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Reportagem 101

De um ponto a outro

Sucateamento da frota, escassez de linhas e tarifas altas são desafios enfrentados pelos passageiros do transporte coletivo

Texto: Geane Beserra | Maria Luiza Massulo
Edição: Fernanda Sá | Julia Padilha | Maria Gabriela Arcanjo

Gráfico: João Antônio


Direito previsto pelo artigo 6º da Constituição Federal de 1988, o transporte público e coletivo é primordial para assegurar que todos os cidadãos tenham condições de acessar os mesmos ambientes e serviços. Com a precarização desse sistema, mesmo com o aumento no preço das passagens, o que acontece é justamente o contrário e as classes sociais de baixa renda, que dependem desses meios, têm dificuldades em acessar e interagir com o espaço urbano. Estão segregadas.

Em 1992, Campo Grande saiu na frente de diversas outras cidades brasileiras ao implementar o Sistema Integrado de Transporte (SIT), que proporcionou aos usuários o deslocamento por meio da integração física e tarifária nos Terminais de Integração. Em outras palavras, possibilitou que a população tivesse um acesso mais ágil aos principais pontos da cidade com o pagamento de uma única tarifa.

Linha 085 por volta das 16h – Foto: Anne Marinho

Na época, de acordo com o Perfil Sociodemográfico de Campo Grande, realizado pela Agência Municipal de Meio Ambiente e Planejamento Urbano, a capital sul-mato-grossense tinha pouco mais de 526 mil habitantes e quatro terminais de ônibus. Após três décadas, a população aumentou, a cidade cresceu e a tecnologia avançou, mas o transporte coletivo do município não acompanhou.

Para aqueles que dependem diariamente dos ônibus para terem acesso aos serviços básicos como educação, saúde e lazer, o sucateamento do transporte coletivo é visível, com ônibus lotados e envelhecidos. Além disso, a estrutura dos terminais e pontos aumenta a insatisfação da população e tornam a mobilidade ainda mais cansativa e estressante.

Segundo dados do Instituto Ranking Brasil 2021, 80% dos campo-grandenses classificam o transporte público da cidade como ruim ou péssimo. O cenário torna-se ainda mais cauteloso com a publicação do Relatório do Índice de Concorrência dos Municípios (ICM), feito pelo Ministério da Economia, em 2022, onde Campo Grande foi eleita a cidade menos atrativa entre as capitais da região Centro-Oeste no quesito infraestrutura.

O gerente executivo do Consórcio Guaicurus, empresa responsável pelo transporte coletivo urbano de Campo Grande, Robson Strengari, explica que normalmente os passageiros direcionam as reclamações apenas para a empresa, mas é preciso cobrar a prefeitura, em específico a Agência Municipal de Transporte, que determina tudo no sistema de transporte. “O problema da crise de transporte não é só aqui em Campo Grande, mas no Brasil todo. Quem é responsável pela manutenção do terminal? O consórcio? Não, não é. É o prefeito. Os pontos de ônibus, é o consórcio? Não. É o prefeito”, declara o gerente.

Conforme estudo conduzido pelo portal G1, Campo Grande está entre as dez capitais brasileiras com as tarifas mais caras. O último aumento foi anunciado pela prefeitura em fevereiro de 2023, passando a custar R$4,65. A precariedade do transporte coletivo afeta principalmente a população dos bairros mais afastados da região central da cidade. Dados do Censo de 2010, apontam os cinco bairros mais populosos: Aero Rancho (36.057 hab), Nova Lima (35.519), Vila Nasser (25.695), Centro-oeste (24.816) e Santo Amaro (23.501), localizados a quilômetros dos centros comerciais.

A estudante de Jornalismo, Evelyn Mendes, 20 anos, mora no bairro No roeste, a 14 km do centro de Campo Grande. Além de lidar com problemas estruturais em seu bairro, como ruas não asfaltadas e pouca iluminação, também passa por transtornos diários nos terminais e ônibus. “É sim um bairro afastado, o que me cansa muito. Falta é um olhar das autoridades políticas para essa região, que não tem asfalto, não tem nem lotérica e muito menos um posto que atende 24 horas. O bairro mais próximo é o Tiradentes, a mais de 10 km, e de ônibus é mais de uma hora de viagem”, reclama Evelyn.

Às 04h25 de segunda à sexta-feira, Evelyn acorda, e o sol nem deu as caras ainda, mas ela já se prepara para pegar a segunda volta do “busão”. Ao pegar a linha 517 em seu bairro, segue para o terminal Hércules Maymone, onde espera mais 30 minutos até a linha 526 chegar e seguir para o Parque dos Poderes, onde trabalha. “Tinha uma linha que fazia o mesmo percurso, mas na pandemia foi retirada e ainda não voltou”.

“Tinha uma linha que fazia o mesmo percurso, mas na pandemia foi retirada e ainda não voltou” – Evelyn Mendes

Atualmente, a capital conta com uma frota de 444 ônibus em 160 linhas. No horário de pico, quando circula mais ônibus, são apenas 389 veículos para 171 mil passageiros que utilizam as linhas diariamente, segundo dados fornecidos pela Agência Municipal de Transporte e Trânsito (Agetran).

Segregação Urbana

De acordo com a professora Maria Encarnação Beltrão Sposito, a segregação urbana pode ser lida como uma radicalização da diferenciação socioespacial. Ou seja, ela expressaria a divisão social e econômica do espaço, sendo facilmente percebida pela oposição entre áreas pobres e áreas nobres, áreas daqueles que produzem as riquezas (e o espaço) e aqueles que se apropriam dela. Em Campo Grande, essa realidade é agravada pela extensão territorial sendo a quarta capital brasileira com a maior área, de acordo com pesquisa realizada pelo IBGE, e pela necessidade que a população ainda tem de acessar o centro urbano.

A segregação urbana contribui para a perpetuação da desigualdade social, limitando as oportunidades de mobilidade para aqueles que mais precisam. Combater a segregação no transporte público requer esforço coordenado por parte das autoridades municipais e estaduais, bem como a participação ativa da sociedade civil.

Em 2003, uma das promessas do então prefeito André Puccinelli em entrevista para a Folha de S. Paulo, era que, no ano seguinte, Campo Grande seria uma das únicas capitais brasileiras a não terem favelas. Segundo dados fornecidos pelo antigo prefeito, na época, existiam 800 famílias morando em ocupações, número que correspondia a 0,6% da população.

O slogan de “Capital sem favela” construído há 20 anos e perpetuado pelos meios de comunicação e pelos gestores públicos, envelheceu mal e está longe de condizer com a realidade. Segundo levantamento realizado pela Central Única das Favelas de Campo Grande (Cufa), em 2023, o município possui cerca de 39 comunidades, com mais de 36 mil moradores.

Em situação de vulnerabilidade social e econômica, esses grupos se concentram nas periferias da cidade, grande parte das vezes em moradias precárias, afastadas dos centros onde o valor dos imóveis e terrenos são muito mais altos. Nesses espaços, a falta de infraestrutura e de serviços básicos como postos de saúde e escolas, obrigam os moradores a se deslocarem e a dependerem do transporte público. “Existe uma aldeia urbana perto do Noroeste em que as crianças precisam andar cerca de dois quilômetros para conseguirem chegar no primeiro ponto de ônibus e irem para a escola. A UPA [Unidade de Pronto Atendimento] 24 horas que o pessoal do Noroeste tem acesso é só a do bairro Tiradentes”, enfatiza Letícia Polidoro, coordenadora da Cufa Campo Grande.

Para o professor, arquiteto e urbanista Angelo Marcos Arruda, a necessidade de ir ao centro da cidade é um dos fatores que contribuem para a sobrecarga do transporte público. Ele afirma que é preciso formar locais mais descentralizados, utilizando a política dos 74 bairros prevista pelo Plano Diretor de Urbanização, para que esses lugares sejam mais equipados e diminuam a necessidade do uso do transporte individual e a concentração de pessoas no transporte coletivo.

No final da história, as maiores vítimas de um sistema de transporte público sucateado, antigo e excludente são as classes mais baixas. Diariamente, têm os seus direitos a uma vida plena e igualitária violados ao não conseguirem acessar os serviços presentes nas regiões mais bem estruturadas e desenvolvidas das cidades.