Nossa história começa em meados de 1830, quando as minas de ouro de Goiás entraram em colapso e abriram espaço para a economia agropastoril. Fazendas inteiras foram construídas por meio da mão de obra escrava. Homens na construção e no campo, mulheres nos afazeres domésticos servindo seus senhores. Foi na primeira propriedade de gado, no território da família Vilela, na fazenda Ariranha, no sul de Goías, que em 1848 nasceu a escrava Eva Maria de Jesus, anos depois conhecida como ‘Tia Eva’.
Aos 22 anos, Eva deu à luz a Sebastiana, sua primeira filha. Em seguida, vieram Joana e Lázara. Todas de pais diferentes e concebidas na fazenda que servia. A escrava cuidava da cozinha desde muito cedo. Nessa época, cada mulher escrava possuía uma função, a de Eva era fazer doces. Até que um dia, por acidente, uma panela de banha quente caiu em sua perna, abrindo uma ferida que não cicatrizava. O odor da lesão fez com que deixasse suas obrigações da cozinha para se alojar em um ranchinho dos fundos mais afastado da casa para trabalhar fazendo sabão.
Sempre apegada a sua fé a São Benedito, a escrava Eva possuía o dom de benzer e com o passar dos anos ficou conhecida por toda fazenda Ariranha e aos arredores como “Tia Eva”. As pessoas a procuravam para benzer ventres, roças, pastos e outros males.
Assim como em outras fazendas, maus tratos e punições físicas também existiam em Ariranha, histórias eram sempre comentadas nas cozinhas das fazendas pelos escravos e quando libertos, contadas a seus descendentes. Ao presenciar a tortura, Eva pôs a prova sua fé e fez um pedido a São Benedito, um santo católico que também é preto. Ela pediu para que saísse do estado de Goiás e viesse para Campo Grande, então Mato Grosso (MT). Que aqui arrumaria um lugar para as pessoas de sua cor, mas que seriam independentes e não mais escravos. Viveriam e fariam suas próprias casas e cultivariam seu alimento. A escrava ouvia as histórias de migrantes que vinham para MT em busca de terras.
Eis que em 1888 ocorre a abolição da escravidão. Houve migração para outras regiões, povoamento de Jataí com construções de casas de pau a pique e muita miséria. Dada a ‘liberdade’, os escravos foram largados à sorte para tomar seus respectivos rumos, sem nenhuma assistência. E a elite ainda tratava os libertos como escravos. Muitos preferiram ficar nas fazendas, foi o caso de Tia Eva que, sem condições financeiras, continuou servindo os Vilelas, sem deixar de lado suas benzeções. Aos poucos foi recebendo doações em forma de gratidão daqueles que benzia e eram milagrosamente curados.
Anos se passaram, mas o sonho de vir para Mato Grosso ainda continuava vivo. Foi em 1904 que Eva e sua família se juntaram a um grupo de escravos libertos de Uberaba (MG) que seguiam viagem para Mato Grosso. No limite do estado a caravana precisou passar pelo posto de fiscalização para serem cadastrados. Os sobrenomes foram inventados, visto que vários deles não possuíam. As mulheres do grupo adotaram o sobrenome “de Jesus”. Assim surgiu a “Eva Maria de Jesus”, reconhecida em seu grupo como liderança religiosa.
A viagem durou longos meses. Tia Eva chegou à Vila Santo Antônio de Campo Grande em 1905, carregando São Benedito e Santa do Rosário. A comitiva se instalou em uma área afastada da vila, terras menos valorizadas, região de mata próximo ao córrego segredo, na época conhecida como Olho D’água. Ali fizeram suas casas e plantaram seu alimento, em um lugar onde eram livres e não mais açoitados. Dali surgiu sua segunda promessa, a de cura. Eva rogou a São Benedito para que tratasse sua perna e se assim feito, construiria uma capela para o santo. Anos depois a ferida foi curada e a obra iniciada. A conclusão da obra deu origem a uma grande festa, realizada tradicionalmente até hoje pela comunidade todo mês de maio.
Em um tempo e localidade onde não havia sacerdote, Tia Eva se tornou a sacerdotisa não só de sua comunidade, mas também de Campo Grande. Uma mulher preta, ex-escrava fez história e deixou um grande legado, visto e reconhecido por descendentes e muitos outros. Atualmente, 150 famílias vivem e contam com orgulho sobre sua história e seus feitos: seu sonho, fé e luta. A irmandade e o pertencimento à comunidade fazem com que nunca se sintam sozinhos. Assim é na comunidade quilombola Tia Eva, em Campo Grande, hoje Mato Grosso do Sul.