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Opinião 101

Em partes

Texto: Ian Netto | Clara Deps


A parte que faltou

Parado diante do espelho vejo as partes que ainda me faltam. Dentre tudo aquilo que eu sou, me vejo formado por quem você foi. Fui seu molde, seu reflexo, sua cópia, que hoje se vê perdido longe da fonte. Eu detesto falar de saudade, mas não falaria se não tivesse doído tanto. A sua partida transborda o vazio e me sufoca. Olhando para dentro, me pego buscando seus detalhes, que mantêm você em mim.

A ausência da sua presença forte, que preenchia a casa em dias silenciosos, tornou tudo ainda mais quieto. É como se você estivesse aqui, em algum lugar onde não te vejo, mas te sinto. Às vezes dentro de mim, às vezes nas pessoas que te rodeavam. Sua partida se tornou a falta do corpo físico, do seu rosto cansado, do sorriso amarelo, mas o que ainda não se foi, seus traços, correm por todos aqueles que foram brindados com a sua existência.

Eu fiquei. Trajado de coragem, decidi ir adiante. Forçando minha mente a se adaptar com o que ficou, precisei entender que a vida não é como eu achei que seria. Ainda me pego questionando se a vida teria outro destino, se você tivesse ficado. E minha mente te trazendo pra cá, relutando aceitar que não tenho mais sua voz rouca me chamando pelos cômodos, ecoou meus sentimentos pela casa, preenchendo tudo que ficou com um pouco de você, afinal, eu estou aqui.

A parte que ficou

Comigo, sempre faltou. Portanto, o que sempre importou foi o que ficou. Desde que tento me entender por gente, meu pai trabalhou longe de casa. E quando eu já estava um pouco mais próxima de ser realmente “gente”, minha mãe me contou que decidiram em conjunto: ele iria e ela ficaria comigo. No dia, quando aconteceu, fui eu que descobri. Como sempre, ele estava longe, dessa vez fui eu que fiquei.

Os segundos passaram e o mundo pareceu segurar a respiração junto comigo, ninguém sabia. No silêncio antes da bomba cair, o que me dominou foi a raiva, admito. Não teve lágrima que caiu, mundo que desabou. Eu enxerguei o reflexo nos olhos de minha mãe, e ali, vi o futuro. Um sino agudo que revirou minha alma tocou, era um ponto final. No fim, não vi fantasma, não vi santo. Meu peito se fechou e o que sobrou dentro foi um resto de coragem.

O mundo virou de cabeça para baixo. Restaram relógios quebrados, roupas que sobram, remendos que vazam, papéis que faltam, uma pilha de luzes e nós no meio do mar. A incerteza, essa, me acorda todos os dias e me diz “Não operamos milagres”. Agora, já não sei se ainda sou gente. Nada nesse mundo me pertence, e o que é meu, é de papel. Minhas palavras são vigiadas a todo instante e esse tal luto, que se fala que cada um tem o seu, todo mundo sabe como é. É minha sina, é meu azar.

O caos bate na minha porta todo dia, e eu e minha mãe continuamos. Nunca pulamos fora, por mais que a vontade seja gigante. Aprendemos que querer não é poder, mas independente do cansaço, é isso que sempre tivemos, nossa companhia. Somos as almas que não cruzam. Somos o que resta, o que somos, o que dizemos e o que fazemos. Não somos as partes que faltam. Somos as partes que ficam.