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Reportagem 104

Em nome de deus

Até que ponto a aliança entre líderes religiosos e parlamentares influencia e molda leis em um Estado laico?


Em diferentes partes do mundo, a religião tem figurado não somente como uma prática espiritual, mas também como um poderoso instrumento político. Governos autoritários e democráticos em crise têm se apropriado de símbolos e discursos religiosos para persuadir a opinião pública, justificar decisões, moldar legislações e consolidar poder.

Em países como Irã, Arábia Saudita e Afeganistão, por exemplo, a mistura entre fé e Estado atinge níveis extremos, dogmas religiosos se impõem como leis civis, limitando direitos e liberdades. Prisões, punições públicas e até mortes se tornam comuns contra quem discorda ou transgride imposições religiosas rígidas.

Em potências como Rússia e China, a religião é utilizada seja para reforçar o nacionalismo, como na aliança entre o governo russo e a Igreja Ortodoxa; seja para suprimir minorias religiosas, como no controle do islã e do cristianismo pelo Partido Comunista Chinês.

A laicidade do Estado, nesses contextos, é anulada por uma lógica de controle e imposição. Longe de ser um espaço de espiritualidade e liberdade, a religião é transformada em ferramenta de dominação. Essa mistura entre política e religião, quando usada de forma autoritária, pode representar sérias ameaças à democracia, à diversidade e aos direitos humanos.

No Brasil, a cada ano fica mais evidente a influência da religião na escolha do voto do eleitorado. O país apresenta diversidade religiosa significativa, embora o catolicismo ainda lidere. Segundo o Datafolha, de 2024, 50% da população se declara católica, enquanto os evangélicos chegam a 25%. Outros 11% afirmam não seguir nenhuma religião. As demais crenças se dividem entre espiritismo/kardecismo (2%), umbanda (2%), candomblé (1%) e outras expressões religiosas que, juntas, somam 9%. A população brasileira é majoritariamente cristã.

Com templos lotados e celebrações que reúnem multidões, o cristianismo segue em expansão no Brasil, refletindo sua forte presença cultural e espiritual em todas as regiões do país

Um indicativo da confluência da religião com a política está na formação das diferentes bancadas religiosas no Legislativo federal, estadual e municipal. São religiosos ligados a igrejas que conquistaram visibilidade e espaço político, muitas vezes defendendo pautas morais conservadoras e que impactam diretamente na elaboração de políticas públicas. Um exemplo em Mato Grosso do Sul é o Projeto de Lei 25/2025, proposto pelo deputado João Henrique (PL), que visa estabelecer diretrizes para a conduta de profissionais da educação básica, exigindo neutralidade política, ideológica e de gênero.

No legislativo municipal, estadual e nacional a presença de figuras religiosas no parlamento é realidade

Como justificativa para a proposição, o autor cita um incidente na Escola Municipal Irmã Irma Zorzi, em Campo Grande, envolvendo uma professora transexual. Outro Projeto de Lei (187/2023), de autoria do deputado Rafael Tavares (PRTB), visa garantir aos pais o direito de veto sobre a participação de seus filhos em atividades escolares relacionadas a questões de gênero.

O crescimento dos espaços religiosos em Campo Grande é significativo. O Censo do IBGE de 2022, aponta que há 2.115 unidades religiosas, número superior à soma de escolas (652) e unidades de saúde (1.107). Isso representa cerca de uma igreja para cada 424 habitantes.

Diante da carência de serviços públicos, essas instituições frequentemente preenchem lacunas deixadas pelo Estado, oferecendo apoio social, orientação e pertencimento. Esse papel tem sido explorado por políticos que buscam legitimar campanhas e ações por meio do apoio de lideranças religiosas, promovendo uma crescente sobreposição entre o público e o privado, onde decisões políticas passam a ser influenciadas por valores religiosos, comprometendo a neutralidade e a pluralidade fundamentais em uma democracia laica.

A mídia local amplia a influência da religião na política ao dar visibilidade a líderes religiosos e pautas conservadoras. Pastores com forte presença midiática mobilizam fiéis por meio de discursos que unem fé e política, formando bases eleitorais engajadas e influenciando a percepção pública.

Bíblia de estudo presente na sala oficial do vereador Papy (PSDB)

Em Campo Grande, três das quatro principais emissoras de TV aberta têm vínculo com igrejas, assim como sete das 14 rádios comerciais. Redes sociais e canais no YouTube também reforçam esse alcance, muitas vezes com intenções políticas. Embora nem todos os religiosos atuantes no meio digital usem essas plataformas para pregação política, muitos orientam fiéis a apoiarem candidatos ou agendas específicas com base em suas doutrinas.

Esse espaço midiático pode amplificar discursos extremistas, especialmente nas redes sociais, que, ao contrário da imprensa tradicional, operam sem regulação e favorecem a disseminação de ódio, desinformação e intolerância religiosa.

Legislação pautada no Cristianismo

Seja pelo número de fiéis, de estabelecimentos religiosos, dos vínculos de religiões com a mídia, a religiosidade do brasileiro é evidente e Campo Grande não foge à regra. Por extensão, a influência da religião na política local também é presente. As bancadas religiosas na Câmara Municipal são um indicativo.

O vereador e presidente da Câmara, Epaminondas Neto, o Papy, entende que a influência da fé nas decisões políticas é algo legítimo e até necessário. “Acho que católicos e cristãos têm que realmente intervir e falar suas opiniões baseadas na fé.” Para ele, é importante que todas as áreas da sociedade contem com vozes diversas, inclusive as que se orientam por valores religiosos. “Acho interessante que a fé seja sim pautada na política e não vejo problema em ter opiniões pautadas na Bíblia ou até legislação baseada nisso, desde que seja algo votado e que tenha consenso da maioria”.

Acho interessante que a fé seja sim pautada na política e não vejo problema em ter opiniões pautadas na Bíblia ou até legislação baseada nisso, desde que seja algo votado e que tenha o consenso da maioria

Papy observa que no caso de comunidades cristãs, muitos candidatos que se elegem já tinham histórico de serviço e comprometimento antes de entrarem na política. “Eu já servia […] quando me coloquei como candidato, as pessoas já me conheciam fazendo alguma coisa por elas.” Por isso, o envolvimento religioso nas campanhas pode ser visto como uma extensão da atuação social do indivíduo. Sua crítica é “quando alguém de fora dessa comunidade vem e paga, compra, utiliza daquela comunidade que está regimentada numa necessidade para se promover de voto, aí a gente tem uma instrumentalização ruim.”

Sobre a atuação parlamentar, embora haja uma “bancada evangélica”, ele adverte que o rótulo de que só podem tratar de temas religiosos, é equivocado. Mesmo em temas polêmicos, como sexualidade ou políticas voltadas a minorias, é necessário separar o posicionamento político (que pode ser contrário a certos avanços) da prática religiosa. Ainda segundo o vereador, “a igreja está num contexto muito mais perto das minorias do que quem milita mesmo”.

O Brasil é um país laico

O Estado laico é essencial para garantir o equilíbrio entre diferentes crenças e convicções. O conceito de laicidade surgiu do Protestantismo, como separação entre o poder do Estado e o da Igreja, sem excluir a religião da sociedade. “Isso aconteceu lá por 1500 com Martinho Lutero”, ressalta Papy. Laico vem do latim laicus, que significa leigo. Então, o leigo é o Estado em relação às questões da igreja.” Deve ser neutro, mas isso não significa apagar os valores morais e éticos que a fé trouxe historicamente à humanidade”, enfatiza.

Por outro lado, ele critica a forma como a política tem sido manipulada pelas redes sociais. Aponta o impacto da “lacração” e do radicalismo digital na formação da opinião e na qualidade da democracia. “Quem domina a ferramenta da internet consegue manipular a consciência das pessoas, tanto de esquerda quanto de direita”, alerta.

Sérgio Nogueira, vereador em Dourados pelo Partido Progressistas (PP) e pastor da Igreja Batista há 30 anos, está em seu quarto mandato e possui formação em Teologia, Pedagogia e mestrado em Ciências da Religião. Ele alerta para os riscos da instrumentalização da fé como mecanismo de dominação, criticando líderes religiosos que impõem votos a seus fiéis, prática que, segundo ele, também ocorre de forma velada.

Nogueira reconhece que o vínculo entre religião e política é estrutural e se repete em diferentes esferas do poder. Apesar disso, defende a existência de bancadas religiosas no Legislativo como articulações legítimas, desde que prestem contas à sociedade. Observa que essas bancadas têm papel importante na defesa de valores, como nos debates sobre a legalização do aborto, mas, se agirem contra o interesse público, devem ser retiradas pelo voto popular. “A bancada religiosa é necessária para defender os princípios e valores que os parlamentares creem. Agora, se fizer algo contrário aos interesses da sociedade, a própria sociedade vai lidar com isso”.

A bancada religiosa é necessária para defender os princípios e valores que os parlamentares creem. Agora, se fizer algo contrário aos interesses da sociedade, a própria sociedade vai lidar com isso

Ao comentar a proposta de ampliação do direito à interrupção da gravidez em casos de estupro, o vereador destaca a resistência de parlamentares evangélicos e católicos, muitos dos quais acreditam que a vida começa na concepção e, portanto, defendem a proteção do feto, mesmo diante de violência. Esse embate evidencia o desafio de equilibrar convicções pessoais com os direitos civis em um Estado laico.

Para Nogueira, a chave para impedir que a fé seja usada como instrumento de exclusão está na educação. Ele propõe que escolas promovam uma formação cidadã crítica, sem doutrinação ideológica, mas com base em princípios democráticos, reforçando que a política está presente no cotidiano e que a participação consciente é essencial para a democracia.

Política e religião na história

Ao longo da história, a política e a religião sempre estiveram entrelaçadas. O professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e cientista político, Daniel Miranda, destaca que a separação entre essas duas instituições é um fenômeno relativamente moderno, e enfatiza que as pessoas interpretam o mundo a partir dos seus valores. Exemplos como o Irã e Israel ilustram como a religião continua moldando identidades nacionais e decisões políticas.

No Brasil, embora nunca tenha havido uma fusão formal entre religião e Estado, o catolicismo foi a religião oficial até 1889. Desde a Proclamação da República, a Constituição define o país como um Estado laico. Porém, segundo Miranda, a laicidade não impede que lideranças religiosas influenciem a política e o comportamento eleitoral.

Um alerta está nos riscos que a ascensão de grupos religiosos dogmáticos representa para a democracia. A imposição de uma única visão religiosa pode limitar a participação de grupos minoritários, não necessariamente numéricos, mas minorias em termos de poder. Quando essas vozes perdem acesso a canais de expressão, o resultado pode ser a implementação de políticas públicas excludentes.

Miranda cita como exemplo a dificuldade de avançar em debates sobre educação sexual e papéis de gênero, que são estratégias preventivas fundamentais no combate à violência contra mulheres e ao feminicídio. “Para prevenir esse tipo de violência, é preciso questionar modelos tradicionais de masculinidade e família. Mas essa discussão enfrenta barreiras quando se impõem dogmas religiosos como norma universal”.

Para prevenir esse tipo de violência, é preciso questionar modelos tradicionais de masculinidade e família. Mas essa discussão enfrenta barreiras quando se impõem dogmas religiosos como norma universal

Na visão do professor, o problema não está na presença da fé no debate público, mas na sua transformação em doutrina de governo. “A religião pode oferecer valores, mas não pode ser critério de exclusão ou imposição moral. Quando isso acontece, quem sofre são os mais vulneráveis.” Para fortalecer a democracia precisamos garantir políticas públicas baseadas em direitos, não em doutrinas religiosas.