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Opinião 99

Do tempo, para Zélia

Maria Luiza Massulo


Querida Zê,

Já faz um tempo que eu tenho pensado em te escrever. Suas cartas chegaram até mim há meses e, por mais que eu não seja exatamente quem você procura, acredito que você mereça uma resposta. Eu sou o passado, a saudade e a memória. Costumam me chamar de Tempo.

Ilustração: Marina Cozta

Para você, hoje com 89 anos, eu realmente não sou mais o mesmo e a linearidade que me acompanhava se perdeu no momento em que o Alzheimer passou a embaralhar as lembranças. O tecido fino que separava o pretérito do presente já não existe mais e, sutilmente, as recordações foram ocupando o espaço destinado aos acontecimentos do agora. Apesar da confusão causada nesses seus lapsos temporais, quando a saudade vem, tudo se torna possível nas memórias. É lá onde mora o som do piano que você tocava aos 15 anos, a casa decorada para o natal na infância e todos os beijos trocados com Edgar.

Falando em casa, ultimamente tem chovido bastante no Rio de Janeiro e os bailes, que você tanto gostava, ainda acontecem de vez em quando. Os rostos, que antes lhe eram tão habituais, aos poucos foram se transformando e, atualmente, andando pelas ruas da cidade, eles não são mais os mesmos. Tudo aquilo que eles viveram, durante esse intervalo em que estiveram distantes, faço questão de traduzir em marcas. As felicidades e mágoas estão expressas nas rugas aparentes. E à medida que vou passando, as gerações vão dando lugar às próximas, ao mesmo tempo que conservam um pouco daquilo que fizeram e construíram.

Sinto te dizer, mas a saudade que te consome é um mau quase irremediável. Ela pode ser definida pela falta que alguém faz toda vez que viaja e demora para voltar, assim como Edgar costumava fazer. É impossível mensurar a eternidade da qual faço parte, e ainda me é um mistério todas as juras de amor eterno que coleciono na minha existência. A promessa de um “sempre” é a única que eu não posso, e nem quero, oferecer, e a consciência disso é latente na humanidade. Apesar de tudo, a sua promessa continua intacta, assim como a dele, e mesmo quando se lembra de muito pouco ou quase nada, nunca se esquece das sinfonias que costumavam escutar juntos.

Eu sei bem que esperar tem parecido um fardo. A viagem de Edgar nunca acaba, Ângelo nunca responde aquela carta que você enviou há meses e, pior ainda, mesmo morando a poucos quilômetros de distância, nem se dá ao trabalho de ir te visitar. As notícias da família do Rio de Janeiro demoram pra chegar e os dias se estendem infinitamente, enquanto você espera apaziguar a saudade. Isso não é um privilégio da idade, como você gosta tanto de acusar, por mais que seja agravado por ela. Essa esperança, mesmo que angustiante, ainda é o que te leva a escrever, cozinhar, dançar, tomar seu banho depois do almoço e achar graça na vida. Por incrível que pareça, tudo continua, com e apesar da saudade.

A verdade é que as minhas respostas não dizem muita coisa e não são tão substanciais quanto aquelas que você esperava. Não saberia te dizer como andam as primas de Itaperuna, nem os netos delas, ou o que fazem da vida os muitos alunos que passaram por sua sala de aula. Muito menos sou o verdadeiro destinatário das várias cartas que você tem escrito, mas que nunca são, ou serão, entregues. Venho aqui como um mero representante de todos aqueles que, acredito eu, adorariam ter tido a mesma oportunidade de te enviar, pelo menos, uma última carta como resposta, repleta de considerações finais e muitas despedidas. Gostaria de poder ir até eles, ou mesmo que você pudesse, mas, infelizmente, essas linhas escritas são o que posso te oferecer agora. Eu, o Tempo, ainda não encontrei uma forma de superar o esquecimento. Nem a Morte.