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Opinião 99

As cicatrizes irreversíveis do preconceito

Maurício Aguiar


O preconceito é uma estrutura, suas ramificações parasitam as veias da sociedade, contaminam pessoas e instituições e fazem diferentes vítimas todos os dias, de diferentes idades. Essa nociva prática é caracterizada pelo repúdio demonstrado ou encorajado pela discriminação de um indivíduo ou um grupo, seja por raça, gênero, nacionalidade, sexualidade, prática religiosa ou necessidades especiais.

Para aqueles que fogem à norma social ou que representam uma quebra de padrão no espaço em que ocupam, o preconceito é algo que se experimenta desde cedo, ainda na infância. Ele pode aparecer de diferentes maneiras, em forma de ataques ou até na perpetuação de um sistema discriminatório. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) Brasil, com base em dados do último censo demográfico, 26 milhões de crianças e adolescentes brasileiros estão na extrema pobreza, desses, 65% são negros. Há violações tão cruéis quanto a pobreza: a morte. Crianças e jovens indígenas, por exemplo, têm três vezes mais chances de cometerem suicídio do que crianças brancas.

Às vezes, o preconceito se manifesta também em violências verbais, psicológicas ou até físicas. No último mês de agosto, em Dourados, uma criança negra de seis anos, acompanhada de seu pai, um professor universitário de origem nigeriana, foram verbal e fisicamente agredidos por um casal em um supermercado. A criança foi acusada de tentar roubar um carrinho de compras e agredida de forma verbal e física pela mulher, que disse já ter sido roubada por “esse tipo de pessoas” antes.

Tais violações, a depender da idade da criança e de sua maturidade, são – ou não – compreendidas ou provocam reações diversas, aponta a psicóloga infantil Micaela Klucznik. “Cada criança é única, então cada uma pode reagir de uma forma diferente, sem ter um padrão devido a sua subjetividade“, explica. As consequências também podem ser inúmeras, como baixa autoestima, ansiedade patológica, depressão, isolamento, dificuldade na interação social, traumas, medos, entre outros. “Qualquer ato, seja ele violência física ou psicológica, humilhação ou discriminação podem vir a causar prejuízos variados no desenvolvimento infantil”, salienta.

Ilustração: Ana Clara Klem

A profissional também ressalta os cuidados que devem ser tomados com a Internet e com a forma em que é utilizada. Com a popularização das redes sociais, crianças têm se tornado cada vez mais expostas e suscetíveis à agressão e, consequentemente, vulneráveis a diversas situações. A prática de compartilhar fotos, vídeos e informações pessoais de filhos pequenos na Internet ficou conhecida como sharenting, termo criado a partir da junção das palavras em inglês share (compartilhar) e parenting (paternidade).

No início de 2022, o caso do pequeno Pedro, de três anos, ganhou repercussão nacional após o perfil do menino em uma rede social ser alvo de comentários capacitistas. Pepo, como é conhecido na Internet, tem síndrome de Down e acumula mais de 177 mil seguidores na plataforma, que ainda é atualizada com frequência pelos pais em um perfil público. Entre os criminosos, está uma mulher que desde 2020 enviava ofensas à aparência da criança e zombava de sua condição.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), em um guia prático publicado em 2021, alerta para os riscos do sharenting, que mesmo sem intenção de constrangimento, expõe dados que acabam sendo compartilhados publicamente devido à falta de critérios de segurança e privacidade nas redes sociais. A SBP ainda recomenda que pais, responsáveis ou adultos não devem postar, em hipótese alguma, fotos de crianças ou adolescentes em perfis públicos, com acesso geral.

Mesmo que soe revoltante privar-se de compartilhar momentos em família para proteger seus filhos de um crime tão desumano, tal ação é necessária. Apesar de ainda estarem nos estágios iniciais de seu desenvolvimento, crianças são capazes de absorver – às vezes traumaticamente – situações e principalmente, reagirem a elas. É importante que os adultos estejam atentos a qualquer sinal incomum e sobretudo, que abordem o assunto com os pequenos respeitando suas idades e entendimentos. Tão inteligentes quanto inocentes, não é difícil para uma criança notar que é diferente das demais e com certeza não será fácil para ela entender que sua diferença a torna igual a tantas outras.