No sindicalismo de Mato Grosso do Sul, encontramos histórias de mulheres que foram à luta para garantir seu espaço em um ambiente predominantemente masculino
Texto: Geovanna Bortolli | João Vitor Marques | Júlia Barreto
Fotos: Geovanna Bortolli
No alto dos palanques, comandando os megafones ou liderando as reuniões, nos anos 1980, eram os homens que ditavam as regras no movimento sindical. Contudo, ao longo das décadas, diversas mulheres pavimentaram um tortuoso caminho para normalizar a presença feminina nesses espaços. Aqui, contamos as histórias de duas sindicalistas, separadas por diferentes épocas, realidades e desafios, mas que se fizeram presentes na luta, cada uma a seu modo.
Estela e o batismo sindical
“Sim, sofrer era coisa de fracos e nós mulheres sindicalistas tínhamos que ser fortes, não chorar, falar alto, usar sempre calça jeans e camiseta larga. Era uma época que feministas não cantavam e dançavam, competíamos com os homens no modo rude do sindicalismo. As feministas precisavam de outros espaços… nos sindicatos não era hora”. Tomamos a liberdade de trazer um trecho do texto “Às feministas, a violência como batismo sindical”, de Estela Scandola, para começar a contar um pouco da trajetória da própria autora.
Uma história entre o movimento sindical e o movimento popular. A história de uma mulher definitivamente engajada. Estela Márcia Rondina Scandola. Assistente social, especialista em Saúde do Trabalhador, especialista em Psicologia Social, mestre em Saúde Coletiva e doutora em Serviço Social. Latino-americana, feminista, militante dos Direitos Humanos e educadora popular. Mãe, sogra e “quadrivó”. Como ela mesma se define.
Questionadora, apesar de criada por uma família amorosa e em um mundo, como ela mesma define, “cor-de-rosa”, na cidade de Itaporã, no interior de Mato Grosso do Sul (MS). Na Pastoral da Juventude, um dos ramos da Igreja Católica, Estela conheceu o Documento de Puebla. Criado no final da década de 1970, o documento afirma, entre outras coisas, que a pobreza não é “evangélica”, mas “anti-evangélica”, sinônimo de exploração, de opressão e de situação desumana. Ali, ainda menina, começou a compreender as mazelas da desigualdade. Um divisor de águas em sua vida.
“A Igreja Católica foi a grande responsável pelos movimentos de esquerda no país durante a Ditadura. Quase todos nós militamos em movimentos de igreja e essa era a forma que tínhamos de ser de esquerda”. Da Pastoral da Juventude para a Pastoral Universitária e logo depois para o Movimento Estudantil. De estudante à profissional de Serviço Social. Da Pastoral do Menor ao Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, que foi o grande precursor do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Da Associação Nacional de Assistentes Sociais para a Central Única de Trabalhadores (CUT).
Em 1986, Estela assumiu a Secretaria Geral da CUT-MS. Nessa época, já sonhava com a Assembleia Constituinte, realizada somente anos depois, em 1987, e se dedicava à pauta dos direitos da infância, das mulheres e da saúde. As raras mulheres na CUT, porém, eram Estela e o grupo de assistentes sociais que a acompanhava na luta. Entre elas, a amiga Cidoca, Maria Aparecida de Assunção Ribeiro, sua colega de profissão e de luta. “Uma vez em uma plenária ela chegou toda arrumada e bonita, o que é próprio da Cidoca, e o dirigente sindical perguntou ‘tá fazendo o que aqui?’ ‘tá pensando que é passeio?’, Cidoca falou ‘eu venho do jeito que eu quiser vir’, mas, olha, era muito difícil”.

Naquela época, Estela conta que tudo no sindicalismo era voltado para o masculino. Mesmo as categorias de maioria absoluta de mulheres, eram comandadas por homens. Na história de quase 40 anos da CUT estadual, todos os presidentes foram homens. Às mulheres, restavam os cargos de secretárias e as funções de ajudantes da mobilização. “É quase como se você varasse cercas e fosse o tempo inteiro riscada e machucada. Ser mulher no movimento sindical é uma dor permanente”.
Acostumada a tomar à frente, Estela fazia questão de colocar a mão na massa, como nos piquetes de greve – bloqueios, por grupos de trabalhadores, dos acessos ao local de trabalho. “Nunca tinha feito piquete na minha vida, mas eu ia e, quando eu chegava lá, os homens achavam que algumas coisas dos movimentos sindicais não eram pra mulher, mas eu falava ‘eu vim fazer piquete e eu vou fazer piquete”, relembra. A primeira greve que puxou, contrariando o machismo que reinava, foi a dos trabalhadores da construção civil de Campo Grande, em 1986. Ali, assumiu o comando do megafone.
Na Kombi do sindicato, com um alto-falante, Estela e outras sindicalistas faziam o que precisava ser feito, mesmo em uma época em que tudo era proibido, resquícios da Ditadura Militar. “A gente (mulheres do Serviço Social) ia sair para pichar, para panfletar, para colar cartazes, nos carros, à noite, mas tinha que sair o marido de uma junto, porque a gente achava que alguém ia falar”. O ex-marido de Estela não ia, ficava em casa cuidando das crianças (no caso, os filhos de Estela, hoje já adultos).
Mesmo dentro do movimento sindical, que luta pela conquista de direitos, os relatos de Estela apontam que o corpo da mulher era constantemente fiscalizado. Essa parecia ser a forma encontrada para tentar frear os avanços femininos dentro do sindicalismo, reverberando a fala de Estela: no sindicalismo não existia espaço para o feminismo. “A vida da gente, a vida sexual, a vida moral era colocada em cheque o tempo todo”.
“Não adiantava você ser uma boa dirigente sindical, o tempo todo estavam perguntando se você estava botando chifre no marido, se era lésbica”
Estela considera seu “batismo” sindical, o momento em que foi vaiada por mais de 200 pessoas em uma assembleia. Era uma tratativa para convencer os trabalhadores da Associação Campo-Grandense de Profissionais (ACP), ligados à Prefeitura Municipal, a se filiar à CUT. “E eu, com esse jeito sincero de ser, disse: ‘fomos na ACP, mas não dá jeito, é muito pelego por lá”. Pelego, para quem não sabe, é um termo pejorativamente usado para descrever algum agente disfarçado do governo que procura agir politicamente nos sindicatos de trabalhadores. A fala foi seguida de vaias e gritos de “fora!” de todos os presentes.
Mesmo nessa situação, o seu pensamento era de que tudo iria passar e que o sindicalismo venceria aquela luta. Em sua jornada, Estela aprendeu a ser muito dura, a não sentir nada. “Tem muita coisa que eu passei no movimento sindical que eu não ‘saquei’ o sofrimento que foi aquilo pra mim, só hoje em dia consigo falar dele”, desabafa. “Há uma visão de nós mulheres sindicalistas como se a gente fosse algo para ser agredido, não algo para ser acolhido, amado, querido”.
Mas, nem só de percalços se faz a história de uma mulher sindicalista. Estela, ao longo da vida, conseguiu sempre fazer as três coisas que mais gostava: a Educação (ela é educadora, mestre e doutora); o Serviço (na linha de frente dos atendimentos e com trabalhos de rua); e o Movimento Sindical (em que unia as três coisas e colocava em pauta os assuntos que percebia nas ruas, na assistência social ou em suas pesquisas).

Ao todo, foram duas décadas como dirigente da CUT e outras tantas em movimentos feministas, de trabalhadoras e pela saúde. “Eu saí em 2003 ou 2004 (da diretoria da CUT), por aí, mas ainda hoje vou nas plenárias, nos congressos e, quando eu chego, o pessoal ainda fica olhando, pensando ‘vish’”. Ao refletir sobre quanto tempo esteve envolvida com o sindicalismo, Estela percebe que nunca saiu do movimento sindical, já que, na realidade, é ele quem está dentro dela – e não o contrário. Hoje, ela conta suas histórias no blog Vida Mulherida (vidamulherida.wordpress.com) e até pensa em escrever um livro.
Adriane e o equilíbrio sindical
Enquanto Estela encerrava sua trajetória ativa no movimento sindical, a técnica em enfermagem Adriane Maier iniciava. Desde o início de sua carreira no Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian (HUMAP), em 2002, Adriane mostrou-se extremamente atuante em greves, mobilizações e outras atividades sindicais. E fez isso por 12 anos. Em 2014, tomou uma difícil decisão: abdicou de seu lugar no movimento sindical para se dedicar a um novo papel, o de ser mãe. Naquele ano, com o nascimento de seu filho, a maternidade se tornou prioridade em sua vida.
Ser mãe solo e sindicalista não seria uma tarefa fácil. Ela compartilha suas experiências, destacando a complexidade de equilibrar os papéis de mãe, profissional e ativista sindical ao mesmo tempo. Durante uma década, enfrentou o afastamento do sindicalismo, lidando com as demandas desafiadoras do cotidiano. A dificuldade em gerenciar o trabalho, o engajamento no sindicato e os cuidados com o filho a levou a fazer concessões. A responsabilidade aumentou com a maternidade, especialmente sem uma sólida rede de apoio.

Em 2024, com 46 anos e um filho de 10, Adriane retornou com vigor ao movimento sindical. Sua volta é marcada pela atual greve dos servidores públicos federais, paralisação que reivindica uma recomposição salarial que não ocorre há cerca de 10 anos. Como servidora pública e membro do Sindicato dos Trabalhadores das Instituições Federais de Ensino do Estado de Mato Grosso do Sul (Sista-MS), ela aderiu à greve e luta para que os objetivos sejam alcançados.
“A greve não se faz de papel. A greve se faz com ações”, afirma Adriane. Desde que ingressou na universidade, ela entende que, para ser ouvido, o movimento grevista precisa interromper certas atividades; é necessário lutar pelos direitos a partir de uma parceria mútua entre homens e mulheres.
No hospital, por exemplo, seguimos uma escala de trabalho para garantir que o atendimento não pare. Nosso objetivo é impactar, sim, mas de maneira a conquistar melhores condições para todos”, enfatiza Adriane.
A participação de mulheres em atos grevistas deixou de ser abstrata e passou a ser mais visível e aceita pela cúpula, que é majoritariamente formada por homens. Assim como outras sindicalistas, Adriane relata as disparidades que sofre. Em pleno século 21, ela ainda enfrenta discriminação simplesmente por ser mulher em um campo dominado por homens
“Enquanto mulher, a gente acaba recebendo aquela depreciação: ‘Vai trabalhar, vai fazer alguma coisa útil”
Comentários como esse deixam explícito o machismo intrínseco que ainda se faz presente na sociedade. A capacidade de liderança, o conhecimento intelectual e outras qualidades próprias femininas são colocadas à prova pelo simples fato de serem mulheres”, desabafa.
Na ação grevista dos técnicos, da qual Adriane está à frente, ficam evidentes as duras críticas que ela faz às pessoas que se posicionam, fazem ofensas e comentários depreciativos, mas se escondem atrás da tela do celular ou de um computador. “A gente sempre fala o seguinte: estar atrás de um computador ou de uma tela, metendo o pau no sindicato, é fácil. O duro é vir aqui, colocar a cara a tapa, usar o microfone e se indispor com os demais”.

Adriane acredita que o engajamento ativo e a presença física são essenciais para que o movimento sindical seja eficaz. Ela ressalta a importância de mostrar força e unidade, especialmente em um cenário onde a discriminação de gênero ainda persiste. As mulheres no sindicalismo, como Adriane, estão rompendo barreiras e provando que a luta por direitos é um compromisso de todos, independentemente do gênero. Ela continua a ser uma voz ativa, inspirando outras mulheres a se unirem e participarem do movimento sindical e reforçando a ideia de que a igualdade e o respeito são conquistas diárias que exigem a participação de todas/os. Sua jornada é marcada por desafios superados e vitórias compartilhadas, mostrando que a força coletiva é capaz de transformar realidades.