“Gracias a la vida, Que me ha dado tanto” – Violeta Parra
Texto: Francisco Guitti
Sumiram todos. E o gato pescou uma sombra na soleira da porta – Já não há troncos, bundas ou pernas pendulando na casa.
– Bom. Ótimo, na verdade, não Osório?
O cão, um imenso dogue alemão deitado na varanda, vagando em sonhos, ao lado da cadeira de balanço, ergueu o sobrolho de sobressalto e virou os olhos em direção ao gato, repuxando a orelha.
– Ãhn? Que disse Alfredo?…
– Ná – resmungou o gato, lambendo o peito e uns carrapichos do campo apanhados na fazenda vizinha – deixa pra lá. Aliás, já notou que você está ficando velho, meu caro?
– Oras… c-como assim… N-Não! Estava apenas cochilando. Eis porque não o ouvi…
E lançou mão de um brutal bocejo, mostrando a falta dos incisivos inferiores.
Alfredo escrutinou, pensou com os pelos.
– Ná. Melhor não levar adiante. Ele não entenderia.
A questão, entretanto, permanecia sendo aquela primeira: o que fazer enquanto eles não chegam? O que fazer enquanto Tiêpo e Amélia prestavam suas contas à Deus, contando o tempo em terços de vida?
– Escuta, Osório! Vou dar uma volta por aí, ver se encontro Claire…
– Rapaz… veja o que vai aprontar.
E solta outro bocejo esbaforido enquanto coça a orelha com a pata traseira.
– Aquela menina já passou por maus bocados. Não torne as coisas piores…
– Ah, meu caro amigo, alguma vez já viu eu me intrometendo na vida alheia?
Alfie pulou do breve lance de escadas que descia da varanda ao quintal. E deste último, mais à frente, começava o que ele chamava de “The Johnson’s Fork” ou “The Devil’s Fork”. Enfim, havia aprendido sobre o músico – Robert Johnson – enquanto ouvia os discos de seu dono na vitrola. Postava-se em seu colo e Tiêpo o amaciava enquanto soprava o vento da varanda em densas baforadas de cachimbo.
Pegou a esquerda da encruzilhada, engatinhando, marchando e engatando a marcha ao longo da cerca.
– Ei! Alfie! Aqui em cima!
Alfie logrou de olhá-la a tempo de subir a cerca antes que uma caminhonete passasse.
– Uou! – Cof! Cof! – Quem era aquele? – Cof! Cof! Cof! – que poeira…
– Ah… acho que era Tommy, o filho de Thomas – respondeu Claire – sempre tão apressado. Não sei pra quê. Afinal, todos eles andam apressados, ainda que vivendo aqui nesse fim de mundo coberto de milho, pasto e… Olha! – ela aponta com os olhos – um pássaro!
– Clai-re… não se mova – ele diz, sem tirar os imensos, vítreos, viperinos e extasiados globos oculares da ave – este é m-meu.
Seus bigodes tremem, o nariz tramita o plano e o corpo entra em um perplexo estado nevrálgico numa tentativa aviltante de eviscerar a ave.
BANG!!
Os dois saem descompassados pelo milharal, pulando galhos e amortecendo a queda. Param na beira do lago, antes de serem notados pelas vacas.
– Que miséria foi essa, Claire?! Como assim?! UM TIRO! Um tiro em pleno inverno, às quatro horas da tarde! Como podem deixá-los andarem armados desse jeito? Caçando pombas, ratos, raposas… e agora… gatos! Ó, Claire! Que absurdo são alguns destes bípedes humanoides… … … Claire…?
Pobre, pequena, Claire. Dos olhinhos amendoados, pescando num azul-celeste alguma primavera. Não, não teve jeito para Alfie. Que trágica e injusta cena… que contraste alquebrado aquele: o sangue borbotando no fino e branco pelo.
Alfie, de consciência boquiaberta, saiu em disparada. Não porque quisesse, não porque não amasse. Não. Só não sabia – tal qual gato que era – lidar com a perda e o pavor de a ter perdido.
Por fim chegou à casa. Cansado, empesteado de pensamentos paralisantes. Olhou para Osório.
– Que houve, rapaz?…
E num gesto sem sentido, Alfie desabou no colo do cão.
– O que faz a velhice quando começa a perder todos aqueles que ama, Osório?
O cão levantou a cabeça e olhou o pálido horizonte.
– Não sei os outros, rapaz, mas nós cantamos à lua. Veja você: ainda que seja somente o reflexo da luz do sol, ela não se deixa abater por seu infortúnio.