A divulgação de procedimentos por influenciadores estimula a busca incansável pelo ‘corpo perfeito’
Texto: Gabriel Neri (gabriel.neri@ufms.br) | Leandra Mergener (lemerg1211@gmail.com)
Dormimos quando a bateria do celular acaba e acordamos com ele tocando. A primeira coisa que fazemos é olhar o WhatsApp para ver se alguém mandou mensagem. Vemos o Instagram, Facebook e Twitter, curiosos por uma notificação. Observamos os acontecimentos das últimas horas, os novos memes, fotos de influenciadores. E depois levantamos.
Esse costume se repete várias vezes ao dia, como indica o relatório da consultoria App Annie de 2020 sobre o uso de aplicativos em dispositivos móveis. Os brasileiros ouvidos por essa pesquisa disseram que passam em média 3 horas e 40 minutos por dia usando os aplicativos de seus celulares ou tablets, o que coloca o país na terceira posição do ranking, atrás de China e Indonésia. Todo esse tempo é usado para diversos objetivos, seja comunicação com amigos ou família, entretenimento ou trabalho.
Além dessas finalidades, pensamos também em como nos representar no ambiente virtual. Quais ideias políticas passaremos, quem seguiremos e como as outras pessoas irão nos ver. A opinião dos outros sobre nós tem um peso grande. Isso faz com que haja uma busca por uma forma de se integrar às pessoas.
Assim, ao buscar uma ‘aceitação’, mudamos para nos enquadrar no ambiente, seja em alguma opinião sobre uma música, um artista, um corte de cabelo e, a um nível mais profundo, o próprio corpo. Números da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética ilustram essas alterações.
No Brasil, são realizadas, por ano, cerca de 1,5 milhão de cirurgias plásticas como o implante de prótese mamária, rinoplastia e lipoaspiração. Além delas, são também realizados mais de 1 milhão de procedimentos pouco invasivos como a aplicação de toxina botulínica, preenchimento facial e bioestimuladores de colágeno. Cerca de 8 em cada 10 pessoas que realizam algum procedimento, cirúrgico ou não, são mulheres. E um dos motores para esse alto índice de intervenções corporais é a mídia digital, apontam especialistas da Medicina e Desenvolvimento Web.
Bombardeio de padrão estético
A influência midiática nos padrões estético-corporais adotados por muitas pessoas não é algo recente. Antes, os padrões estavam presentes nas revistas, nos jornais, na televisão, no cinema e nas ruas e hoje é o espaço virtual que toma conta. Larissa Januário Martins, 32, especialista em Desenvolvimento Web e autora da monografia ‘O papel das mídias sociais na construção da identidade social do sujeito pós-moderno’, de 2013, afirma que existem duas ‘personas’, a offline e a virtual. Porém, a linha entre as duas é tênue.
As identidades são “naturalmente fragmentadas e as mídias sociais vieram como uma forma de relacionamento que contempla a construção dessas personas”, sintetiza Larissa na monografia. Desse modo há influência nas ‘duas vidas’, e uma busca por se enquadrar no contexto maior.
Uma metáfora usada pelo filósofo Zygmunt Bauman para exemplificar a influência do ambiente sobre o indivíduo é chamada de ‘comunidade de chapelaria’. Através dela o pensador tentava explicar que quando se está em um ambiente, como um restaurante, há a necessidade de integração a esse universo, aos assuntos que ali são tratados, para não ficar ‘por fora’. Isso seria semelhante ao que acontece com os padrões estéticos. “Se você é bombardeado o tempo todo com um padrão estético, faz todo sentido que você queira se modificar para parecer com ele”, ressalta Larissa.
Hoje, é no espaço virtual que circulam os mais diversos conteúdos sobre beleza, estética, maquiagem, procedimentos, cirurgias, entre outros. “Isso tudo influencia para que as mulheres, principalmente, estejam insatisfeitas [com a aparência]”, afirma Larissa. Professor da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, Pedro Coltro corrobora com o papel de indução de tais espaços: “as redes sociais tornaram-se um método de comunicação cada vez mais estabelecido e poderoso, sendo uma das formas de atingir o paciente e comunicar sua mensagem”.
A grande mudança para que as mídias sociais tivessem um papel de influência se intensificou com o desenvolvimento da web 2.0, no início dos anos 2000. A partir dali passou a ser possível gerar conteúdos sem precisar programar sites, o que tornou o processo mais simples para o ‘usuário comum’. Primeiramente com blogs e depois com redes sociais. Assim, “a partir do momento em que as pessoas começam a ganhar relevância por causa da internet, começa a influência”, observa Larissa.
No entanto, é preciso verificar que a popularização da internet não aconteceu da noite para o dia. Há 15 anos, quando Orkut e Fotolog (site lançado em 2002 e encerrado em 2016, onde os usuários podiam publicar fotos, que perdeu força a partir do crescimento do Facebook e Instagram) estavam no auge de sua popularidade, o caminho para se conectar à internet era mais difícil. A conexão se dava, em grande parte, através de linha telefônica, o que tornava o acesso restrito praticamente ao computador.
Em 2009 o Brasil tinha 39 milhões de usuários da internet, número que hoje ultrapassa os 135 milhões, segundo dados da pesquisa TIC Domicílios realizada pelo Centro Regional para o Desenvolvimento de Estudos sobre a Sociedade da Informação. O que ampliou o acesso e também modificou seu perfil foi o advento da internet móvel. A partir daí podemos entrar no Facebook ou qualquer outra rede social, blog ou site através do telefone celular, em qualquer local, e não mais apenas por um computador de mesa, instalado fixamente em nossa casa ou trabalho.
Mas também é importante compreender que a experiência das pessoas ao fazer uma pesquisa num buscador (Bing, Google, Baidu) ou entrar em uma rede social é personalizada. Uma busca no Google com os mesmos termos por diferentes pessoas dificilmente trará as mesmas respostas. Para entender melhor como é a sua ‘bolha’, experimente abrir a aba explorer (ícone da lupa) do Instagram e observar os vídeos e posts sugeridos. Funciona como se fosse um ‘resumo’ do seu espaço na internet, pois é a partir de um algoritmo que sua ‘persona virtual’ é traçada. Quanto mais tempo passamos conectados, mais as redes captam dados sobre nós e nos devolvem mais daquilo que buscamos e fazemos, reforçando a bolha. Em vez de dominarmos a rede, é ela quem pode estar nos dominando.
As redes sociais contam com um conjunto de regrinhas, os chamados algoritmos, que são responsáveis por determinar quais conteúdos aparecem para cada usuário em específico. Um algoritmo, por exemplo, considera os tipos de leituras que você fez no passado e os links que está mais propenso a clicar para escolher os conteúdos que aparecerão em sua linha do tempo, feed ou timeline. Se você interagir com algo relacionado a procedimentos de beleza ou maquiagem, por exemplo, recomendará publicações sobre isso com frequência.
“Tempos atrás vi uma influenciadora dizendo que levou sua foto com filtro do Instagram para o médico e a ideia era ficar na realidade igual ela era com o filtro” – Larissa Januário Martins
A construção da identidade pessoal tem muito a ver com a estética hoje em dia e a partir do momento em que se vê outras pessoas mostrando o próprio rosto e corpo o tempo todo, isso estimula a dúvida sobre como está seu próprio corpo. Larissa e Pedro também dizem que os filtros usados nas edições das fotos influem no modo como compreendemos o corpo dessas pessoas. “Esses filtros que modificam a imagem, que nos mostram em uma versão mais favorável, acabam por fazer com que busquemos com mais vontade essa imagem melhorada”, explica a especialista em Desenvolvimento Web.
Os criadores de conteúdo e suas divulgações
As redes sociais deixaram de ser apenas uma forma das pessoas se manterem em contato, e passaram a ser fonte de informação, publicidade e entretenimento. Segundo um relatório produzido por We Are Social em parceria com o Hootsuite, em 2020 o Facebook possuía 2,7 bilhões de contas ativas, e dessas 130 milhões eram brasileiras, sendo a rede social mais utilizada do país. Já o YouTube chega a 105 milhões de brasileiros cadastrados. O Instagram ficou na quarta posição, com 95 milhões de usuários no país.
Essas redes sociais têm relação íntima com uma das profissões que mais se popularizou nos últimos anos, a dos chamados influencers. Essas pessoas têm seu público a partir do segmento que adotam – seja falando sobre moda, maquiagem, estilo de vida ou outros assuntos – e podem exercer influência na tomada de decisão de seus seguidores. Por isso eles têm sido contratados por empresas, que vão de grandes marcas a pequenas lojas e brechós, para divulgar produtos e serviços.
Hoje é comum ver propagação de cirurgias plásticas e procedimentos estéticos, principalmente quando as próprias influenciadoras passam por esses tipos de intervenções. Nas postagens elas relatam a seus seguidores como foi o processo, qual médico a realizou, quais os valores e até apresentam fotos de antes e depois do procedimento, algo que os próprios médicos são proibidos de fazer. O estudo Effects of social media use on desire for cosmetic surgery among young women (Efeitos do uso de redes sociais no desejo por cirurgia plástica entre mulheres jovens), publicado pela revista científica Current Psychology, mostrou que o ato de ver imagens de mulheres que passaram por cirurgias plásticas e procedimentos estéticos afetou o desejo de diversas jovens por essas intervenções, especialmente se elas investem tempo significativo usando redes sociais e seguindo contas de criadores de conteúdo estéticos.
Vanessa de Oliveira Torres, 25, e Kendra Paola Morimoto Gossi, 24, são influenciadoras que realizaram procedimentos estéticos e falaram sobre eles em suas redes sociais. Vanessa conta que já fez preenchimento labial (um dos mais procurados por quem deseja destacar o contorno dos lábios, aumentar seu volume ou projetá-los para fora) e preenchimento de olheiras (para clarear ou amenizar a região escurecida abaixo dos olhos).
Kendra, que realizou os procedimentos de lipocavitação, radiofrequência e criolipólise, quando perguntada se divulga as intervenções que fez, responde: “sempre indico os procedimentos de estética corporal”. As duas criadoras de conteúdo afirmam que também respondem a perguntas de seus seguidores. “Indiquei minha esteticista. Apesar de eu não gostar de toda pressão estética que nós mulheres sofremos. Porém, me senti muito melhor depois de fazer porque esses dois (lábios e olheiras) foram motivos de bullying e é muito difícil de aceitar. Mas tomo consciência disso e tento não ir para esse lado da influência”, explica Vanessa.
Cirurgias plásticas e procedimentos estéticos podem trazer benefícios como a melhora da autoestima e do humor ou mesmo uma maior segurança em relação a sua aparência, afirma o médico Felipe Villaça em seu site pessoal. Porém, os riscos precisam ser igualmente avaliados. O médico Pedro Coltro detalha alguns desses riscos, explicando que “geralmente as complicações decorrentes de cirurgia plástica são divididas em precoces ou tardias”. As principais complicações precoces são hematomas, acúmulo de líquido no local da cirurgia, infecção, abertura dos pontos trombose e embolia). Já as complicações tardias envolvem o surgimento de cicatrizes e queloides, irregularidades de contorno e fibrose dos tecidos.