Categorias
Opinião 99

Carta aberta ao meu pequeno Eu

Helder Carvalho


Dedinho, como está por aí? Aqui, acho que está tudo bem. Faz tanto tempo que não conversamos, acredito que nem me reconheça. Para te falar a verdade, às vezes, nem eu me reconheço. Foram 20 anos após nosso último aniversário de cinco aninhos. Faz uns dias que venho refletindo sobre como te devo uma explicação sobre essa loucura que virou nossa vida, como tudo virou uma montanha-russa sem destino. O maior spoiler que posso dar é que nada saiu como planejado! E fica tranquilo, que foi a melhor coisa que aconteceu.

Ilustração: Vinicius Davis Ramos

Me recordo de quando tínhamos apenas seis anos e você contou pro nosso pai o quanto amava dançar, como aquilo te fazia sentir a pessoa mais incrível do universo. Junto dessa coragem, me lembro também do frio na barriga, do medo, da vontade de me esconder dele. E o alívio, que veio logo em seguida, quando papai nos apoiou e nos incentivou a continuar. Ter o abraço dele e vê-lo comemorar cada vez que a gente voltava da escola com um bilhete cheio de medidas e tecidos para novos figurinos de mais uma apresentação que havíamos nos metido, era a melhor sensação que um menino-bailarina de 6 anos, que amava dançar e se soltar, poderia ter.

Você se lembra de quando começamos a sonhar sobre nossa primeira profissão? Eu fico rindo disso. Criança fantasia tanto, nós fantasiamos tudo. Veterinário, era isso que queríamos ser. Você falava o tempo todo que queria curar os animaizinhos como os humanos eram curados. A gente sonhou em ser médico, arquiteto, professor, dentista, dançarino e astronauta. Os pensamentos nos extremos não nos impossibilitaram de sonhar. É meu pequeno eu, não concluímos esses sonhos iniciais.

Queria que a gente não precisasse ter passado pelo que veio depois de uns anos. Nossos pais se separaram e nos culpamos por isso por um bom tempo, embora não tivéssemos culpa de nada. Fique orgulhoso Dedinho, ficamos do lado da nossa rainha todo o tempo que ela precisou para se recuperar do que nos assombrou. Foram árduas dificuldades e superações, o quanto nossa mãe precisou ser forte para criar três crianças sozinha, nunca parou de lutar. Nosso pai se distanciou. Talvez, essa ausência tenha sido um dos motivos para nossas piores épocas. Não, não foi fácil, mas estou aqui para te contar que vencemos alguns obstáculos.

Nos apaixonamos pela primeira vez com 13 anos e como foi estranho sentir algo assim por alguém. Sim, era uma menina. Que luta interna maluca estar apaixonado e saber que, no fundo, aquilo não nos deixaria contentes conosco. Mas como você já deve imaginar, nos entregamos com tamanha intensidade que nem passou pela nossa cabeça o tamanho do tombo que viria. Veio. Nossa primeira desilusão amorosa não foi a última. Quatro anos depois tivemos nossa primeira experiência com alguém do mesmo sexo. Foi assustador e, ao mesmo tempo, li-ber-ta-dor. Vivenciar aquilo nos fez começar a entender, em uma faísca, quem éramos…

O amor, né? Será que você com cinco anos imaginava que um dia iriamos amar alguém além dos nossos pais? Nós fomos capazes, e amamos verdadeiramente. Mas além de aprender como o amor é bom, entendemos que ele pode machucar no mesmo nível. Amamos com todas as nossas forças alguém que nos destruiu. Aqui nesse plano, e nesse presente, ouvimos que essas coisas nos servem de aprendizado, porém ainda me pergunto se gostaria mesmo de ter aprendido dessa maneira. Reitero que não, mas pesou na bagagem e faz parte da nossa vida.

Você não sonhou na nossa infância e eu nunca pensei na nossa juventude em viver quatro anos de militarismo. Pois é, estivemos na Marinha, vivenciamos experiências surreais, essenciais para nosso crescimento como pessoa. Disciplina e hierarquia foram importantes pra orientar nossa vida. Mas aquele lugar nunca nos representou. Tomei coragem para “desistir” de algo estável e ir atrás de outra coisa que me fizesse bem. Um algo com o qual eu me identificasse, afinal, todos os cursos que já havia iniciado, nunca foram concluídos. Após um ano sabático, realizando tudo que nos foi tirado no militarismo, a liberdade de ser.

Você deve estar se perguntando: como estamos agora? Estamos bem? O que conquistamos? E te respondo. Hoje, finalmente nos encontramos em uma área que esteve sempre presente em nossas vidas: a comunicação. Finalmente, posso te dizer que aquela profissão dos sonhos está chegando. A cada dia que passa me sinto mais à vontade e capaz de me inserir nesse mundo imenso que é o jornalismo. Acredito que encontrei minha área. O fotojornalismo tem me tirado sorrisos e suspiros que jamais imaginei sentir. Por isso não haveria outro lugar para estar no Projétil, além da editoria de imagem.

Já não estamos mais tão perto do colo da nossa mãe e a saudade faz morada todos os dias, mas o que nos motiva é ver o quanto ela está orgulhosa e anseia por nosso futuro. Queria te dizer que estamos no processo. Se sentir bem é algo momentâneo. Desde já, queria te pedir perdão por não realizar nossos sonhos de quando tínhamos apenas cinco anos e te dizer que estou tentando ser o mais autêntico possível com nossa criança interior. Espero que esteja orgulhoso da pessoa que nos tornamos.

Tornamo-nos? Sim. Temos nos tornado exatamente o perfil que admiramos tanto. Aprendemos de maneira dolorosa ser independente, valorizar todo esforço que nossa mãe fez e estamos buscando, a cada dia, estabilidade. Nosso foco hoje é justamente crescer profissionalmente e como pessoa. Sei que você, assim como eu, almeja uma velhice tendo acesso à saúde básica, moradia, uma vida tranquila e confortável para nós e nossos futuros filhos ou netos, se caso tivermos. Esperamos não deixar nossa criança interior morrer, é ela que nos salvará das dores do mundo. Até a próxima com mais detalhes sobre a nossa vida.

Com amor, seu futuro presente.