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Reportagem 101

A presença que falta

Abandono e ausência paterna trazem duras consequências para mães e filhos

Texto: Isadora Vasconcellos | Milena Melo
Ilustração: Ana Beatriz Leal


É o segundo domingo de agosto. Nas escolas, as crianças performam alegres apresentações para prestigiar seus pais. Nas lojas, há vários artigos com frases “para o melhor pai do mundo”. Na televisão, diversas propagandas de apelo emocional sobre a relação entre pais e filhos. Mas, enquanto isso, para muitas pessoas, quando se fala a palavra pai, só existe um espaço que não pode ser preenchido .

De acordo com o Portal da Transparência, de 2020 a 2022 houve um aumento de quase 5% de pais ausentes, uma ampliação de mais de sete mil crianças que não tiveram o registro do pai na certidão, em comparação aos outros anos. No ano de 2023, entre os meses de janeiro e setembro, o número de abandono já atingiu 143 mil crianças. Além dos que acontecem antes do nascimento, os que ocorrem depois de o filho nascer podem ser tão ou mais comuns e dolorosos.

A assessora parlamentar Natália Fernandez tinha apenas três anos quando seus pais se separaram e por isso, não tem lembranças com o pai, que foi muito ausente. Exceto os dias que recebia pensão, ela não o via e ele não entrava em contato. Os outros membros da família raramente ajudavam com sua criação, e sua mãe se tornou responsável integral por cuidar dela e de seu irmão. “Tanto financeiramente quanto emocionalmente, a gente só tinha nossa mãe.”

Por viver desde muito cedo a ausência paterna, Natália reconhece os impactos que isso causou em sua vida. Casada há quatro meses, um dos desafios é não deixar a carga emocional do passado influenciar seu casamento. “Isso me deixou muito insegura no sentido de olhar para as pessoas que tinham aquele seio familiar bastante próximo e ver que eu só poderia contar com a minha mãe. E também destruiu um imaginário saudável sobre homens”.

A paternidade sempre foi um papel muito complicado. Natália conta nos dedos os maridos e pais que ela conhece e que são presentes e realmente causam um impacto positivo na família, que constroem essas relações de forma saudável. “A ausência paterna faz com que você não tenha reforços positivos para se relacionar com algum homem, isso também nas amizades”.

Apesar da dor do abandono e do sentimento de ninho vazio, o rancor que Natália poderia sentir, não existia. Sua mãe sempre foi sincera com a filha e contava as razões para a ausência do pai. “Eu soube pela minha mãe que ele tinha sido muito agredido pelo pai, e abandonado pela mãe.”

Quando completou 18 anos, ela se aproximou de práticas budistas e diz ter amadurecido. Entendeu a tristeza que tinha com seu pai e desde então busca criar um novo relacionamento com ele. Hoje, com 25 anos, afirma que tem o pai muito mais presente. O perdão veio por conhecer seu passado e entender que ele não agia como um pai por também nunca ter tido um.

As histórias são diferentes, mas, o final parece sempre ser o mesmo, um pai que vai embora e deixa seu lugar vazio. Mariana Moraes dos Anjos, de 25 anos, é secretária parlamentar e conta que aos 13 sofreu o primeiro choque do abandono, o sumiço do pai. Apesar disso, antes do desaparecimento definitivo, a ausência já era vivenciada dentro de casa, quando o sustento vinha unicamente da mãe, enquanto o pai vivia de bicos e ficava fora por dias com a desculpa do trabalho. A presença era apenas fisicamente, pois quando ele estava no lar não participava ativamente da vida familiar.

A convivência era dolorosa para Mariana, que presenciava a dupla vida de seu pai que colecionava amantes. Quando o escutava conversar com as mulheres pelo celular, tapava os ouvidos e torcia para que o tempo passasse mais rápido. A gravidez da amante o levou de vez, construiu uma nova família e deixou Mariana, sua mãe e irmão para trás. A menina que antes ouvia as conversas do pai, passou a ouvir os choros da mãe desamparada após a partida dele. Mas, apesar das sequelas emocionais, a família que se reduziu a três membros prosperou.

“Quando ocorre o distanciamento do pai, a criança pode desenvolver muitos traumas, como medo excessivo do abandono, baixa autoestima, dificuldade escolar e até propensão a vícios”, explica a psicanalista Ludmila Zarates. Cada indivíduo reage de um jeito, porém na maioria dos casos, a pessoa pode desenvolver transtornos psicológicos devido ao abandono. ‘’Na fase adulta, aparecem mais as questões nos relacionamentos, a pessoa pode ficar mais fechada, ter dificuldade de confiar’’, complementa.

Mariana teve dificuldade em se relacionar com homens. “Por ver o relacionamento dos meus pais, aprendi que tinha que aceitar o mínimo”. Ela perdoava traições e mentiras, se envolvia em relacionamentos que abalavam sua estrutura psicológica e achava que isso era normal. Atualmente, a jovem afirma estar em uma relação saudável.

A dor da mãe solo

A dor do abandono não afeta apenas os filhos. As mães, deixadas com a responsabilidade de lidar com tudo, também sentem as consequências. A maioria dos lares brasileiros são chefiados por mulheres. Dos 75 milhões de lares, 50,8% têm liderança feminina, o correspondente a 38,1 milhões de famílias. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – DIEESE, 56,9% das famílias chefiadas por mulheres com filhos vivem abaixo da linha da pobreza. Para mulheres negras, a proporção sobe para 64,4%.

Há 27 anos, depois do divórcio, Marinelza da Silva Melo mudou-se de São Paulo para Campo Grande com seus dois filhos pequenos. Na nova cidade, sem conhecer ninguém, ser mãe solo foi um desafio amargo, pois não teve sequer apoio da família. Os pais não a queriam em contato com as irmãs para que elas não seguissem seu “mau exemplo”. Marinelza também ouviu opiniões cruéis da vizinhança.

“Logo que cheguei em Campo Grande, ouvi muita crítica, porque uma cabeleireira nova e bonita, é puta. Filho de mãe separada é noiado, a menina vai ser puta também”. As palavras duras emocionam até hoje e ela lembra das noites em que aos prantos, se ajoelhava e rezava pedindo forças.

Os limites entre mãe e profissional eram como cordas bambas. Sem ter com quem deixar os filhos para poder trabalhar, ela os deixava sozinhos nos fundos da casa, e se um cliente aparecesse mais cedo, tinha que deixar sua filha ir sozinha de bicicleta para a escola. “Tudo que era barulho eu pensava que minha filha tinha sido atropelada, mas ou ela ia sozinha ou eu não trabalhava.”

Atualmente, Marinelza está com 61 anos e continua com o salão de beleza. Com os filhos crescidos, diz com carinho que todo o acolhimento que deu aos filhos, agora é retribuído por eles. Johnny é tecnólogo em redes, trabalha em São Paulo e não hesita em ajudar a mãe, assim como Suzanne, que continua presente.

Ter que prover os lares sozinhas e cuidar dos filhos deixa as mães sobrecarregadas e sem tempo para lidar com questões pessoais ou de lazer. “É uma sobrecarga e uma solidão imensa, a mulher não tem direito nem de ficar doente”, afirma a assistente social Lesly Lidiane. É uma cultura que responsabiliza a mulher por tudo. Quando uma criança se machuca na escola, quase sempre ligam para a mãe. Quase nenhuma função é atribuída ao homem. O ato de pagar a pensão é comumente visto como suficiente, mesmo a quantia sendo muito abaixo das necessidades da criança . “Tem que cobrar dos pais o mesmo tanto que cobram das mães.”

A maternidade é compulsória, a mulher não tem direito a pensar em outra coisa quando engravida. A sociedade que julga a mulher que não quer ser mãe, que a demoniza quando ela escolhe não ter o bebê é a mesma que normaliza um pai que abandona seu filho depois de nascido. O abandono paterno é o aborto social, aquele que a sociedade escolheu legalizar.