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Opinião 98

Cultura que (sobre)vive

Texto: Simone Gallassi


“Nunca tem nada pra fazer nessa cidade! Campo Grande é morta!”. Eis uma crítica há muito tempo vociferada por parte da população da cidade. Mas, ao contrário do que Joseph Goebbels cunhou, uma mentira dita mil vezes continua sendo uma mentira.

Ilustração: Karina Teruya

A cultura de ‘Campão’ pulsa, firme e vívida, nas entranhas da cidade. A cultura que circula pelas ruas, que enche de vida e fortalece a identidade de gerações, no entanto, nada tem a ver com os grandes shows em exposições no estacionamento de shoppings centers. Estes são apenas frutos de uma indústria cultural, trazidos por cifras gigantes e que garantem lucro para grupos minúsculos, ofuscando a produção local com espetáculos de encher os olhos e esvaziar as mentes. Do bar, que preenche sua agenda com imitações de bandas internacionais, ao poder público, que dificulta o acesso do pequeno produtor cultural a seus editais, cada coadjuvante tem um pouco de culpa na fama de morta que uma cidade tão viva carrega.

Governo do Estado e Prefeitura Municipal, por um lado, tem acertado em iniciativas – ainda que modestas – que buscam ao mesmo tempo abastecer a cultura com recursos e leva-la para mais perto da população. Projetos como o Festival Gastronômico, Descubra CG, Som da Concha, Festival Canta Campo Grande e o festival Campão Cultural, entre outros, abrem espaço para artistas locais apresentarem suas produções ao público sem depender de empresários que os veem como meros atrativos rentáveis. O público, por sua vez, é apresentado a obras e artistas que dificilmente teria contato sem desembolsar algumas dezenas de reais na noite boêmia.

Na noite, aliás, ainda é preciso injetar algumas doses de orgulho regional. O que mais se vê nos “pubs” – onde o estrangeirismo começa pelo nome – são eventos embalados por covers (bandas que imitam músicos consagrados), muitas vezes vindos de outros estados, e celebrados como o ápice da produção cultural local. Por melhor que sejam os passos de Michael Jackson ou o bigode de Freddie Mercury dos contratados, é importante lembrar que a arte vive na criação, na originalidade e na identidade.

Ilustração: Karina Teruya

Como tudo que é vivo, porém, a cultura sempre encontra um jeito. É nos sarais em que o músico fortalece o artista plástico, o poeta apoia o pintor e o ator aplaude o músico que se tem a certeza de que a cultura vive aqui, em meio ao povo, nas ruas, praças, palcos improvisados e nos bares mais modestos. Não que a cultura deva, via de regra, ser feita por amor e desapegada das coisas materiais, pelo contrário, precisa de cada vez mais investimento para alcançar efetivamente a todos, mas a produção focada em números sempre acaba por deixar de lado o conteúdo, repetindo refrões chiclete para multidões ou entregando obras apenas para uma elite que por elas possa pagar.

Se a cultura de Campo Grande respira por aparelhos, estes são fruto da perseverança dos artistas locais, que demonstraram, principalmente durante os piores momentos da pandemia de Covid-19, como a união da classe pode garantir a subsistência dos mais vulneráveis. Instituições como a União dos Músicos de Mato Grosso do Sul e o Sindicato dos Músicos, Autores e Técnicos do estado (SIMATEC/MS) tomaram a frente na arrecadação de alimentos e produtos de higiene para aqueles que dependiam 100% de apresentações para seu sustento e garantiram que muitos não deixassem a arte de lado.

O remédio para que cada vez mais artistas deixem de apenas sobreviver da cultura está no amparo e no conhecimento. É preciso que o poder público, em todas as esferas, pense não somente em projetos de fomento, mas também em como facilitar o acesso dos artistas a eles, evitando que recursos públicos fiquem restritos a artistas que tenham consigo uma equipe de apoio para o preenchimento de editais. Também depende do interesse dos próprios em aprender a lidar com a burocracia, incômoda, mas obrigatória, para o acesso a tais recursos.

Ainda há, porém, um primeiro passo necessário: assim como a cura para qualquer enfermidade começa pela cabeça, é preciso que o campo-grandense também acredite na vida cultural desta cidade, que mesmo caminhando com dificuldades, passa bem longe de estar morta.