Em solo brasileiro a fome é uma memória viva, que supera o tempo e permanece enraizada na população. Assunto discutido desde 1996 no Projétil retorna agora na 100º edição: como a fome ainda persiste no Brasil?
Texto: Lara Isabelle Bellini | Maria Luiza Massulo Elias | Reuel de Oliveira
A barriga ronca em silêncio, ecoa no estômago vazio e só escuta quem sente. O semáforo serve de metrônomo, abre e fecha, abre e fecha, marcando o curto período de tempo que Elisângela tem para conseguir qualquer valor em troca de um pirulito. Cinco centavos já ajuda, é o que dizem as letras pintadas na placa de papelão que ela segura, e, no fim do dia, esses pouquinhos se transformam em um saco de arroz ou de feijão, raramente os dois. Às vezes nenhum.
O medo e a incerteza que acompanham a mulher no caminho de casa até a rotatória da Coca Cola, no bairro Universitário, em Campo Grande (MS), tem nome técnico: insegurança alimentar; caracterizada pelo Ministério da Saúde, como a falta de acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidades suficientes para garantir uma existência saudável, a insegurança alimentar no Brasil é percebida por meio da Escala Brasileira de Medida Domiciliar de Insegurança Alimentar (Ebia), que, na tentativa de estabelecer fronteiras para a fome, classifica a gravidade em que um grupo se encontra dentro desse contexto a partir das mudanças nos padrões de alimentação, como a escolha por produtos de qualidade cada vez mais baixas até a privação de alimentos.
Perto de Elisângela, em um dos canteiros da Avenida Costa e Silva, há outra placa de papelão. Quem segura essa placa é Josué, já não lembra mais o sobrenome, nem a idade, o que sabe é que o corpo já não aguenta mais trabalhar. Em casa, o armário embaixo da pia está vazio. Na rua, eram 13h30 e a primeira refeição ainda não tinha chegado. Estava cansado e a sensação era como se tivessem lhe roubado o estômago, porque o órgão já nem se preocupava mais em reclamar. Sem carteira de identidade, Josué não consegue ter acesso aos serviços de assistência social do governo, então pedir dinheiro foi o jeito que encontrou para se manter vivo e depender menos das ajudas das irmãs.
De acordo com o 2° Inquérito Nacional de Insegurança Alimentar no Brasil no Contexto da Covid-19 (II Vigisan), realizado pela Rede PENSSAN, em 2022, Mato Grosso do Sul (MS) tem 65% da população vivendo em situação de insegurança alimentar. Dessas, 9,4% estão classificadas em situação grave, aquela em que as pessoas têm um acesso mínimo à alimentação. Em outras palavras, atualmente, a fome, com seus vários nomes e faces, que às vezes se apresenta como Josué, outras como Elisângela, persegue mais de 266 mil pessoas no estado e revela que essa ferida mal curada vive enquanto mata.
A trajetória da fome no mapa
Um outro Josué, de sobrenome de Castro, foi um dos primeiros cientistas e pensadores brasileiros a discutir a fome, quando lançou, em 1946, o livro “Geografia da fome”, que aborda o assunto da fome coletiva como um fenômeno geograficamente universal. O autor coloca em uma perspectiva política e social, além de racial, os acessos aos nossos alimentos, que não são tão nossos como deveriam.
“O problema da fome não é a comida, o problema da fome é o acesso, a distribuição desses alimentos”, explica Fernanda Savicki, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, no Escritório Técnico do MS e presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). Ela estuda o histórico da fome a partir da abertura democrática do país, após a ditadura. É nesse momento que a alimentação passa a ser um direito humano, uma pauta de saúde pública, muito embora, os debates e convenções internacionais sobre o assunto antecedam esse período.
Na Constituição de 1988, artigo 6º, consta o direito de todos os cidadãos e cidadãs brasileiros à saúde, à moradia, ao lazer, à educação. Porém, levou mais de 20 anos para que incluíssem a alimentação como um direito de toda a população brasileira, em 2010. “A gente sabe que entre estar na Constituição e fazer de fato isso se concretizar no prato de comida da população brasileira, tem uma enorme diferença, tem um vácuo, um gargalo considerável”, completa a pesquisadora.
Em 2014, o Brasil saiu do mapa da fome, e os louros dessa saída não estão concentrados em um governo ou em uma única estratégia, e muito menos deve ser vista como uma tacada de mestre. Os tijolos foram lentamente colocados para construir a estrutura da saída, e demorou anos até que a base estivesse pronta. Segundo Fernanda, os méritos não se limitam aos governos do PT, afinal algumas iniciativas estavam presentes a partir dos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e do Itamar Franco (1992-1994). Um fato inegável é a criação de políticas públicas voltadas para a alimentação da população brasileira nos anos de 2002 e 2003, não vistos antes em nenhum outro governo.
O grande X da questão é entender que as sombras que acompanham o problema vivo e pulsante da fome não são unilaterais. Não é só uma questão de saúde pública, nem produção de alimentos, é a somatória, é o sistema e o todo, é sobre acesso e mercadoria, sendo assim, come quem tem dinheiro, quem não tem dinheiro, morre de fome. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU) para Alimentação e Agricultura (FAO), com a produção de alimentos do final de 2022, conseguiríamos alimentar a população estimada para 2050, ou seja, uma população para mais de 10 bilhões de habitantes.
É sobre acesso e mercadoria, sendo assim, come quem tem dinheiro, quem não tem dinheiro, morre de fome.
Quase 80 anos se passaram desde a publicação do livro Geografia da Fome e ainda vivemos no mesmo recorte e nas mesmas linhas descritivas e literárias que Josué de Castro teceu. A volta do Brasil para o mapa da fome era prevista antes da pandemia da Covid-19, devido ao sucateamento das políticas públicas voltadas para a alimentação e o acesso quase nulo aos alimentos. O Inquérito sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia, feito em 2022 sobre 2021, apontou 125 milhões de pessoas, ou seja, mais da metade da população, 58%, com algum índice de insegurança alimentar, e 33 milhões em insegurança alimentar grave, ou seja, passam fome.
Com o vai e vem, entre a entrada e a saída, chegamos na inércia. A alegoria da caverna, de Platão, pode ser comparada com essa trajetória. Se a saída do Mapa da Fome garantisse que os muitos quilos de alimentos produzidos e colhidos chegariam à mesa, aos pratos e à boca, talvez pudéssemos cogitar uma aproximação à solução. A caverna é muito maior, e as sombras e projeções nada parecidas com a realidade.
O perfil da fome
Há anos a insegurança alimentar acompanha Hellen como uma sombra. A memória viva de comer o que sobrava ou o que pedia na região da Rodoviária Velha em Campo Grande, é o que hoje mantém o seu fogão do lado de fora de casa, um recado silencioso de que enquanto ela estiver ali dificilmente alguém vai ter que passar pelo que ela passou. A mesma comida que alimenta suas filhas é divida com a Comunidade da Vitória, comunidade próxima ao bairro Noroeste, inteira.
“A fome tem cor, gênero e localização, são pessoas do norte, nordeste e centro-oeste do país passando fome, são as pessoas pretas, indígenas e do interior” – Fernanda
O desenho desse perfil tem olhos, nariz e boca, e se fosse uma pessoa seria uma mulher. Famílias chefiadas por mulheres têm radicalmente um aumento da fome, atrelado ao desemprego, subemprego e informalidade nos trabalhos; também salários menores e falta de rede de apoio.
Quando o Bolsa Família ainda era Bolsa Escola, no governo do Presidente Fernando Henrique, o vínculo de recebimento do benefício estava no nome da mulher da família, afinal mesmo não chefiando a casa, se tinha a garantia da aplicação do recurso para e na família. Em 2019, no governo de Jair Bolsonaro (2018 – 2022) esse vínculo se quebra, além da queda radical do valor do Bolsa Família, o benefício poderia ser recebido por qualquer membro da família.
Outro desenho do perfil da fome tem seu esboço no racismo e no sistema patriarcal do estado Brasileiro. “Famílias chefiadas por homens negros e indígenas são as que mais passam fome no Brasil”, completa a pesquisadora Fernanda Savicki. Josué de Castro, médico e autor negro, já sentia e sabia que o problema da fome não é só o acesso e sim o fator racial. Para ele, a estrutura racial brasileira impede que algumas pessoas ou categorias, ascendam e, principalmente, ascendam com uma alimentação adequada. Carolina Maria de Jesus afirmava com sua literatura, de maneira cirúrgica, que o Brasil só venceria a fome (e sua memória) quando fosse governado por quem já passou por ela.
Comer é um ato político
O Guia Alimentar para a população brasileira, de 2014, é um documento reconhecido internacionalmente e pioneiro quando se trata de relacionar a alimentação com a valorização da cultura, além de incluir as dimensões da alimentação saudável, não focando apenas no nutriente.
O caminho do alimento até a mesa é levado em consideração, ou seja, sua origem. Se é plantado, cultivado e colhido por mão de obra análoga à escravidão ou agricultura familiar, e também valoriza o comércio regional e local, selecionando alimentos para determinada região que são cultivados ali, justamente para ser realista em relação ao acesso. “Até mesmo para produzir um alimento fora da estação, tem que usar mais agrotóxico, tem que usar mais fertilizantes, ou na substituição dos alimentos, um exemplo é a substituição do arroz pela batata doce, com alegações mais saudáveis, a gente não produz batata doce, já que eu quero substituir algo, porque não substituo por mandioca, que produzo aqui no meu estado?” explica Anderson Holsbach, nutricionista e presidente da Associação Sul-Mato-Grossense de Nutrição.
Segundo o nutricionista, o guia recomenda que a base da alimentação seja feita de alimentos in natura, ou seja, como ele se encontra na natureza, mantendo sua estrutura original. Seguido de alimentos minimamente processados, que é um alimento que parte do in natura mas sofre uma modificação para torná-lo consumível, como a farinha de mandioca, por exemplo. O alimento processado, para sua conservação necessita ser adicionado em uma salmoura ou em uma calda, como o milho enlatado ou o pêssego em conserva. E por fim, os alimentos ultraprocessados, que não tem nada, ou quase nada, de origem animal ou vegetal, é um produto majoritariamente feito pela indústria, sendo assim, tem alto desequilíbrio na sua composição nutricional, com incrementos aditivos nocivos para a saúde, como embutidos e refrigerantes.
O direcionamento documentado no guia é priorizar produtos in natura ou minimamente processados, limitar o consumo dos alimentos processados e evitar os alimentos ultraprocessados, esses que por sua vez estão cada vez mais frequentes na mesa da população brasileira. Por estarem cada vez mais baratos e suprir de alguma forma o ronco da barriga no fim do dia, são danosos a curto e longo prazo para a saúde, e com o consumo desenfreado podem desencadear hipertensão, diabetes, obesidade e até mesmo, câncer.
Anderson pontua que todos precisam dos macronutrientes e dos micronutrientes, mas a quantidade varia de acordo com a pessoa, idade, condições de saúde e ciclo de vida. E também depende das atividades que exercemos ao longo do dia. “Se eu estiver trabalhando na frente de um computador, eu vou ter necessidade de menos energia do que aquela pessoa que trabalha na roça, então tudo isso vai se diferenciar”.
As consequências da memória da fome na questão nutricional tem nome, afinal, no retrato da insegurança alimentar a pintura da desnutrição tem moldura e marca na pele, principalmente das crianças. “O efeito cascata da fome é muito grande, então a gente pode ter problemas relacionados à memória, à hipoglicemia, ela vai ter um baixo rendimento escolar”. O nutricionista também complementa que até a economia é afetada. “Uma pessoa com baixo rendimento escolar terá dificuldades de se colocar no mercado de trabalho”.
As superações não se limitam à memória da fome, o ciclo dela precisa ser quebrado. Antes de pensar em nutrientes, alimentação saudável e comida de verdade, é necessário ter garantia de que algo vai chegar. “Quando vocês fazem um resgate lá de 1996 para cá, devem lembrar de que lugar a gente está falando, de que cenário está falando, então as políticas públicas interferem muito. A gente dificilmente vai conseguir colocar um prato equilibrado, nutricionalmente balanceado, na mesa de todos os brasileiros, se a gente não tiver uma economia fortalecida por uma política pública fortalecida”, finaliza Anderson, ao defender a luta pela garantia do direito à alimentação adequada e saudável, por meio da agroecologia, da agricultura familiar, e de políticas públicas na mesa, no prato e no corpo.
Uma herança do Brasil colônia e escravocrata
O livro Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, descreve a linha tênue entre a ficção e a realidade, da fome junto a uma herança não tão distante, de um Brasil Colônia marcado pela política escravocrata. Assim, a fome entre produtores de alimento, é irônica e criminosa, como pode alguém que produz, planta, cuida e colhe não ter o que comer?
“Nós aqui, colonizados e descendentes das Sesmarias, seguimos com um valor que nos foi imposto, que ter terra, significa ter poder”, contextualiza Alejandro Lasso, mestre em agroecossistemas e doutor em ciências humanas, sobre o Brasil ter uma herança enraizada que contribui para o aumento fome. Alejandro explica que processos como a reforma agrária, a retomada de terras indígenas e a criação de terras quilombolas proporcionam e facilitam o aumento da autonomia das famílias descendentes a terem seu próprio terreno, para garantir ao menos, alimento.
A lógica da fazenda deturpa o direito de ter um pedaço de chão, afinal, esse direito vai por sua vez, contra a lógica econômica. Os países colonizados carregam consigo outra lógica, a do senhor, do domínio das terras, de obedecer e servir, e seus descendentes carregam os fardos de quase 400 anos de escravidão, inseridos veladamente na genética cultural. “Aqui tem muito agricultor, muito agricultor familiar que mesmo tendo seu pedacinho de terra acha que não vai conseguir fazer nada por si, e se convence de trabalhar na fazenda, em vez de trabalhar na sua própria terra ou sai de suas terras por inúmeras questões e vai para a cidade tentar algo, o problema é que no campo pelo menos você tem uma opção concreta do que fazer, na cidade não’’, finaliza Alejandro.
A narrativa de Itamar Vieira e as falas de Alejandro têm em comum a busca por revelar a falha genética e estrutural de uma herança que cada vez cresce mais e não leva em consideração as possíveis soluções, a dúvida de Itamar não respondida por ninguém, persiste, junto da fome, “Até quando vamos contribuir para a manutenção de uma sociedade que não defende os direitos alimentares e que não fortalece os pequenos agricultores?”
Uma mão alimenta a outra
O motor do carro estacionando do lado de fora soa como um anúncio de vida. O alimento, antes de ser provado pela boca, é sentido pelas mãos pequenas e curiosas das crianças, que são as primeiras a quererem tocar na comida que chega e, atrapalhadamente, ajudar a levá-la para dentro de casa. Embrulhados em plástico, um saco de arroz, feijão, sal, molho de tomate, um pacote de macarrão, e os olhos infantis brilham quando encontram no meio de tudo aquilo uma bolacha ou umas balinhas para adoçar a boca depois do almoço. Com o passar dos dias, o pouco que tinha guardado já não alimenta mais todo mundo. Entre sentir no próprio corpo a dor da fome e assistir os filhos reclamarem de estômago vazio, o que tem fica para as crianças. O suspiro que a mãe solta é de alívio, porque, durante aquele mês, a fome pode voltar a ser apenas uma memória.
Atualmente, 70 mães esperam por uma das cestas básicas distribuídas pela Central Única das Favelas de Campo Grande (Cufa). A organização não governamental atua em âmbito nacional, promovendo atividades nas áreas de educação, lazer, esportes, cultura e cidadania para aqueles que vivem em favelas e bairros marginalizados. Em Campo Grande, a ONG entrega, todos os meses, em média 100 cestas básicas para famílias em situação de insegurança alimentar.
Ainda que alimentação seja um direito previsto na constituição, na prática, o vácuo deixado pelas instituições públicas precisa ser preenchido pela sociedade civil. “Quando uma família chega até nós, sempre tentamos primeiro encaminhar para o Cras [Centro de Referência de Assistência Social], mas ela acaba voltando porque, por mais que existam projetos do governo para tirar ela dessa situação, eles não são suficientes”, afirma Letícia Polidoro, coordenadora da Cufa.
De acordo com a Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal, em MS, 60.284 famílias são beneficiadas pelo novo Bolsa Família, e recebem um valor médio de R$ 688,75. Esse dinheiro dilui-se em uma conta de água, completa a conta de luz e se esforça para comprar o gás. Seus resquícios vão parar no mercado e já não tem como levar quase nada. Segundo dados de Estatísticas do Registro Civil do Censo de 2022, do IBGE, 2,7 milhões de pessoas no Brasil não possuem certidão de nascimento, o que as impede de reivindicar esses benefícios.
Enquanto as políticas públicas ainda não são capazes de atender a população em situação de vulnerabilidade, a fome se faz presente nas periferias, nos bairros e se escancara nos semáforos espalhados pela cidade. Ignorar deixa de ser uma opção e uma mão passa a alimentar a outra na tentativa de amenizar a situação. A solidariedade não vai acabar com a fome, mas permite que Hellen, Josué, Elisangela e centenas de outros campo-grandenses continuem vivos e persistindo contra a memória da fome.