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Opinião 98

Estranheza

“Da Capital do Pantanal à capital do estado”

Kadu Bastos


Já se vão dois anos com uma pandemia no meio. A cada dia que permaneço em Campo Grande, a sensação de estranheza me acompanha. Me habita essa confusão. Não me vejo nem distante, nem próximo desta cidade, talvez seja o sentimento mais genuíno que consigo expressar vivendo aqui. Achei que neste momento eu já saberia o suficiente a respeito de “Campão”. Me enganei. A euforia da mudança para cá não me fez pensar sobre ser um estrangeiro dentro do meu próprio estado. Tal sensação de estranheza, também me faz refletir sobre as nuances do MS e do lugar de onde venho – o verdadeiro portal de entrada para o Pantanal, as cidades de Corumbá e Ladário, onde nasci e cresci. A 428 km da capital, lá estão elas, quase isoladas geográfica e culturalmente. 

Ilustração: Sara Welter

Banhadas pelo Rio Paraguai de ponta a ponta, apresentam o Pantanal aos nossos olhos, como um convite ao paraíso. Avenidas e ruas ligam Corumbá, a capital do pantanal com mais de 110 mil habitantes, à Ladário, a Pérola do bioma com 24 mil habitantes. São lugares onde se encontram as mais variadas características e identidades do MS, coexistindo de maneira intensa e em harmonia numa porção de terra ilhada pelo Pantanal.

Para quem é de fora, o MS pode parecer todo igual. “É só mato”, “Fim de Mundo”. Mas não! Se antes eu já imaginava que as regiões do estado eram diferentes, hoje, mais do que nunca, sinto na pele essa diferença. Quando falo, logo reagem ao meu sotaque forte, achei que não pudesse carregar tamanha identidade. O sotaque característico entrega qualquer falante daquele lugar. A herança da fala dos portugueses da época, junto com o sotaque regional de Mato Grosso, estado vizinho, aliado à vinda dos cariocas para Ladário e Corumbá, deram para a minha região um modo único de falar no MS.

Lá definitivamente não é fim, é começo. O Pantanal pode ter sido o lugar da origem da vida. O Corumbella, fóssil mais antigo das Américas encontrado na região, pode ser a chave para a evolução das espécies. Quem diria que esse bioma escondido no meio do Brasil guarda os segredos do início do continente?

Palco da Guerra com o Paraguai, as cidades quase deixaram de ser Brasil, mas resistiram. Ao longo de seus 243 anos, embarcações de várias partes do mundo atracaram em seus portos. No início do século XX, Corumbá chegou a ter mais estrangeiros do que brasileiros. Vários povos formaram e continuam formando a identidade da região. Carrego em mim parte deles: indígenas, negros, imigrantes europeus. A influência boliviana pela fronteira terrestre com Corumbá fez o arroz boliviano e a saltenha tornarem-se parte do cotidiano pantaneiro. Escrevo esse texto com uma saudade do único sabor agridoce que gosto, o da saltenha de lá. A proximidade dos países é tão grande que acho que já saí mais do Brasil do que do MS.

Em Ladário eu observava o pôr do sol, uma pintura no céu que acalma a vista, depois do dia escaldante. Recomendo a todos que apreciem este momento nos finais de tarde no Pantanal. O hábito de sentar-se e tomar tereré em frente de casa, olhando a rua, me faz falta. Vizinhos se encontram pelas calçadas e conversam por lá. É o lugar onde a natureza e a vida urbana quase se confundem em uma só. Ipês cobrem as ruas com suas flores. Lembro das araras e tucanos fazendo visita no quintal de casa. E sim, até jacaré e onça já andaram pelas ruas. Nas cidades pantaneiras, se faz festa como ninguém. Além do maior carnaval do centro-oeste, tem o Festival América do Sul, as festas juninas e o Banho de São João, que virou patrimônio Cultural do Brasil.

Em CG, me vem à cabeça outro contraste. O relevo aqui não tem curvas, como a morraria e o Morro do Urucum. Quase nenhuma rua ou avenida que percorro me faz lembrar os caminhos de lá. Nem mesmo a Afonso Pena com suas árvores se assemelha à General Rondon com suas palmeiras. Fui até as praças Ary Coelho e do Rádio, mas ainda me enxergo na Praça da Independência de Corumbá. Ainda tenho muito a conhecer de Campo Grande. Meu caminho aqui está só começando. As nuances da cidade morena em sua vastidão plana me convidam a explorar mais desse lugar que escolhi ter como morada.