Trabalho análogo a escravidão é uma realidade que persiste em pleno século XXI. No Mato Grosso do Sul mais de 3.110 pessoas foram resgatadas entre 1995 a 2023
Texto: Júlia Barreto | Geovanna Bortolli | Giovanna Fernandes
Lopes era apenas um jovem indígena de 16 anos quando foi chamado para trabalhar na fazenda. Vinha de uma família humilde e não sabia ler muito bem. Viu essa grande oportunidade de trabalho que prometia um bom salário e logo aceitou a proposta. Essa seria a chance de ajudar a família com as despesas da casa. No caminho até a sede da fazenda, já imaginava como seria o ofício. Foi contratado para serviços gerais, como construção de cercas, limpeza de pasto e aplicação de veneno na lavoura. Tudo valeria a pena quando tivesse seu dinheiro no final do dia.
Ao chegar no local, percebeu que não era aquilo que imaginava. O jovem, junto a outros trabalhadores, teve que construir um acampamento com galhos de árvores, com uma lona e palhas de bacuri – uma palmeira típica do Cerrado – para cobrir o barraco improvisado, que não tinha banheiros e a única água para consumir era de um córrego próximo, turva e com mau cheiro. O que ele menos esperava é que as coisas poderiam piorar. O adolescente trabalhava das 5h às 17h, com uma única calça, uma camisa, um boné e uma bota como uniforme. As refeições eram feitas num fogareiro improvisado e eles comiam sentados nos troncos das árvores, quando tinha comida. O salário que lhe prometeram nunca foi pago.
Uma pessoa exposta a situações degradantes de trabalho, enfrentando sol escaldante, chuva, frio e o perigo de animais peçonhentos, sujeita a péssimas condições de vida. Esta história poderia ser um relato do século 19, quando a escravidão estava prestes a acabar com a imposição da Lei Áurea, outorgada em 1888 pela princesa Isabel. Mas, trata-se de uma experiência atual, dezembro de 2020, de 17 pessoas encontradas em trabalho análogo ao de escravo na fazenda Marabá, em Porto Murtinho (MS). Lá havia seis estrangeiros de Bela Vista do Norte, Paraguai; nove indígenas da cidade de Guia Lopes da Laguna e oito da Aldeia Laranjal, município de Jardim. E o mais assustador é que a história não é isolada, ela é mais uma no meio de tantas outras que ocorrem no Brasil.
Liberdade resgatada

Nas últimas três décadas foram deflagrados, pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), 63.516 mil casos de trabalho análogo à escravidão no Brasil. O número de resgates registrados em 2023 atingiu o pico em 14 anos e alcançou o marco nos pagamentos de verbas indenizatórias trabalhistas, totalizando R$12,8 milhões.
“o número recorde de trabalhadores resgatados demonstra a necessidade de uma maior reflexão sobre o problema por parte da sociedade e das instituições. Devemos ampliar nossos esforços no sentido de erradicar o trabalho em condições análogas à escravidão”
O Código Penal Brasileiro, no artigo 149, caracteriza o trabalho análogo ao de escravo com quatro pilares: restrição da liberdade, submissão a trabalhos forçados ou jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho. Quando essas condições são identificadas, é realizado o resgate dos/as trabalhadores/as. Para isso, existem maneiras de identificação, busca e libertação dessas pessoas em condições desumanas de vida e trabalho.
Jonas Ratier Moreno, Procurador do Trabalho da 24ª Região, atua há 26 anos no MPT-MS. Ele explica como identificar as condições de trabalho e destaca que as características de reconhecimento podem variar de acordo com a natureza do trabalho e/ou o tratamento do/a trabalhador/a.

Luciano Aragão, coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete) do Ministério Público de Trabalho (MPT), explica que
“As condições degradantes são aquelas em que os empregados estão sujeitos a jornadas extensas, a dormir em barracos precários, a consumir água insalubre e a enfrentar a falta de ferramentas adequadas, que colocam sua integridade física em risco. Esses fatores são independentes entre si, sendo suficientes para configurar trabalho análogo ao de escravo”
Para que as condições sejam conhecidas, contudo, é essencial que os órgãos fiscalizadores recebam informações a respeito de possíveis situações ilegais. As queixas, em grande parte, chegam por meio dos canais de denúncia do MPT, do Disque 100 e do aplicativo de Direitos Humanos. Essas informações são chamadas de “notícias de fato”. Após a identificação dos indícios do trabalho irregular, é feito um levantamento do local a ser fiscalizado.
Antônio Maria Parron, auditor fiscal do trabalho do MTE, com 29 anos de atuação em Mato Grosso do Sul, explica o processo quando são identificados indícios de trabalho irregular. “Inicialmente, é feito um levantamento da propriedade a ser inspecionada. Em seguida, em colaboração com a Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal e, em casos de locais de difícil acesso, a Marinha do Brasil e a Força Aérea Brasileira são acionados. Após a identificação, é realizada a inspeção do local de trabalho, quando são capturadas provas através de registros fotográficos”.

Sérgio Massao, policial institucional do MPT-MS há 16 anos, comenta que, após o reconhecimento do serviço degradante, os empregadores devem arcar com o pagamento das verbas rescisórias, além da responsabilidade de retirar os empregados e garantir a acomodação, com data e local estipulados, formalmente notificados sobre a irregularidade. Em muitos casos, são elaborados os Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), com acordos de regularização para solucionar a situação sem recorrer a um processo judicial. “O Termo de Ajustamento de Conduta é crucial. Ao assiná-lo, o compromisso não tem prazo de validade, ou seja, não caduca. Se o empregador descumprir o termo, estão previstas multas e outras penalidades estabelecidas”.
Antônio Parron aponta que as dificuldades nos resgates estavam relacionadas aos recursos escassos de tecnologia para a identificação dos locais onde se concentram esses trabalhadores. “Hoje em dia com as possibilidades tecnológicas (GPS, Starlink, etc.) se tornou mais fácil. No entanto, as longas distâncias e estradas ruins dificultam o acesso às frentes de trabalhos rurais”.
O policial institucional Sérgio Massao reforça o auxílio das tecnologias também nas denúncias, segundo ele, o uso disseminado de celulares permite que os próprios trabalhadores denunciem com fotos, filmagens e até o compartilhamento de localização. “Hoje, com a tecnologia, também temos recebido muitas denúncias dos próprios trabalhadores. Todo mundo tem um celular. O trabalhador vai lá, tira foto, filma, e compartilha a localização. Às vezes não há rede para enviar imediatamente, mas ele pode ir até a sede de uma fazenda e pegar um wi-fi. Tendo nosso contato, ele envia. Para nós, isso é o suficiente”.
Em locais inóspitos, como no Pantanal sul-mato-grossense por exemplo, em que o acesso por terra é dificultado, os empregadores, ainda que cientes das normas vigentes de condições decentes de trabalho, isolam os empregados e dificultam as denúncias e os resgates.
A Norma Regulamentadora NR-3 respalda a promoção de segurança e saúde dos empregados dentro dos ambientes de trabalho. Esta diretriz estabelece preceitos essenciais para a prevenção de riscos ocupacionais, com foco na organização e nas condições laborais. O procurador Jonas Ratier relata que embora sejam atos de fácil execução, recebem críticas devido às exigências dispostas no texto. Além disso, ele ressalta a importância de se garantir não apenas a aplicação dessas regras, mas também uma fiscalização efetiva que assegure o cumprimento dos direitos dos trabalhadores.
Economia da escravidão
A partir do que foi discutido até aqui, e de acordo com os dados espantosos sobre as fiscalizações trabalhistas no Brasil, percebe-se que a realidade do trabalho análogo à escravidão continua a persistir em várias regiões do mundo, e o Brasil não é exceção a essa prática e que ainda há trabalhadoras/es em condições desumanas.
Em uma iniciativa conjunta do MPT e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), foi desenvolvida a plataforma Smartlab, que fortalece a cooperação entre as organizações governamentais, não governamentais e internacionais que atuam na linha de frente no combate ao trabalho análogo à escravidão.
Por meio de observatórios públicos, que trabalham com dados consistentes, a plataforma auxilia e beneficia a comunidade científica e a sociedade em geral, fortalecendo o fluxo de tomada de decisões que ajudem na erradicação do trabalho degradante. Os dados disponíveis abarcam os anos de 1995 a 2023, trazendo o contingente de resgatados, seus perfis, faixas etárias e os setores econômicos em que se encontram.
A região Centro-Oeste ficou em segundo lugar no ranking, com 114 fiscalizações e 840 pessoas resgatadas de trabalho análogo ao de escravo. O município de Brasilândia mantém sua posição de liderança com o maior número de libertações, registrando 1.011 casos, seguido por Iguatemi, com 668, e Naviraí, com 413. Segundo o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, esses aspectos se caracterizam pela falta de recursos, níveis educacionais reduzidos, violência e desigualdade social. No MS, o ambiente rural apresenta um grande número de resgatados, em especial no cultivo de cana-de-açúcar, com 2.003 vítimas registradas de 1995 a 2023, conforme os dados.
Nas últimas três décadas, foram identificados 17 setores de prevalência de trabalho análago à escravidão em MS. No período de 2022 a 2023, o setor com o maior índice foi o da agricultura, sucedido pela criação de bovinos e, em terceiro lugar, pelo cultivo de soja.
De acordo com dados do Observatório Digital do Trabalho Escravo, entre 2002 e 2023, a maioria das vítimas libertadas da exploração de trabalho são indígenas, analfabetas e têm idade entre 18 e 24 anos. Aproximadamente 83% desses trabalhadores, encontrados em situação de escravidão contemporânea no Brasil, estavam intermediados por empresas de terceirização.
De acordo com o policial Sérgio Massao, é importante observar os migrantes paraguaios, que vêm para o Brasil em busca de oportunidades de emprego. “Às vezes, mesmo aqui no estado, sendo submetidos a todas as condições adversas de trabalho e recebendo um ‘salariozinho’ pequeno, ainda é melhor do que no país de origem”.
“São pessoas com baixa escolaridade, frequentemente designadas para trabalhos braçais e fisicamente exigentes”
A dificuldade enfrentada por uma pessoa não alfabetizada ao procurar trabalho é significativamente maior. O desemprego é uma situação alarmante e, quando uma proposta é apresentada a eles, isso gera esperança, levando-os a aceitar a oferta sem ao menos perceber que serão privados de condições dignas de trabalho.
Segundo Antônio Parron, auditor fiscal do trabalho, a situação socioeconômica dos trabalhadores contribui para o surgimento de indivíduos dispostos a se submeter às condições precárias de trabalho, uma vez que a pobreza os empurra para esse tipo de atividade devido à falta de melhores oportunidades de emprego.
Com 3.110 libertos no MS de 1995 a 2023, os dados apontam que a maioria são homens de 18 a 24 anos, naturais de MS, grande parte analfabetos ou que não concluíram a educação básica, sendo a maioria deles indígenas e pardos. Isso reforça a disparidade em oportunidades de emprego e renda, a baixa oferta de trabalho e vagas em ocupações que pagam salários baixos com pouca ou nenhuma qualificação profissional ou escolaridade.
Lista suja
A lista suja de trabalho analogo à escravidão é um registro público nutrido pelo Governo Federal, criada em 2003, com o propósito de registrar os casos de empregadores que foram autuados por aplicarem o trabalho degradante com jornadas exaustivas, servidão por dívida e outras formas de exploração constatadas pelo MTE. Ela tem a função de expor os responsáveis pela persistência do trabalho semelhante ao de escravos no Brasil. “É preciso separar o joio do trigo”, diz o procurador Jonas. As consequências da inclusão no cadastro são a suspensão de crédito e contratação de financiamento com bancos estatais e privados.
A última lista, divulgada no dia 4 de abril pela plataforma Radar SIT, atinge novo recorde, nela consta a inclusão de mais 248 empregadores. Também mostra que a fazenda relatada por Lopes no começo do texto ainda está na lista suja.












Fotos: Acervo MPT