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Reportagem 105

Digna e sustentável

Entre sangue, silêncio e vergonha, surgem soluções que cuidam do planeta e do corpo de quem menstrua


Amiga, vê se vazou”. “Faria de tudo para não menstruar”. “Estou naqueles dias, não dá”. “Graças a Deus, não menstruo mais”. Essas frases, ditas por pessoas que menstruam, escancaram o incômodo e os tabus que ainda cercam a menstruação. Aos poucos, porém, um novo discurso começa a ganhar espaço. Um discurso, aparentemente mais consciente, mais empático e, principalmente, mais sustentável. Em meio a onda de autocuidado e responsabilidade ambiental, cresce o interesse por alternativas que respeitam o corpo e o planeta: coletores menstruais, calcinhas absorventes, absorventes de pano reutilizáveis, entre outros.

Enquanto algumas pessoas que menstruam têm a possibilidade de utilizar formas mais sustentáveis e têm acesso a elas, outras não possuem acesso nem ao produto mais comum, que é o absorvente descartável. Segundo a pesquisa A Relação das Brasileiras Com o Período Menstrual e o Fenômeno da Pobreza Menstrual realizada pelo Instituto Locomotiva, em 2022, apenas 23% das mulheres entrevistadas disseram que nunca precisaram utilizar outros itens para conter a menstruação, enquanto 20% utilizaram muitas vezes. Os itens utilizados são diversos, como papel higiênico, o mais comum, em 83% dos casos; lenços descartáveis, meias, toalhas de papel, lenços umedecidos, algodão e até sacolas de papel.

Ainda, a higiene pessoal básica nesses momentos também é fundamental. Segundo o relatório lançado em 2021 pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), as meninas brasileiras vivem em situação de vulnerabilidade, no qual 6,5 milhões delas moram em casas sem ligação à rede de esgoto e 900 mil sem acesso à água canalizada em seus domicílios. A sustentabilidade não resolve a higiene, mas além de reduzir o impacto ambiental causado por milhões de absorventes descartáveis jogados no lixo todos os anos, também pode ser uma resposta direta à pobreza menstrual. Isso porque os produtos reutilizáveis, como calcinhas absorventes e coletores menstruais, apesar de representarem um investimento inicial mais alto, trazem economia a longo prazo. De acordo com algumas marcas de coletores menstruais, por exemplo, esse produto pode ser utilizado de três até dez anos com os devidos cuidados.

Foto: Rafaela Peres

Essa solução, no entanto, sem políticas públicas que garantam acesso universal e contínuo a esses recursos, permanece inacessível à parcela da população que mais precisa dela. Entre as mais afetadas estão as mulheres em situação de rua, com a rotina marcada pela ausência de infraestrutura básica. Vivian da Silva está em situação de rua, e relata que utiliza absorventes descartáveis quando consegue por doação, mas, muitas vezes, precisa improvisar com paninhos ou acaba manchando a roupa. “Eu moro na rua. E é vergonhoso, não é? Uma mulher toda manchada. Eu não gosto, é feio”.

Vivian conta, porém, que ao contrário dela, menstruar e manchar a roupa para outras mulheres em situação de rua não é um problema. “Tem mulher que fica menstruada, não tá nem aí. Tá com a roupa toda suja já. A gente é mulher, a gente tem que andar limpinha e cheirosa”. Sua fala revela a importância da manutenção de um mínimo de dignidade, mesmo em realidades de extrema vulnerabilidade. O básico, porém, como água e higiene, ainda é negado.

A falta não é somente de absorventes, mas também de empatia, políticas públicas e a garantia do direito de viver com integridade. “Eu nunca fui pegar no posto. Isso que falou que ia dar, né? No posto, nas escolas. Até agora nunca peguei”, denuncia. Ela se refere ao Programa de Dignidade Menstrual realizado pelo Sistema Único de Saúde(SUS), por meio da Farmácia Popular, que distribui absorventes gratuitos desde o início de 2024. Essa dificuldade de acesso de Vivian, é uma questão a se pensar, porquê não chega a todas as pessoas que necessitam? Segundo o Ministério da Saúde, no Brasil, são 31 mil unidades credenciadas para a entrega, e 131 em Campo Grande.

A pessoa deve ter entre 10 e 49 anos e estar inscrita no Cadastro Único (CadÚnico), ter renda mensal de até R$ 218, ser estudante de baixa renda da rede pública ou estar em situação de rua. São disponibilizados40 absorventes para utilizar durante dois ciclos menstruais, que equivalem a um período de 56 dias. Outro fator a ser considerado, contudo, é que as pessoas sã plurais, podendo ter ciclos maiores ou um fluxo mais intenso, limitar a quantidade de sem considerar a realidade de cada mulher é ignorar o básico.

Neste contexto, a pesquisa e as inovações acadêmicas são importantes na criação de produtos sustentáveis acessíveis a fim de combater a pobreza menstrual. Em universidades e institutos federais por todo o Brasil, estudantes de Design, Enfermagem, Administração, Direito, Tecnologia, entre outros, buscam elaborar absorventes biodegradáveis feitos de matéria prima brasileira, como fibras vegetais e subprodutos industriais. Além da eficiência e da técnica de produção, é essencial o olhar social.

Foto: Rafaela Peres

Exemplos como Maria, absorvente íntimo e SustainPads são trabalhos acadêmicos reconhecidos e premiados internacionalmente como soluções para a pobreza menstrual. Rafaella de Bona, estudante de Design da Universidade Federal do Paraná (UFPR), criou o projeto Maria, um absorvente interno biodegradável destinado a mulheres em situação de rua. O produto é feito com materiais sustentáveis, fibra da banana, facilitando o uso e o descarte, além de promover a higiene e reduzir o impacto ambiental.

As estudantes do curso Técnico em Administração, Laura Nedel Drebes e Camily Pereira dos Santos, do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), criaram um absorvente biodegradável utilizando resíduos industriais com um custo estimado de apenas R$ 0,02 por unidade. A criatividade e o compromisso social de estudantes como elas apresenta diferentes soluções eficazes para a pobreza menstrual, aliadas à sustentabilidade, economia e dignidade de pessoas que menstruam.

A utilização dos produtos sustentáveis, ainda, colabora com o crescimento de um mundo ecologicamente equilibrado. Para as pessoas que não possuem condições básicas de higiene e ou educação para o uso correto dos absorventes/coletores, porém, os perigos são maiores que as vantagens. “Má higiene menstrual vai ocasionar ou ajudar a paciente a desenvolver infecção vulvovaginal, candidíase, vaginose bacteriana, tricomoníase e pode dar também dermatite, que são alergias na pele e dependendo do grau dessa má higiene, a paciente pode até ter choque tóxico”, explica a médica ginecologista Ana Flávia Abranches.

Má higiene menstrual vai ocasionar ou ajudar a paciente a desenvolver infecção vulvovaginal, candidíase, vaginose bacteriana, tricomoníase e pode dar também dermatite

A desigualdade social infelizmente ainda é um aspecto que não permite a implementação plena das formas de controle menstrual reutilizáveis.

As mulheres que possuem infecção vaginal recorrente ou alteração anatômica vaginal devem tomar um cuidado maior ao utilizar esses itens, procurando sempre a orientação de um especialista. “No caso das adolescentes virgens, não é uma contraindicação absoluta também, mas pode ter um desconforto físico ou emocional, dependendo da adolescente. Então, é bom também que leve no ginecologista para conversar e ver se ela vai ser uma boa candidata a esse método” explica a médica. Mesmo que a pessoa não seja de nenhum desses grupos, a procura por um profissional ginecologista é indispensável, em especial por conta da pluralidade dos corpos.

A procura por calcinhas absorventes tem sido comum por públicos de diferentes idades, tanto adolescentes que estão entrando no período menstrual, quanto pessoas idosas, por conta do escape de urina. A adolescente Beatriz, 13 anos, conta como foi a relação com a menarca. “Eu sempre quis, mas quando desceu na primeira vez, eu falei: ‘Não, não tô preparada para isso’”. A sensação para cada pessoa é única, como cada uma vai lidar com a situação tem uma relação direta com como a família trata a situação e explica ou não para a adolescente como o corpo pode reagir.

Para Benício Garcia, 29 anos, a reação da primeira menstruação foi parecida com a de Beatriz. “Primeira vez que aconteceu eu falava para minha mãe que não queria que não era para mim, eu criança falando para ela: ‘Tira meu útero, tira meu útero’”. Benício é um homem trans e, atualmente, com a harmonização, não menstrua mais, porém, algumas vezes ocorrem escapes menstruais. “Às vezes, do nada, mesmo aplicando hormônio corretamente, ainda acontecem os escapes”. Quando esses escapes ocorrem, Benício opta pelos absorventes descartáveis. “O absorvente descartável é o mais fácil de você adquirir e ter. É o que eu deixo em casa”. Para ele, itens reutilizáveis podem ser desagradáveis devido ao manuseio íntimo constante.

“Ter que participar ativamente daquilo ali, vendo, olhando. É, eu acho que para mim a visão de uma menstruação é diferente da visão de uma mulher, por exemplo.” Para ele, menstruar não é só uma experiência física, é um gatilho emocional, uma forma de agressão que o lembra de traumas. Nesse caso, a sustentabilidade precisa estar aliada às necessidades específicas de cada indivíduo, a fim de acabar e/ou minimizar tormentos psicológicos.

Essa repulsa, está longe de ser uma experiência. Ainda que as perspectivas sejam diferentes, muitas mulheres cisgênero também expressam incomodo, vergonha e até o desejo de não menstruar. Em uma enquete, feita para auxiliar essa reportagem, das 23 pessoas que responderam, mais de 82% afirmam já terem se sentido constrangidas por estarem menstruadas.

Para as mulheres mais velhas da família, menstruação sempre foi um tabu

Nessa enquete, houve relatos como: “não me sentia confortável em sair de casa”; “fiquei preocupada que não poderia fazer algo que tinha planejado por estar menstruada”; “para as mulheres mais velhas da minha família, menstruação sempre foi um tabu”. Citações como essas revelam que a menstruação é mais que um preconceito enraizado, mas também um fardo emocional e social.

A fala de Benício, ainda, reforça o que muitas outras vozes também expressam: menstruar pode ser um processo difícil, doloroso e com muitos estigmas. “Quando descobri que com a terapia hormonal pararia… Nossa!, para mim foi, assim, a melhor coisa que já existiu na vida. Porque odeio isso, odeio, odeio”. Para ele, não significou apenas o fim de um sangramento, mas também a liberdade emocional de um processo que nunca fez parte de sua identidade de gênero.

Essa perspectiva negativa, gerada muitas vezes já na infância, mostra como a menstruação ainda é tratada como algo sujo, vergonhoso e limitante. O que deveria ser tratado com naturalidade e socialmente aceito, já que é um processo biológico do corpo feminino, é frequentemente escondido, silenciado e carregado de culpa. Isso ocorre, em especial, porque em muitos lares, escolas e ambientes públicos, a palavra “menstruação” é censurada.

A sociedade patriarcal usa a menstruação como meio de opressão contra as mulheres.No preço dos itens menstruais, e no aumento, proposital por questões de gênero, do valor de remédios para cólica. A conhecida “taxa rosa”, inclusive, é uma prática considerada discriminatória pelo Ministério da Saúde, mas ainda propagada na indústria farmacêutica. Nesses casos, o valor é maior que o mesmo remédio apresentado de outra maneira. O meio social, portanto, não é pensado e adaptado às pessoas que menstruam.

A pressão social para que as mulheres cisgênero se comportem e ajam de acordo com o que a sociedade define ser mulher, começa desde a infância e se intensificam na pré-adolescência, quando muitas delas se veem pressionadas a menstruar logo e corresponder aos padrões vigentes. Para muitas jovens, o desejo de menstruar é recorrente e se torna uma maneira de afirmar a feminilidade. “Sempre quis menstruar, então usei [absorvente] oito meses antes de realmente vir”, relata Rayssa de Oliveira, 18 anos. Porém, ela afirma, logo na sequência, que não quer mais menstruar.

Esses relatos, quando somados, reforçam que discutir dignidade menstrual não é apenas falar de acesso a produtos e asseio, é, também, uma possibilidade de reconhecer vivências diversas relacionadas à vida cotidiana das mulheres. Preocupados em construir soluções sustentáveis, inclusivas e mais humanas para todas e todos.

Ilustração: Armando Neto