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Opinião 99

As mil e uma vidas de Christiane F.

Amanda Ferreira


Baseado em fatos reais, “Eu, Christiane F, 13 anos, drogada e prostituída” dirigido por Uli Edel, voltou aos cinemas brasileiros em formato remasterizado após 40 anos desde sua estreia, em 1980. Mais atual do que nunca, o filme propõe uma reflexão importante sobre a realidade do mundo das drogas.

Ilustração de Cristiane na estação de trem Zoo. Ponto referencial de prostituição de crianças em Berlim. Ilustração: Polina Sherbakova

A trama mostra Christiane Vera Felscherinow, uma jovem de 13 anos moradora da Berlim Ocidental em meados dos anos 1970, nos conjuntos habitacionais do bairro Gropiusstadt, com sua irmã e a mãe, nos subúrbios de uma Alemanha pós Segunda Guerra.

Submersos na cultura underground dos jovens alemães dos anos 1970, a garota deseja conhecer a “Sound”, uma discoteca badalada da época. As drogas transitavam livremente entre os visitantes, onde Christiane não apenas fez amizades com vários dependentes químicos, mas também se apaixonou por Detlev, um jovem usuário de drogas.

O diretor Edel, usa a história de Cristiane para retratar toda geração de jovens que descarregam suas frustrações na mistura de drogas e rebeldia. A trilha sonora do filme é composta inteiramente por David Bowie. O cantor ficou comovido pela história e pela relação de Christiane com sua música, pois enxergava na garota o seu próprio vício em cocaína, refletindo também uma realidade de sua carreira. Na cena espetacular inicial do filme, quando Christiane e seus amigos fogem da polícia ao som de “Heroes”, Uli Edel desenvolve de maneira natural e melancólica a psiquê da jovem. Conforme Christiane corre em um corredor vazio e escuro, a música se transaciona em um off da personagem dizendo; “a podridão está em toda parte é só dar uma olhada”, ressaltando como a garota enxerga sua realidade existencial de maneira solitária.

Os frames enquadram muitos close-ups da própria Christiane injetando droga em si mesma. Como uma espécie de “tutorial”, a garota mostra em primeira pessoa, para melhor entendimento do espectador, o aprimoramento da realidade dolorosa de uma jovem sofrendo picos de emoções ao inalar e injetar substâncias.

No roteiro escrito por Herman Weigel, Kain Herman, Horsk Rieck, é necessário destacar o cuidado em não desumanizar os personagens, não os tratando como descartáveis, mas sim como vítimas de um país antidrogas e sem políticas públicas.

A projeção da metade da película ganha novos significados. Enquanto o primeiro arco do filme é radiante; com destaques nos tons neons e cores quentes das boates, roupas descoladas das personagens e reflexos das luzes da cidade para referenciar o entusiasmo dos jovens alemães, a trama se afunda gradativamente na imensidão dos vícios de Christiane e seus amigos, ganhando variados tons de cinza e uma nítida palidez tanto nas cores quanto nos próprios personagens.

As cenas de prostituição infantil chocam o telespectador no segundo ato do filme, trazendo uma atmosfera sombria e perturbadora. A cena final, apesar de condensada e simples, nos causa o mesmo impacto da vida de Christiane: sua jornada acaba em uma cidade tão gelada quanto a sua antiga ingenuidade.

Passados 40 anos da estreia, Christiane, agora com 60 anos, nunca se afastou totalmente das drogas. É portadora de hepatite C, teve cirrose, foi presa diversas vezes por posse de drogas, teve um filho em 1996 e perdeu a guarda em menos de dois anos. Apesar de não usar mais heroína, o álcool e a cocaína ainda estão presentes em sua vida. Na dualidade entre se manter limpa e sofrer recaídas recorrentes, afirmou, em 2013, que seguia com o vício em bebidas e metadona sem nunca, de fato, querer largá-lo. Ela sobrevive, atualmente, dos lucros que sua história proporcionou. Em sua autobiografia “Eu, Christiane F, a vida apesar de tudo”, publicada em 2013, ela afirma que não se arrependeu. “Eu morrerei em breve, sei disso. Mas eu não deixei de fazer nada em minha vida. Estou bem com isso. Então, eu não recomendaria: essa não é a melhor vida para se viver, mas é a minha vida”.