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Reportagem 94

Além do arco-íris

O que muita gente não sabe é que os bissexuais e pansexuais são parte da comunidade LGBT+ e que o preconceito não permeia apenas fora, mas também dentro dela

Texto: Ayanne Gladstone, Beatriz Saltão e Roberta Martins


Ilustração: Arianne de Lima

Bissexuais e pansexuais são parte da comunidade LGBT+ – ela reúne lésbicas, gays, transgêneros, transexuais, travestis, assexuais, intersexos, queer entre outros. Os dois termos estão em constante processo de validação e visibilidade, por isso é necessário lembrar que quem se assume como tal também é vítima de preconceito. Apenas em junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a criminalização da LGBTfobia, prática discriminatória contra a liberdade e os direitos fundamentais dos LGBT+. 

Compreende-se por bissexual o indivíduo que se atrai por dois ou mais gêneros. Em contrapartida, o pansexual é aquele cuja atração por alguém não se baseia em seu gênero. Duas definições que, embora elementares, ainda confundem muita gente. 

Para compreender a percepção e o modo como lidamos com nossas próprias orientações sexuais, o Projétil foi em busca da história de pessoas que vivenciam um processo constante de autodescoberta e desconstrução para abraçarem suas próprias cores. 

Rosa, roxo e azul escuro

O conceito da atual sigla LGBT+ foi explicitado em 1994 – na época continha apenas as letras GLS e representava gays, lésbicas e simpatizantes. Ao longo dos anos, ela foi rediscutida e atualizada de modo a incluir mais características a respeito de gênero e orientação sexual.  Além da sigla, também ficou muito popular a bandeira da diversidade, simbolizada pelas cores do arco-íris, diretamente ligada ao orgulho LGBT+ e ao movimento gay. Poucos sabem da existência de várias outras bandeiras dentro da comunidade que, por meio de cores específicas, representam outros gêneros e orientações sexuais. 

O Dia da Visibilidade Bissexual – 23 de setembro – foi criado em 1999, quando ativistas norte-americanas enxergaram a necessidade de uma data comemorativa para marcar essa orientação sexual. Além da data, a bissexualidade também é demarcada por uma bandeira exclusiva, composta pelas cores rosa, roxo e azul escuro. A cor rosa simboliza a atração pelo mesmo gênero ao qual a pessoa pertence, o azul a atração pelo gênero oposto e o roxo a atração pelos dois gêneros ou mais. É necessário entender que, hoje, os bissexuais ressignificaram sua identidade. Segundo eles, a bissexualidade não é binária, por isso sentem atração por mais de dois gêneros. 

A professora e ativista pelos direitos feministas, Patrícia Rosa, 43, defende a inclusão de mulheres transexuais. De acordo com ela, as trans devem ser tidas como mulheres a partir do momento que se identificam com o gênero feminino. Nos anos 90 se relacionou com uma antiga amiga e iniciou seu processo de autodescoberta. Porém, ela se permitiu abraçar o florescimento da bissexualidade somente depois da separação em uma relação heterossexual, ao se aproximar de uma mulher. 

Patrícia afirma que sua bissexualidade transita por um processo de amadurecimento. “Eu acho que ainda estou nessa fase de entendimento da minha bissexualidade. Na verdade, eu acho que nós não deveríamos separar as pessoas. Pessoas gostam de pessoas e ponto. Desde que elas entendam sua posição cognitiva e social, é válido”, declara.

A estudante universitária, Emily Lima, 20, relata a sua longa e confusa descoberta como bissexual. Como cresceu ao redor de princípios religiosos, sentiu-se intimidada com os pensamentos relacionados a sua atração sexual por garotas e o fato de ainda não ter sentido interesse por garotos. “Eu admiti para mim mesma que gostava de meninas aos 12 anos. Naquela época, comecei a desenvolver sentimentos por uma amiga próxima e fiquei desesperada”. Como suas primeiras experiências afetivas aconteceram com garotas, cogitou que fosse lésbica e, consequentemente, iria para o inferno. Aos 15 anos começou a se atrair por garotos também. Ela se sentiu ainda mais confusa, porque até então nunca tinha ouvido falar sobre bissexuais.

Sua experiência dentro da comunidade LGBT+ é bem vista por ter tido relações afetivas e sexuais com outras mulheres, embora afirme que rejeitar a monossexualidade parece complexo para lésbicas, gays e héteros. “Pelo fato de também me atrair por homens é como se eu estivesse sujando a bandeira LGBT+ para muitos. Ouvi e continuo ouvindo inúmeras frases bifóbicas de amigos, colegas da faculdade e militantes no geral”, confessa. 

A “bifobia” é um termo relativamente novo. Ele surgiu para caracterizar ideias ou ações negativas, preconceituosas ou discriminatórias contra a bissexualidade. Uma das percepções abraçada por quem defende tal ideia é a que os bissexuais são ‘promíscuos’ e confusos por não decidirem ficar com apenas um gênero, além de terem a chance de infectar seus parceiros com doenças sexualmente transmissíveis.

Da esquerda para a direita: bandeira bissexual, bandeira lgbt+ e bandeira pansexual.
Ilustração: Arianne de Lima

Rosa, amarelo e azul claro

Mas também há uma bandeira que representa o orgulho pansexual, e ela é composta pelas cores rosa, amarelo e azul claro, sendo rosa e azul o estereotipado divisor entre os gêneros feminino e masculino, respectivamente, e a cor amarela símbolo das pessoas que se identificam com um terceiro gênero ou com nenhum. Essa orientação ganhou popularidade no final dos anos 90 e repercussão na Geração Z, depois de celebridades como Sia, Miley Cyrus, Janelle Monáe, e até mesmo o anti-herói Deadpool das histórias em quadrinhos da Marvel revelarem sua pansexualidade e expandirem o movimento. 

Skarlatty Boden, 23, identifica-se como um homem transgênero e pansexual. Ele assegura possuir empatia pelos pansexuais que ainda escondem sua orientação. Em sua concepção, as pessoas tendem a reproduzir o que veem na internet e ouvem de pessoas não comprometidas a pesquisar sobre a pansexualidade. Assume-se abertamente um homem pan. “Eu sempre achei ruim essa coisa de tudo ser genital, homem ou mulher se vestir assim ou assado. Principalmente, depois que eu me desprendi de todas essas questões. De que há regras a serem seguidas para a sociedade te aceitar. Mas continua [a sociedade] te julgando por suas escolhas. Foi mais fácil para eu abraçar a pansexualidade”. 

Skarlatty diz que a bissexualidade também engloba pessoas trans. Segundo ele, uma parcela de bissexuais não se importa com a identidade de gênero ou genital – tal como os pan – embora outra parcela ainda tenha preconceito em se relacionar com alguém cujo sexo biológico é diferente do sexo ao qual se identifica. “Eu sei que muitas pessoas não são tão desconstruídas assim, principalmente agora em que muitos parecem ser tão contra os transgêneros. Mas é quase impossível você encontrar um pansexual que vai te menosprezar por você ser ou não cisgênero, por você seguir ou não padrões da sociedade”. O termo cisgênero, da fala de Skarlatty, indica o indivíduo que, em todos os aspectos, identifica-se com seu gênero biológico, ou seja, de “nascença”. 

De modo diverso, a pansexualidade de E. C., 21, não é a protagonista em sua relação familiar, uma vez que o estudante não a assumiu. Descobriu-se na adolescência e relata que sua orientação foi mais propriamente aceita ao se juntar à comunidade LGBT+ e criar laços com seus amigos atuais. Embora seja bem acolhido por eles, compartilha a opinião de Skarlatty. Para eles, bissexuais e pansexuais não são “bem vistos” dentro da comunidade. “Quando você fala que é uma pessoa pan, algumas dizem que você é promíscuo ou que você está ‘aberto a tudo’, e as coisas não são bem assim”, afirma E.C. 

E.C. e Skarlatty fazem referência aos conceitos controversos relacionados aos pansexuais, aos quais é atribuído o mito da prática de zoofilia e fitofilia, ou seja, a atração sexual por animais e plantas. A palavra pansexual deriva do sufixo grego ‘pan’, que significa ‘todos’ e agrega a ideia do pansexual se conectar ao interior das pessoas – não animais, plantas ou insetos – independente do seu gênero ou da falta dele. 

Por falta de conhecimento sobre o movimento, várias pessoas sequer cogitam a pansexualidade como a orientação que mais os sintetiza. “O que me atrai na pansexualidade é como as pessoas que existem nela são tão fáceis de conviver, tão amigáveis com os outros e parecem te compreender mais do que a si mesmos”, pontua Skarlatty.  

A última cor do arco-íris

Com essa diversidade de bandeiras LGBT+ pode-se dizer que, metaforicamente, o roxo não é a última cor do arco-íris. Contudo, essa é a cor que floresce na pele dos LGBT+ quando agredidos fisicamente por simplesmente se permitirem ser. 

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 indicam que no Brasil houve 99 homicídios dolosos de pessoas LGBT+ em 2017, no ano seguinte o número subiu para 109. No entanto, tais mortes estão subdimensionadas, pois dos 27 estados brasileiros somente 11 apresentaram esses dados. Entre os estados que informaram ao Anuário tais informações, apenas Mato Grosso do Sul não registrou nenhum assassinato doloso entre a comunidade LGBT+ em 2017 e 2018. Já os casos de lesão corporal dolosos são mais numerosos. Foram 704 registros em 2017 e 713 em 2018, números também sujeitos à mesma subnotificação devido à ausência de dados de muitos entes federativos. 

E quando a agressão não é visível? A discriminação e a violência psicológica não deixam cor em nossa pele, pelo contrário, elas descolorem nossa mente. 

Patrícia alega que nunca sofreu qualquer tipo de violência por se identificar como mulher bissexual, mas diz ter muitos amigos dentro da comunidade vítimas de injúria, humilhação e violência física. A mesma sorte não teve Emily, ela foi rejeitada por alguns amigos após se declarar bissexual e sofreu bullying na escola, onde colegas usavam termos pejorativos com relação a sua atração por garotas. 

A mãe de Emily é professora e sempre lidou bem com a sexualidade dos alunos, mas não reagiu positivamente com a bissexualidade da filha. Também não houve aceitação por parte de outros familiares, seguidores de dogmas cristãos. Ela então começou a namorar um garoto para evitar confrontos com a mãe, que havia censurado sua orientação sexual e agido como se nunca tivesse se assumido. Emily conta ainda que, em uma discussão humilhante, após outros familiares descobrirem sua bissexualidade, precisou sair de casa. 

A estudante diz que não se enxergava dentro da comunidade LGBT+ e tentou se afastar do movimento. Contudo, percebeu o quanto é necessário defender seu espaço como bissexual junto a seus pares quando se viu representada por celebridades, séries e filmes. “Por algum tempo ajudei a Casa Satine e, apesar de hoje não estar ajudando tão ativamente, sempre que posso contribuo para o movimento LGBT+ da cidade, principalmente aqui no Mato Grosso do Sul, um estado tão agressivo com as minorias”. A Casa Satine é a primeira república de acolhimento e espaço cultural LGBT+ do Mato Grosso do Sul. 

Emily, E.C. e Skarlatty afirmam ser mais doloroso quando o preconceito acontece dentro da comunidade que deveria acolhê-los, muitas vezes ela os caracteriza como seres humanos indecisos e infiéis. Emily faz uma ressalva: “O que parece é que as pessoas esquecem o ‘b’ da sigla LGBT+, muitas vezes nem mencionam. O ‘b’ só é lembrado em discurso de palanque. Na vida real homens gays e mulheres lésbicas tem medo de se relacionarem com bissexuais. Primeiro que ser bissexual não quer dizer infidelidade e segundo que não somos peças para fetiches”, diz ela referindo-se a uma parcela de homens heterossexuais que enxerga na relação lésbica um instrumento para fantasias. 

Skarlatty reitera que não fala tanto sobre sua sexualidade porque é comum concluírem que bissexualidade e pansexualidade são a mesma coisa. Escolhe se preservar para não sofrer discriminação, como ocorre com outras pessoas. “Eu vejo que uma boa parcela da comunidade LGBT+ não nos leva a sério, tanto como trans, quanto como pan. Parece que estão com ‘medo’ da gente. Eles deveriam parar para realmente nos escutar, sem sarcasmo ou menosprezo”. 

Então é possível firmar laços dentro da comunidade LGBT+? Skarlatty possui uma visão positiva: embora sua pansexualidade ainda seja não validada por muitos, vê ali um lugar onde as pessoas vão gostar de você pelo que você é e pelo que pensa, dessa forma retribuindo o sentimento do outro. “Apenas um ser humano gostando do outro. Apenas sentimentos e pensamentos. E eu sei que a minha orientação é muito mais do que isso, mas eu a vejo como a liberdade para amar e ser você mesmo sem medo de julgamentos”.