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Opinião 102

A prosa do marinheiro

Texto e Ilustração: Emilly Nunes


Numa segunda ou terça bem cedinho antes dos netos acordarem, estou em pé na sala junto ao gato e ao cão. Os dois, deitados no sofá de barriga para cima sem nenhuma conta para acertar com a vida, eu, sem conseguir descansar a cabeça. A fiel e confiável companheira, minha bengala, segura meus velhos ossos no lugar. Me olho no espelho ao lado da porta, e mesmo que eu não consiga ver nada além de sombras e vultos, uma criança me encara do outro lado. Um menino moço da pele preta, os cabelos curtos bem penteados, a roupa amassada, com um esfregão em uma mão e um balde na outra.

Ele está numa embarcação, limpando com vontade qualquer sujeirinha que encontra. Ele pega carga pesada com os marujos, que seguem as ordens do capitão. Ele esfrega e esfrega, até que suas mãos estejam vermelhas, com calos e farpas a decorar sua pele. No final do dia, quando a barca já atracou, alguém lhe dá um punhado de moedas pelo trabalho. Ele vai para casa, e encontra sua mãe cuidando das crianças com um pano no ombro. Seu pai e seu irmão mais velho acabaram de chegar da colheita dos pés de cana de açúcar. O menino se serviu da farinha de paçoca, peixe e um copo de chá.

Eu sabia quem era a criança mesmo sem enxergar suas feições, eram as mesmas que as minhas, com menos rugas e manchas, e mais dentes. Que rapaz forte eu era! Peço que se sente, sirva uma xícara de café e se junte a mim numa prosa. Tentarei resumir a história do menino que fui, e do velho que sou nesta página.

Benedito é meu nome. Benedito Gonçalves. Dito para os chegados e a família. Me dê um bolo de fubá, uma rapadura e um café, e converarei por horas a fio. Do pouco que ainda lembro, desde criança trabalhei, ajudei a trazer dinheiro na mesa, sem tempo para as brincadeiras de infância. Já vendi rapadura com mamãe e ajudei meu pai no campo, mas o lugar onde eu sempre batia ponto era nas barcas. Passava horas no convés, trabalhando duro, enquanto a água cantava sempre que batia no casco. Os filhos que me restam gostam de se gabar do quão bom eu era na matemática, mesmo que eu nunca tenha aprendido a ler e escrever, afinal, o trabalho em casa começou cedo e os poucos anos que estudei não foram suficientes.

Quando fiquei moço, lá pelos meus 18 anos, me alistei na marinha, e lá fiquei até não poder mais. Era uma vida tranquila e sossegada, aquela vida marítima. A gente ouvia e fazia. Como eram bons esses tempos. Viajar pelo Brasil, conhecer as cidades, andar pelas ruas como um boêmio, jogos de azar com os marujos, eram alegrias que a vida me proporcionou. Mas nem tudo eu pude aproveitar. Nunca soube e nunca vou saber o que é um bom livro. Nem como é meu nome em letra cursiva. Talvez se tivesse insistido em continuar na escola, eu seria um homem estudado. Talvez um poeta, um compositor de rodas de samba. Um prisioneiro das palavras, liberto apenas ao jogá-las no papel. A vida seria outra?

Tive duas esposas, e tantos filhos que perdi a conta lá nos meus 80 anos. Vi presidentes se erguerem e caírem, perdi amigos para várias batalhas que me fogem a memória. Estive lá quando o Brasil foi tomado pela dor da ditadura, a gente como a gente levar porrada, perder os filhos e a casa, e o álcool, tão amado álcool, ser proibido de estar nas prateleiras. Não tinha mais as mesas de bar, as conversas sob um copo de pinga e torresmo. Vi os jovens se revoltarem e vencerem, e fiquei sem saber o que devia sentir. Um marinheiro de convés como eu seguia ordens, não importa quais fossem, mas o patrão que mandava na gente foi substituído. Se para o bem ou para o mal, eu já nem lembro mais.

Uma hora o fardo da idade chega e o meu já bate na porta. Sinto a gana para trabalhar e andar à toa pela cidade por horas, mas um passo em falso e dou um beijo francês bem dado no chão, afinal, sou um moço de 103 anos. Sou doutor e tenho mestrado na faculdade da vida, mas não posso ser aluno das palavras. Hoje, nada aprendo, pois a mente está tão cheia que transborda pelos ouvidos. Apenas o som da TV, o cão e o gato me fazem companhia.