Categorias
Reportagem 102

Do amor ao fanatismo

Ninguém mais parece livre para torcer pelo time de coração quando a violência é tão presente no cotidiano. Representantes de torcida organizada se defendem e alegam exagero

Texto: Daniel Baptista | Felipe Machado | Gabriel Diniz
Fotos: Allana Ferreira


Em 15 maio de 2003, o Estatuto do Torcedor foi sancionado pelo Congresso Nacional esclarecendo direitos e deveres dos torcedores, clubes e órgãos em eventos esportivos, garantindo a segurança e o combate à violência nos locais. Porém, brigas e discussões, que já eram comuns, estão ficando mais acirradas entre os torcedores, seja nos estádios, bares, restaurantes, ou qualquer outro estabelecimento que misture torcedores de times diferentes.

De acordo com o mestre em psicologia pela Universidade Federal de São João Del Rey (UFSJ), Geovani Garcia Zeferino, a agressividade dos torcedores é um fenômeno multidimensional e está correlacionada a fatores sociodemográficos extrínsecos, que envolvem aspectos sociais/relacionais e características individuais. Além disso, para o psicólogo, o fanatismo tem sido uma das variáveis mais importantes para se entender o fenômeno da agressividade de torcedores, já que ele pode ser definido como um nível extremamente elevado de identificação com a modalidade, time e torcedores, o que gera instabilidade emocional e embates diretos com o contraditório.

Os conflitos se tornaram tão frequentes, que foram desenvolvidas medidas para restringir o encontro de torcidas rivais. Em 2016, o promotor de justiça do Ministério Público de São Paulo, Paulo Castilho, sugeriu a suspensão da comercialização de ingressos para torcedores visitantes em clássicos de São Paulo, em partidas entre Corinthians e São Paulo, Palmeiras e Santos, por exemplo. Ou seja, aderir ao chamado de torcida única, apenas com a presença da equipe mandante.

O que era apenas uma sugestão inicial, vista como a grande solução da segurança pública para trazer paz aos estádios, tornou-se realidade e, naquele mesmo ano, essa lei começou a ser aplicada. A proposta não teve êxito, já que ainda é comum ataques e confrontos entre torcidas, em qualquer lugar. Em julho de 2023, o jornalista Rodrigo Vessoni, responsável pela coleta de dados há mais de 20 anos, divulgou um estudo que levantou 384 mortes no âmbito futebolístico nas últimas três décadas. Além disso, surpreende a impunidade, pois 263 desses casos não foram devidamente penalizados. Ao todo, 372 homens e 12 mulheres foram vítimas de ataques nesses 30 anos.

“O pessoal que gosta de brigar, briga em qualquer lugar”
Sinalizadores são objetos comuns nas torcidas, como um lindo show de luz e amor pelo time do coração | Foto: Felipe Machado

Segundo o professor de Sociologia do Esporte da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Paulo Sérgio Bereoff, o decreto de manter torcida única em clássicos regionais é falho. “A única coisa que vai diminuir são as agressões dentro dos estádios, mas fora dele vai continuar como sempre foi. ”, afirma.

Em enquete realizada pelo Globo Esporte MS em 2021, confirmou-se que as cinco maiores torcidas presentes no Mato Grosso do Sul (MS) são do Flamengo, Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Grêmio. Isso não é coincidência. Nas décadas de 1980 e 1990, muitos jogos dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul eram transmitidos no estado, o que influenciou significativamente as torcidas do esporte em MS.

Pavilhão Nove é como chamam a subsede da torcida organizada do Corinthians (SP) na capital de Campo Grande (MS), localizada na avenida Salgado Filho. Uma fachada de cor preta, destaca o nome e o escudo do alvinegro, logo abaixo, um salão usado para depósito e, ao lado direito, um espaço aberto para assistir aos jogos. No espaço corinthiano de MS, as paredes são pintadas de preto e branco, sobrepostas por bandeiras variadas da torcida.

Em um pequeno galpão de duas portas, os torcedores do São Paulo se reúnem para torcer pelo seu time do coração

A do São Paulo, por sua vez, mais conhecida como Torcida Independente, está localizada na rua Barão do Rio Branco, próxima ao centro da capital. É um local nitidamente temático, que chama atenção pela fachada com a palavra “INDEPENDENTE”, que forma um logotipo pintado com as cores do tricolor paulista. O espaço é formado por um pequeno galpão de duas portas e é carinhosamente chamado de casa pelos torcedores. Pinturas, grafites e objetos com as cores preto branco e vermelho preenchem o interior.

Rivais sim, inimigos também

Em março de 2022, as torcidas de Corinthians e São Paulo se enfrentaram na avenida Afonso Pena antes mesmo da partida começar. Arremessaram objetos e rojões entre eles e saíram sem feridos. Davi Cândido, presidente da subsede Pavilhão Nove, resumiu os bastidores desse dia impressionado com ou minimizando a rivalidade …. “Estava tendo jogo no dia, uma coisa nada marcada, foi bem por acaso, um passa na frente da sede do outro provocando e ninguém leva na esportiva, leva mais para o outro lado, aí tiveram alguns confrontos, mas foram coisas mínimas, nada grave”, explica.

“Nós não compactuamos com nenhum tipo de violência, apenas prezamos pela segurança e defesa do nosso espaço, da nossa casa”

Na torcida são-paulina, Leandro Oliveira, responsável pela subsede Independente, evidencia que não compactua com nenhum tipo de violência. “O que a gente procura passar para o nosso pessoal é apenas defender a nossa casa, fora disso ”, conta.

Pouco tempo depois, em agosto de 2022, desta vez com um desfecho mais grave, torcedores do Corinthians e do Flamengo (RJ), após um jogo válido pela Copa Libertadores da América, entraram em conflito na avenida Ernesto Geisel e dois homens foram baleados. . Davi detalha a ligação entre as torcidas organizadas na cidade e indica que essas duas, em específico, até então tinham um laço de amizade. “Não temos nenhuma relação com torcida rival, porém, é normal no mundo das torcidas ter uma certa amizade, mas com outras fora do nosso eixo, tínhamos uma amizade com a torcida do Flamengo, já faz um bom tempo, mas já acabou também. A ideologia é respeitar, mas o contato é zero”.

Polícia em jogo

As torcidas organizam caravanas para irem aos jogos em outros estados e até mesmo outros países. O custo dessas viagens são divididas entre os associados de cada subsede, porém, em muitos casos, os torcedores enfrentam problemas com as autoridades. Davi relata uma experiência fora do país, em uma partida válida pela Copa Sul-Americana. No Uruguai, mesmo chegando com antecedência, os policiais barraram a entrada de imediato dos corintianos no local do jogo. Para solucionar, acionaram a entidade máxima do futebol sul-americano, a Conmebol, e os oficiais uruguaios para poderem entrar no estádio. Conseguiram o objetivo, mas só quando o jogo já estava aos 44 minutos do primeiro tempo.

Já Leandro, conta que em uma viagem da torcida do São Paulo para Minas Gerais, em um jogo pelo Campeonato Brasileiro, tiveram um empecilho com a polícia. “Fomos a um jogo São Paulo x Cruzeiro (MG), passamos por todos os processos exigidos e chegamos para a revista da torcida e do ônibus cinco horas antes do jogo, fizemos tudo certinho, mas na hora de entrar no estádio a polícia simplesmente não permitiu e tivemos que voltar para casa”.

Torcedores ou criminosos?

“Ainda somos muito mal vistos por outras pessoas”

É a percepção de Leandro quando descreve a visão da sociedade sobre as torcidas organizadas. O envolvimento em conflitos, a maneira fanática de encarar o futebol ou apenas um desinteresse da população em conhecer a fundo as torcidas organizadas, são os motivos para esse preconceito. Além disso, ele acredita que a imprensa também contribui para a criação deste estereótipo. “Vende muito mais você demonstrar uma briga entre torcidas do que mostrar alguma ação social que essas torcidas fazem, então muitas só é mostrado o lado ruim, na maioria das vezes na verdade. E como muitas pessoas não têm informações, elas veem esse lado ruim e absorvem, e acham que a torcida é só ligada à violência”, afirma.

“O rosa é por que não gostamos dos homens usando rosa”

Ao chegar na subsede da torcida corinthiana, um cartaz logo na frente já chama a atenção, é proibida a entrada de pessoas com roupas ou acessórios na cor verde e rosa, além de ser obrigatório o uso da camisa do Corinthians ou da Torcida. Davi justifica como tentativa de manter o habitual preto e branco. “Mulher a gente até releva, mas isso é uma tradição da torcida. Para algumas pessoas até pode ser fútil e sem sentido, mas seguimos a cor do Corinthians (preto e branco)”, explica.

Torcedores do Corinthians se reúnem em um salão aberto, vestindo as cores do time ou a camiseta da torcida, para assistir ao jogo juntos

Na organização da torcida são-paulina, Leandro comenta que há um estatuto a ser seguido pela diretoria e pelos torcedores dentro da Torcida Independente. “Se algum torcedor ou sócio fugir dessa regra, ele vai sofrer algum tipo de punição, inclusive no âmbito legal, dependendo da situação. As nossas três punições são advertência, suspensão e, em último caso, expulsão”.

Histórias de quem vive

Superação e a emoção são uma das vertentes do futebol, e não é diferente quando se trata dos torcedores das subsedes. Paulo Siufi, médico pediatra de 60 anos, sempre foi são-paulino e frequentador da sede, mas depois da morte de seu filho, Paulinho, o amor pelo clube continuou. “Eu perdi um filho de 22 anos em um acidente de carro em 2016 e ele adorava vir aqui, desde que ele começou a frequentar eu sempre ajudei financeiramente a sede. Amo estar aqui, amo também ir ao Morumbi ver jogos lá, meu filho adorava ir, então eu continuo indo pelo meu filho, o Paulinho”, relata.

Inclusive, na parte interna da sede, na parede onde o telão é refletido, há uma frase pintada em vermelho “Paulinho eterno”, uma referência ao filho do pediatra. Paulo ainda comenta que foi escolhido como padrinho da sede, mas é enfático quando o assunto é violência.

Os torcedores do São Paulo animam o ambiente com uma bateria contagiante, celebrando cada momento do jogo à medida que o time segue rumo à vitória

“Gosto muito daqui justamente porque aqui não tem briga, não tem uso de drogas, aqui é um ambiente familiar, e eu sempre deixei isso bem claro para os representantes. Para continuar sendo padrinho, ajudar financeiramente, eu só continuo com tudo isso enquanto o ambiente se manter dessa maneira, temos crianças pequenas aqui, que frequentam a sede, pais, mães”.

Do lado corintiano não falta história também. Sandro Martins, professor de sociologia e contador de 49 anos, conta que não gosta daqueles torcedores que se acham maiores que outros apenas por estarem mais tempo no ambiente. “Tem uma questão, que para mim é um problema, que é de quem está mais tempo na torcida achar que é mais ‘torcedor’ do que quem está chegando agora. Porque, independente de torcida organizada ou não, sou torcedor desde quando nasci, mas na torcida organizada o entendimento é outro. Ainda bem que não para a grande maioria.”, destaca.

Além disso, relata que gosta do ambiente da Pavilhão Nove justamente por acompanhar algumas regras no modo de torcer das quais ele gosta, como não poder gritar gol antes da hora e vestir as cores da torcida, que acabam os identificando como “um só”.

Para os torcedores na capital, o que resta, muitas vezes, é tentar de alguma forma demonstrar sua paixão e torcida pelo clube de dentro da pequena sede, os integrantes sabem que não se compara a uma torcida no estádio, mas é onde se sentem seguros para amar o time do coração. Nas palavras do médico e torcedor Paulo Siufi, “é sempre pela casa, pelos torcedores”.

O lado delas da torcida

Até agora na reportagem, todas as falas e exemplos, e mesmo os direcionamentos das torcidas foram, aparentemente, de homens para homens. E essa presença masculina continua muito forte nas torcidas. O medo de estar ligada a uma torcida organizada fez com que Beatriz, estudante do curso Técnico de Enfermagem e babá, tivesse receio em seus primeiros dias dentro da Independente. O que a manteve no grupo foi a confiança de ter o pai ao seu lado. “Eu comecei a torcer pelo São Paulo por conta do meu pai, e em 2017 meu pai conheceu a sede, e com o tempo que ele foi conhecendo o ambiente, o pessoal, ele ficou mais tranquilo de me trazer, até porque eu era bem nova, tinha 14 anos”.

Sua primeira experiência com a torcida, no entanto, não está entre suas memórias mais agradáveis. Durante uma passeata realizada pré-jogo, que, de acordo com Beatriz, era algo “super pacífico, só torcendo mesmo”, nos arredores da sede, moradores de prédios atiraram ovos nos torcedores.

Mesmo com essas complicações, Beatriz não desistiu de integrar a torcida e trazer mais mulheres para dentro da sede, inclusive aponta que grande parte de suas amizades femininas ligadas ao futebol foram feitas na Independente. “O meu círculo de amigas ligadas ao futebol eu fiz aqui dentro da torcida mesmo, até porque minhas amigas de fora daqui não gostam muito de futebol, então eu sempre tento convidar mais meninas pra vir, acontece bastante de algumas mandarem mensagem perguntando sobre a torcida, sobre o lugar, e eu sempre respondo convidando”, relata.

Beatriz também criou um grupo de WhatsApp exclusivamente para torcedoras, com o objetivo de informar sobre os jogos e tirar dúvidas sobre como funciona a sede, a torcida, a relação das pessoas lá dentro, e também criar uma relação de afinidade entre as mulheres que desejam integrar o espaço.

Pelo lado corinthiano, Gabriela Quinteiro, estudante de Economia, nunca teve receio de frequentar a subsede da torcida organizada, mesmo frequentando o espaço apenas em jogos mais importantes. “Eu nunca tive medo de ir, mas meus familiares tinham muito receio por mim, por ser mulher, e principalmente, porque eu frequentava só em clássicos e jogos decisivos, o que porventura pode causar brigas entre torcidas ou até entre torcedores do mesmo time”.

A primeira experiência de Gabriela no Pavilhão Nove deixou boas lembranças. “Fui pela primeira vez em 2022, na final da Copa do Brasil contra o Flamengo, no jogo de ida, na saída da subsede após o apito final, os sinalizadores a bateria e os cantos de torcida não parava um momento. O sentimento é indescritível, o coração bate mais forte e é lindo ver a torcida gritando, cantando e vibrando”.


Enquanto esta matéria estava sendo produzida, a equipe do Fantástico da Rede Globo realizou uma reportagem sobre a guerra entre torcedores do CSA (Centro Sportivo Alagoano) e CRB (Clube de Regatas Brasil), “Mortes, bombas e agressões aleatórias: 11 dirigentes de torcidas organizadas viram réus por organização criminosa”, veiculada em 21 de abril de 2024. De acordo com a matéria, em Maceió (AL), as torcidas organizadas de ambas as equipes se encontraram para assistir aos jogos no Estádio Rei Pelé.

Segundo as investigações, as confusões não aconteciam dentro do estádio. A violência ocorria do lado de fora, onde qualquer pessoa vestindo a camisa de um dos times se tornava alvo. “Aquela associação de pessoas ali, ela tinha perdido completamente a relação com o futebol, e estava tendo uma relação agora com a criminalidade”, disse Lucimério Barros Campos, delegado de polícia, à equipe do Fantástico.