Texto: Simone Gallassi
“Nunca tem nada pra fazer nessa cidade! Campo Grande é morta!”. Eis uma crítica há muito tempo vociferada por parte da população da cidade. Mas, ao contrário do que Joseph Goebbels cunhou, uma mentira dita mil vezes continua sendo uma mentira.

A cultura de ‘Campão’ pulsa, firme e vívida, nas entranhas da cidade. A cultura que circula pelas ruas, que enche de vida e fortalece a identidade de gerações, no entanto, nada tem a ver com os grandes shows em exposições no estacionamento de shoppings centers. Estes são apenas frutos de uma indústria cultural, trazidos por cifras gigantes e que garantem lucro para grupos minúsculos, ofuscando a produção local com espetáculos de encher os olhos e esvaziar as mentes. Do bar, que preenche sua agenda com imitações de bandas internacionais, ao poder público, que dificulta o acesso do pequeno produtor cultural a seus editais, cada coadjuvante tem um pouco de culpa na fama de morta que uma cidade tão viva carrega.
Governo do Estado e Prefeitura Municipal, por um lado, tem acertado em iniciativas – ainda que modestas – que buscam ao mesmo tempo abastecer a cultura com recursos e leva-la para mais perto da população. Projetos como o Festival Gastronômico, Descubra CG, Som da Concha, Festival Canta Campo Grande e o festival Campão Cultural, entre outros, abrem espaço para artistas locais apresentarem suas produções ao público sem depender de empresários que os veem como meros atrativos rentáveis. O público, por sua vez, é apresentado a obras e artistas que dificilmente teria contato sem desembolsar algumas dezenas de reais na noite boêmia.
Na noite, aliás, ainda é preciso injetar algumas doses de orgulho regional. O que mais se vê nos “pubs” – onde o estrangeirismo começa pelo nome – são eventos embalados por covers (bandas que imitam músicos consagrados), muitas vezes vindos de outros estados, e celebrados como o ápice da produção cultural local. Por melhor que sejam os passos de Michael Jackson ou o bigode de Freddie Mercury dos contratados, é importante lembrar que a arte vive na criação, na originalidade e na identidade.

Como tudo que é vivo, porém, a cultura sempre encontra um jeito. É nos sarais em que o músico fortalece o artista plástico, o poeta apoia o pintor e o ator aplaude o músico que se tem a certeza de que a cultura vive aqui, em meio ao povo, nas ruas, praças, palcos improvisados e nos bares mais modestos. Não que a cultura deva, via de regra, ser feita por amor e desapegada das coisas materiais, pelo contrário, precisa de cada vez mais investimento para alcançar efetivamente a todos, mas a produção focada em números sempre acaba por deixar de lado o conteúdo, repetindo refrões chiclete para multidões ou entregando obras apenas para uma elite que por elas possa pagar.
Se a cultura de Campo Grande respira por aparelhos, estes são fruto da perseverança dos artistas locais, que demonstraram, principalmente durante os piores momentos da pandemia de Covid-19, como a união da classe pode garantir a subsistência dos mais vulneráveis. Instituições como a União dos Músicos de Mato Grosso do Sul e o Sindicato dos Músicos, Autores e Técnicos do estado (SIMATEC/MS) tomaram a frente na arrecadação de alimentos e produtos de higiene para aqueles que dependiam 100% de apresentações para seu sustento e garantiram que muitos não deixassem a arte de lado.
O remédio para que cada vez mais artistas deixem de apenas sobreviver da cultura está no amparo e no conhecimento. É preciso que o poder público, em todas as esferas, pense não somente em projetos de fomento, mas também em como facilitar o acesso dos artistas a eles, evitando que recursos públicos fiquem restritos a artistas que tenham consigo uma equipe de apoio para o preenchimento de editais. Também depende do interesse dos próprios em aprender a lidar com a burocracia, incômoda, mas obrigatória, para o acesso a tais recursos.
Ainda há, porém, um primeiro passo necessário: assim como a cura para qualquer enfermidade começa pela cabeça, é preciso que o campo-grandense também acredite na vida cultural desta cidade, que mesmo caminhando com dificuldades, passa bem longe de estar morta.