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Opinião 99

Éramos seis… hoje só

Maurício Aguiar


Solidão. É com essa palavra que Maria José Dupré termina seu romance de 1943, ‘Éramos Seis’. No livro, a personagem principal, Dona Lola – que tinha uma família grande formada por ela, seu marido e quatro filhos – termina sua vida velha, triste e solitária, vivendo em um quartinho num pensionato católico. Na época em que essa história teve início, em 1914, a expectativa de vida no Brasil era de pouco mais de 34 anos.

Hoje, a história que conto é outra: a expectativa de vida no Brasil chega a quase 77 anos. São 43 anos a mais que os brasileiros ganharam para viver, realizar seus sonhos, e talvez, se lamentar por não realizá-los. Diferente de Dona Lola, os idosos do Brasil contemporâneo cumprem as expectativas projetadas. Porém, semelhante à protagonista, o destino dessa população continua quase o mesmo, a solidão. Talvez essa história seja, enfim, parecida.

Entre 1918 e 1920, no auge da gripe espanhola no Brasil, Lola relata os horrores da pandemia que devastou o mundo. Diz que o choro de uma vizinha que perdeu a filha para a doença não parecia de gente e sim de um cachorro triste. Estima-se que a gripe tenha feito, aproximadamente, 300 mil vítimas no Brasil na época. Mais de cem anos depois, outra pandemia fez milhares de vítimas no país, dessa vez, 685 mil. Imagino o que Lola diria dos mortos pela Covid-19 que foram enterrados em valas enfileiradas, como vejo na TV. Sem velório e a presença da família, como cachorros de rua. Solidão.

Ilustração: Ana Clara Klem

Lola viu duas guerras e inclusive presenciou um de seus filhos partir para uma e nunca voltar. Por tanto tempo, a humanidade achou que nunca veria guerras tão violentas quanto aquelas. Hoje, vejo guerra na TV. Balanço a cabeça para uma senhora na Ucrânia que viu seu marido já idoso se voluntariar para defender seu país. Sinto pena de uma criança no Afeganistão que foi colocada em um avião sozinha rumo a um país desconhecido, sem mãe ou pai. Imagino a solidão de suas vidas daqui em diante.

E por falar em criança, penso nos filhos de Lola. Dois deles, Alfredo e Carlos, já adultos, trocavam socos em nome de suas ideologias políticas. Alfredo era defensor ferrenho do socialismo, enquanto Carlos era apoiador cabal do capitalismo. A rivalidade dos dois é tão arcaica quanto atual. Hoje, leio no jornal um homem morrer por defender sua ideologia política contra outro que não concordava com ela. Existe solidão maior que a morte?

Diferente de Dona Lola, não tive filhos, muito menos um casamento. Apenas alguns amores, tão efêmeros quanto a vida era na época da protagonista. Deles, não me sobrou nada além da solidão. Porém, isso não me impediu de ter uma família numerosa. Assim como a família Lemos, também já fomos seis. Éramos quatro irmãos e meus queridos pais. Vivíamos todos juntos, até que alguns saíram, outros morreram. Restou, enfim, eu.

Além de poucos livros e discos, me sobram também as memórias. Memórias dos momentos com a família, em especial com minha mãe, já que dos quatro filhos fui o único a ficar ao seu lado em seus últimos momentos. Memórias dos sonhos que busquei durante toda minha vida e com eles, o amargor de não os ter realizados. Não me culpo, sou conformado. Junto com os sonhos, as memórias das poucas conquistas materiais e intelectuais que me considero privilegiado por ter obtido, mas que hoje já não me valem mais nada. Não considero esses últimos sonhos, já que a satisfação momentânea que me causaram não foi suficiente para curar a solidão que sentia.

Hoje, aos 74 anos, vivo solitário em um lugar para pessoas que, assim como eu, estão sozinhas – seja por opção própria ou de terceiros – e velhas demais para terem direito à individualidade. Alguns poucos recebem visitantes, o que não é o meu caso. Tal qual o local onde Lola viveu sua velhice, o lugar em que moro também é católico. Imagens de Jesus e santos em todas as paredes, missas todos os dias. Quermesses e festas religiosas. Não me considero devoto, mas enquanto ouço o que o padre diz, entendo porque tanta gente busca refúgio nessas palavras. Escuto-as, mas torço ansiosamente para que terminem logo. O melhor momento do meu dia é quando estou sozinho. Solidão.

Ilustração: Ana Clara Klem