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Opinião 100

À segunda vista

Texto: Giulia Mariê e Marcus Gonçalves


“À primeira vista uma porcaria. Por ser uma produção de um curso de jornalismo, é uma vergonhazinha. Acho que o aspecto de semanário fechado em fundo de quintal condiz com a realidade local”, provocou Iq Tisara –  personagem criado pelo jornalista Eser Cáceres para extravasar críticas à imprensa sul-mato-grossense – , na capa da edição 34 do Projétil, em 2001.

Ilustração: Giulia Fonseca

Nesta edição 100, que revisita algumas matérias históricas, a desaprovação de 22 anos atrás suscitou o desejo de retornar à análise crítica da produção do jornal. Retomamos o Ombudsman, coluna que já apareceu no Jornal Laboratório, e partindo de uma provocação à la Iq Tisara, propomos, enquanto meros estudantes que produzem um jornal de “fundo de quintal”, redigir uma segunda vista, com considerações mais construtivas que as feitas pelo personagem de Eser.

A primeira porta que abrimos é a da combatividade. Nas primeiras edições do jornal, ela era evidente nas marcas de opinião das reportagens e trazia à tona críticas sobre os assuntos abordados. A capa da primeira edição, por exemplo, estampou um escândalo político, “O jogo de cena na terra dos compadres”. As edições mais atuais não perderam o posicionamento contestador, mas estão menos explícitas, mais ancoradas nas pautas pouco exploradas pela mídia local. Parte disso se deve a falsa ideia de propagar conteúdos jornalísticos com imparcialidade autoral.   

A porta que abre para a discussão da representação feminina é outra mudança percebida. No livro “Jornal laboratório Projétil: História e Discurso”, Isadora Leiria analisa as edições de 1990 a 2015 e pontua que “muitas das matérias que falavam sobre mulheres…eram, em sua maioria, sobre prostituição e maternidade”, utilizando termos do “universo feminino”. A observação das edições mais recentes indica que essa representação machista e distorcida da figura feminina está em vias de superação. As mulheres aparecem em mais espaços e a maternidade, ainda que presente, explora debates socialmente pertinentes, como na edição 84, toda elaborada com perspectiva de gênero.

Contudo, por mais que exista uma preocupação em representar as mulheres em diferentes – e mais amplos – contextos, acontecem erros graves na apresentação da identidade de fontes – algo incabível para um jornal que se intitula progressista. Na edição 99, Nala Delgado Arruda, conhecida como Afropaty, foi fonte de duas reportagens e uma delas usou seu nome morto – por mais que o próprio termo já deixe claro o impacto negativo deste uso. Nala traz à tona, ainda, outra porta que precisa ser aberta pelo Projétil, o fontismo. Ela, que também é aluna da UFMS, foi entrevistada duas vezes na mesma edição. Este é um fenômeno recorrente na vida do estudante de jornalismo, que, por vezes, percorre o caminho mais simples e apela para a rede de contatos próxima, deixando de abordar fontes que poderiam agregar mais às reportagens. 

Outra janela entreaberta é a parceria com o grupo “Pensar o Desenho”, do curso de Artes Visuais da UFMS. A colaboração possibilita a troca entre acadêmicas/os e a produção de ilustrações por profissionais em formação; em contrapartida, no que diz respeito à produção da capa, usando a fala do professor Silvio Pereira na coletiva do Projétil, pode servir também como uma “muleta”. Ao terceirizar o primeiro ponto de contato do público com o jornal, nos livramos do desafio de “fisgar” o/a leitor/a. Instigar alguém a ler um jornal em tempos de acesso fácil – e raso – à informação é desafiador e, talvez, seja por isso que evitamos encará-lo. 

A última porta, que as edições têm mantido aberta, é a da liberdade editorial. O jornal investe nas marcas de opinião e insiste em temas socialmente relevantes, muitas vezes deixados de lado pelos grandes veículos, seja pela falta de tempo ou por suas cargas polêmicas. Ainda assim, há uma certa repetição temática e a preferência por tópicos de cultura e comportamento, que deixam outros assuntos, como economia e política,  em segundo plano.

O jornal é laboratório e “quem não publicou no jornal Projétil, não passou pelo curso de Jornalismo da UFMS”, sentenciou o professor José Marcio Licerre. Para viver essa experiência é necessário estarmos abertos a lidar com o que está intrínseco ao processo de aprendizado laboratorial: as tentativas, os erros e os acertos. E também, a crítica.