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Opinião 104

Além dos rótulos


No supermercado da vida, algumas pessoas circulam com etiquetas invisíveis. Elas não brilham, não apitam, mas são percebidas imediatamente. Estão coladas nos gestos, nos modos, no olhar que os outros lançam. “Coitado”, “especial”, “guerreiro”. Para quem tem deficiência, o rótulo costuma vir antes mesmo da fala e, muitas vezes, impede até que a conversa aconteça de verdade.

Ana, usuária de cadeira de rodas, não pode denunciar falhas no transporte público sem ser acusada de ingratidão. Afinal, “olha quanto já avançamos!” Oscar, deficiente visual, que vai trabalhar sozinho todos os dias, é parabenizado por atravessar a rua, como se isso fosse um feito extraordinário. Beatriz, que tem Transtorno do Espectro Autista (TEA), prefere o silêncio aos abraços, quase que por um símbolo de pureza, como se sua recusa a interações sociais fosse algo a ser romantizado. Muitas vezes, a interpretação equivocada, mas aparentemente compassiva, transforma indivíduos em figuras de força ou fraqueza, ignorando sua história.

Em comum, essas pessoas enfrentam não apenas os desafios concretos da acessibilidade, mas o peso simbólico de representarem mais do que são. Heróis ou vítimas, quase nunca apenas cidadãos.

Essa visão distorcida revela uma forma de preconceito ainda pouco discutida, mas muito presente no nosso dia a dia, o capacitismo. O termo designa atitudes, práticas e estruturas sociais que subestimam, desvalorizam ou infantilizam pessoas com deficiência (PcD). Diferentemente de preconceitos mais escancarados, o capacitismo costuma agir de forma sutil, embutido em elogios forçados, surpresas desproporcionais e silêncios constrangedores quando pessoas com deficiência ocupam posições de autonomia, liderança ou protagonismo.

O problema não está apenas nas barreiras físicas, ainda que elas existam em abundância, mas na insistência em associar a deficiência a um enredo pré-determinado. O mito da superação, por exemplo, transforma a vida cotidiana em espetáculo. A simples presença de alguém com deficiência em um ambiente comum é tratada como inspiradora, ignorando que, para muitas dessas pessoas, o desafio real não é sua condição, mas a estrutura social que não as inclui plenamente.

Esse tipo de olhar não é elogioso. É limitador. Ele impede que se veja a pessoa em sua totalidade, com seus desejos, falhas, rotinas, talentos e escolhas. Ao reduzi-la a um estereótipo, o rótulo esvazia sua identidade e reforça a desigualdade. E quando esse olhar se repete na escola, na empresa, na televisão, nas redes sociais, torna-se um filtro que até quem tem deficiência passa a usar para se enxergar.

Mais do que a inclusão por obrigação, a necessidade é de convivência com responsabilidade. É essencial reconhecer que pessoas com deficiência estão sujeitas a direitos e não a personagens estereotipados. Que sua presença em espaços de decisão, cultura, lazer ou poder não é exceção, mas parte do que deveria acontecer naturalmente. Representatividade importa não apenas para corrigir uma injustiça histórica, mas para pluralizar os modos de existir e diminuir o preconceito. Quanto mais corpos diversos ocupam os espaços públicos, menos espaço sobra para o desconhecido e, portanto, para o mito.

A autoestima de uma pessoa é bagunçada ao ser rotulada. O sentimento de inferioridade se torna consequência desse rótulo imposto. Provar o seu real valor, pode se tornar quase que uma obrigação.

O respeito genuíno passa pela escuta ativa, pela criação de políticas públicas efetivas e pela revisão de práticas cotidianas que, muitas vezes, excluem sem perceber ou provocam uma inclusão forçada e romantizada. Passa, sobretudo, pelo abandono do olhar reducionista que insiste em rotular o outro para se sentir confortável. O respeito permite que cada indivíduo se sinta bem, sem nenhum tipo de etiqueta.

Ninguém deveria precisar ser herói para ser respeitado. Nem provar nada para ser visto. Gente é gente sem precisar de rótulo.