Quando você pensa no futuro, como você imagina que ele será? O que vai ficar com você e o que você vai esquecer? O conceito de memória não está restrito apenas à lembrança, mas também ao esquecimento. Esquecer é lembrar e vice-versa. O filósofo francês Henri Bergson um dia comparou a memória à água, armazenada na grande caixa d’água que é nosso cérebro, que atua como um filtro, deixando apenas a quantidade necessária passar, o suficiente para nos manter como seres conscientes. Já Nietzsche garante que esquecer seria essencial para nos manter como pessoas não ressentidas, não melancólicas e não nostálgicas.
Em ‘Sempre em Frente’ (C’mon C’mon), o sensível drama-documentário em preto e branco do diretor norte-americano Mike Mills, indicado ao Oscar por ‘Mulheres do Século 20’, a memória é o principal protagonista – e também antagonista. Johnny (Joaquin Phoenix) é um radialista que viaja os Estados Unidos entrevistando crianças sobre suas visões de futuro, até que recebe a missão de cuidar de Jesse (Woody Norman), seu sobrinho de nove anos e filho de sua distante irmã, Viv (Gabby Hoffmann). A última vez que a família esteve junta foi na morte da mãe de Johnny e Viv. O jornalista fica surpreso em saber que o sobrinho não se lembrava dele, a mãe justifica: um ano é muito para uma criança de nove anos.

Os personagens são marcados pelos complexos relacionamentos familiares e paradoxos geracionais. Johnny e Viv deixaram de se falar depois da morte da mãe de ambos, que tinha demência. Viv se irritava ao ver o irmão entrar nas fantasias patológicas da mãe à beira da morte, agora, Johnny acha um absurdo a irmã alimentar o faz-de-conta de Jesse, que finge ser uma criança órfã toda vez que sente que precisa desabafar. A incongruência mostra que a infância e a velhice são, de fato, dois extremos que completam o mesmo ciclo. Na demência, as alucinações são percepções sensoriais causadas pelo avanço de uma doença que só vai piorar, já o faz-de-conta é uma artimanha infantil para comunicar aquilo que não se sabe dizer. Aprender e desaprender.
No filme, tudo aquilo que não é dito é relembrado através de flashbacks, alguns, são lembranças que os personagens gostariam de esquecer, mas que necessitam lembrar. Às vezes, para seguir em frente, é preciso fazer as pazes com o passado e confrontar sua própria memória. Esquecer não é um ato arbitrário, mas natural. Jesse fica revoltado ao ouvir do tio que, quando crescer, não irá lembrar dos momentos que passaram juntos e para garantir que o sobrinho não esqueça, Johnny grava uma fita para lembrá-lo. Fortemente influenciado pela essência biográfica do jornalismo, ‘Sempre em Frente’ mostra como a memória pode ser eternizada por meio de registros diversos que aqui, são representados pelas gravações de áudio.
A oralidade e o diálogo estão sempre presentes na história, que é intercalada com entrevistas não-ficcionais com crianças e adolescentes de diferentes cidades americanas, como Detroit, Nova Iorque e Nova Orleães. As entrevistas dão ao filme um caráter documental, passeando pelas histórias, expectativas e frustrações dos jovens de diferentes classes sociais que se mostram inquietamente preocupados com o mundo que encontrarão quando crescerem. A preocupação real dos jovens é o presságio de um futuro que não será nem um pouco gentil com o incompreendido Jesse e com todas as outras crianças que assim como ele, não conseguem se encaixar por algum motivo.
Além das entrevistas, a história também dá espaço para as variadas leituras faladas de Johnny. Em uma delas, ‘An Incomplete List of What the Cameraperson Enables’, de Kirsten Johnson, o personagem narra que, para a pessoa que está sendo entrevistada, a posição permite a criação de uma imagem de si mesmo e sua perpetuação para toda a eternidade, um convite para pensar em um futuro quando não se estará mais vivo, mas que aquilo que diz ainda será preservado de certa maneira. O jornalismo e a documentação são capazes de preservar histórias e personagens para todo o sempre, impondo à memória uma particularidade perene que atravessa a temporalidade daqueles que a produzem, o próprio Johnny confidencia a Jesse que o poder da gravação está em “tornar as coisas mundanas imortais”.
No fim, esse é o grande mote de ‘Sempre em Frente’: imortalizar as coisas mais frágeis e delicadas. Uma das crianças entrevistadas para a produção, Devante Bryant, que tinha nove anos na época das filmagens – coincidentemente, a mesma idade de Jesse – se recusa a responder algumas perguntas com certo charme envergonhado, preferindo guardar para si o que é sagrado, como uma das jornalistas do filme descreve. Devante foi assassinado seis meses após o fim das filmagens, vítima de um tiroteio em frente a sua própria casa, em Nova Orleães. Para Devante, o filme dedica o seu único frame em cor enquanto eterniza sua existência, mesmo que passageira, na memória daqueles que assistem. O filme acaba, alguns esquecem, seguimos em frente.