isolamento social e isso mudou o mercado da música. “Sem shows, com os bares e restaurantes operando com restrições, o público ficou sem alternativa para consumir o trabalho dos artistas. As lives surgiram como alternativa para suprir a necessidade de manter o público engajado e gerar receita para a categoria”. Ela enxerga na experiência de Gilson Espíndola e outros tantos músicos uma alternativa interessante inclusive para quando a pandemia acabar.

Foto: YouTube / Gilson Espíndola
Gabriel Sater encarou os desafios como um grande aprendizado, através dos erros e acertos na produção das lives e no gerenciamento das ferramentas. Para o músico, o áudio e a imagem menos produzidos trouxeram um toque informal que acabou incorporado na forma com que as lives foram feitas. A informalidade abriu novas possibilidades. “Era mais um bate-papo, com algumas músicas ali no meio para poder pontuar alguma conversa, saber da carreira de tantos artistas que eu sinto que tem um mínimo de divulgação na grande mídia. Foi um alento para a alma poder conversar com tantas pessoas e trocar tantas experiências”. Gabriel ainda teve que encarar a frustração de perder algumas das lives feitas no começo em virtude do Instagram não salvar os vídeos por um período maior que 24h após a transmissão. A apresentação com Paulo Simões, cantor e compositor, grande parceiro de seu pai Almir, foi uma delas. “Eu cheguei a ficar triste de querer chorar”, lamenta.
Os percalços de um edital público
Nem tudo são flores na produção digital em tempos de pandemia. A dificuldade de monetização das lives e dos produtos artísticos faz com que muitos artistas busquem os editais de apoio governamentais como o da lei emergencial Aldir Blanc, nomeada a partir do famoso músico brasileiro, vitimado pela pandemia da Covid-19 ainda em 2020. Foi o caso do projeto “Campo do Riso” do palhaço Anderson Lima, do livro digital infantil “O Pequeno Macedônio” de Henrique Komatsu e Fabio Q, e da “Mostra Apollo Black de Cultura LGBTQIA+”.

Em Mato Grosso do Sul a lei distribuiu cerca de 40 milhões de reais, sendo 20 milhões divididos entre os municípios e outros 20 milhões diretamente ao estado, conforme artigo 3º da lei 14.017 de 29 de junho de 2020. No município de Campo Grande foi formada uma comissão para organizar a distribuição dessa verba. Melly Sena, gestora de atividades culturais da Fundação de Cultura do Mato Grosso do Sul, participou de uma das comissões com a tarefa de formar o colegiado municipal de literatura.

Para ela muitos dos problemas encontrados pelos artistas com o edital tem a ver com a falta de capacitação na montagem dos projetos. “Muita gente não tem esse processo de profissionalização, de saber escrever um edital, o que ler em um edital. Tivemos muitas pessoas que se viram nesse processo e tiveram que florescer esse lado de processos e projetos. Estar na comissão gestora foi um processo de muita atenção, pois como representante da sociedade civil eu queria fazer com que esse processo chegasse da forma mais tranquila para os artistas. Para isso tive que ficar o tempo todo perguntando, questionando, tirando dúvidas, sempre reforçando o aspecto digital das produções”.
Outras artes, outros formatos
Por décadas a literatura se sustentou no papel impresso enquanto formato de disseminação. O digital demorou para emplacar e mesmo hoje em dia não representa mais que dez por cento das vendas de livros, variando para menos na maioria das editoras. Apesar do fraco desempenho, o mercado editorial investe na produção de livros digitais com o crescimento gradativo de adeptos de leitores digitais como o Kindle, o Kobo e até mesmo tablets. A pandemia da Covid-19, no entanto, vem mudando esse quadro, turbinando as vendas de livros digitais desde o início de 2020. É o caso de livros lançados primeiro nos meios digitais e apenas depois em papel, ou daqueles que saem apenas no digital como ocorreu com o livro infantil “O Pequeno Macedônio” com texto de Henrique Komatsu e ilustrações de Fabio Quill.
O formato veio como imposição do edital da Lei Aldir Blanc. O livro digital tem um alcance maior e o custo muito menor que um livro impresso, tornando a contrapartida social do edital muito mais evidente. Para Henrique Komatsu, “o formato digital, apesar dos seus problemas, é bastante democrático”. O ilustrador Fabio Quill conta que um dos pontos fundamentais do edital era o acesso e que o formato digital possibilitou um alcance muito maior que o livro impresso uma vez que o livro digital foi disponibilizado gratuitamente na internet.
Hoje tem espetáculo? Só no virtual
O ator, produtor e palhaço Anderson Lima é diretor da Companhia de Teatro Flor e Espinho. Ele atua e se apresenta como palhaço em escolas e teatros, e com a companhia já organizou festivais como a Mostra de Palhaços do Pantanal – Pantalhaços. Anderson é outro artista que recorreu ao benefício da Lei Aldir Blanc para poder realizar o projeto Campo do Riso, uma série de lives com palhaços de outros estados brasileiros e da Argentina, que depois de feitas serão transformadas em podcast e um livro digital com os principais pontos das conversas sobre o ofício do riso.
O Campo do Riso pode não ser voltado ao público geral mas traz conteúdo importante para a formação de novos profissionais do riso. Para Anderson Lima as lives, o podcast e o livro digital servem como material de apoio. “As conversas abordam pontos conceituais fundamentais para quem trabalha no ofício da palhaçaria e mesmo para quem não trabalha é possível conseguir entender os processos, quais os caminhos o palhaço percorre para exercer o ofício da palhaçaria. Então creio que é um documento importante para pesquisa”.
Para o ator a Lei Aldir Blanc foi um marco para os artistas e a classe política no Brasil, porque em virtude da pandemia havia urgência e necessidade de que ela fosse desburocratizada. Ele diz, no entanto, que os problemas começaram quando saiu o decreto federal regulamentando a lei, pois “a burocratização foi muito grande e chegou nos estados, principalmente no estado do Mato Grosso do Sul com burocracia e repetição de atrasos que acabaram complicando a vida dos artistas que precisavam acessar esse recurso”.
Diversidade digital
Para a produtora cultural Ana Ostapenko, a Lei Aldir Blanc foi um marco para a população LGBTQIA+ por ter uma categoria que contemplava projetos específicos para tal público. O projeto produzido por Ana é a “Mostra Apollo Black de Cultura LGBTQIA+”. Organizada pela Casa Satine, a mostra é uma homenagem à drag queen Apollo Black, assassinada em 2019 em um crime até hoje sem solução. O evento foi transmitido pelo YouTube da Casa Satine e contemplou 30 artistas LGBTQIA+ de Campo Grande nas categorias performance, dança, teatro, música e circo.
De acordo com Ana a Mostra é um dos projetos que promoveu maior distribuição de renda entre os artistas na esfera municipal. “A gente conseguiu pagar um cachê relativamente bom, foram 500 reais para 30 artistas LGBT que estavam há um ano sem exercer suas funções. Todos queriam que o evento fosse presencial, com público, mas o online foi o jeito que conseguimos encontrar para fazer o evento. E a intenção é fazer com que ano que vem aconteça novamente, com a presença de público, caso a pandemia permita”.
Durante a mostra, foram realizadas oficinas de arte e cultura LGBTQIA+ como a roda de conversa LGBTQIArte – a história da Arte e da Cultura Queer com Anderson Bosh, a oficina de Vogue e danças Queer com Roger Pacheco e a oficina de Maquiagem com Rana Foratto, entre outras atividades online.
O futuro é digital
O músico e produtor Gilson Espíndola acredita que após a pandemia da Covid-19, o formato virtual das apresentações musicais – as lives – vai permanecer. A expectativa com o novo formato é tanta que Gilson adaptou seu estúdio em função da possibilidade de se fazer lives no futuro. “Nada impede o músico de negociar um show remoto, uma apresentação em um bar ou numa festa particular. A questão é como organizar a transmissão para um determinado local a partir do estúdio. As possibilidades incluem a exibição de shows em mais de um bar, em festas familiares. Tudo que precisa é uma boa internet e onde transmitir”, ressalta Gilson.
O músico testou a adaptação do estúdio com as lives do Festival “O canto delas”, organizado pelo primo, também músico e produtor, Jerry Espíndola. A iniciativa foi contemplada com recursos da Lei Aldir Blanc e trouxe 12 cantoras sul-mato-grossenses em exibições que podem ser vistas no YouTube do projeto.
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