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Fé como medida de prevenção

Surto de coronavírus obriga comunidades religiosas se reunirem virtualmente

Texto: Emily Bem, Fernanda Santos e Gabriela Longo


Era 11 de março de 2020. Era 11 de março de 2020. A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia de coronavírus, devido a disseminação mundial da doença. Em poucas semanas a vida em todo planeta mudaria drasticamente.

Foto: Anderson Arguelho

Aperto de mão. Gotículas de saliva. Contato físico. Objetos e superfícies contaminadas. Segundo as autoridades sanitárias essas são as principais formas de transmissão da Covid-19. Para frear sua propagação, a OMS passou a recomendar a higienização constante das mãos, uso de máscaras caseiras ou artesanais para todos que saírem de casa, assim como evitar multidões e contato físico com outras pessoas. Isso atingiu em cheio as práticas religiosas ao redor do mundo, a maioria delas baseadas na comunhão entre pessoas, na reunião presencial e no toque.

Com o intuito de manter a segurança dos fiéis, mas também obedecer às regras impostas pelos governos federal, estadual e municipal, muitos templos passaram a operar virtualmente. “A gente tem muito temor a Deus e Deus diz que nós devemos obediência às autoridades, então nós estamos orientando as igrejas do estado do Mato Grosso do Sul a permanecerem fechadas. Há algumas situações que comunidades muito pequenas estão tendo autorizações para funcionarem abertas, mas sem o culto coletivo”, explicou o pastor José Paulo da Silva, representante de 298 comunidades Batistas do estado de Mato Grosso do Sul, com cerca de 38 mil congregados

No município de Campo Grande, em 15 de março a prefeitura publicou o Decreto 14.189 que apresentava medidas locais para enfrentamento da emergência de saúde pública. A partir de então ficaram proibidos quaisquer eventos com público superior a 100 pessoas. Aglomerações de qualquer tipo foram suspensas, incluindo cultos e reuniões religiosas. Em 26 de março, o prefeito Marquinhos Trad assinou o Decreto 14.219 que indicava medidas específicas para as comunidades religiosas. Entre elas estavam a ocupação limite de 30% dos locais destinados a encontros, com espaçamento de um metro e meio entre as pessoas, disponibilidade permanente de álcool em gel, limpeza adequada do ambiente e obrigatoriedade de manter o espaço arejado. No dia 28 de abril houve alteração neste decreto e as igrejas tiveram liberação para ocupar até 60% de sua capacidade, ainda mantendo as medidas de segurança. 

A Semana
Santa da
Igreja Católica
teve a homília
de Domingo
de Ramos sem
a presença de
fiéis, mas com
transmissão
pela internet

Foto: Acervo da Arquidiocese de Campo Grande (MS)

Adaptações

Nesta situação de vulnerabilidade social seguir as orientações têm tem sido a principal alternativa de prevenção da doença. No entanto, cuidar de si mesmo, do emocional e espiritual em tempos de crise também tem se mostrado essencial para algumas pessoas. Membro da Igreja Católica, Letícia Nakamura, 23, acredita que a internet pode funcionar como uma ferramenta que aproxima e ajuda as pessoas. “A internet auxilia a matar a saudade, colocar o papo em dia. Tem ajudado até em questões religiosas, práticas esportivas e dicas desde moda até maquiagem, e contribui para que as pessoas continuem se cuidando de todas as formas. É algo muito importante e tem ajudado bastante”.

A internet mostrou-se um suporte também na adaptação das práticas religiosas, pois mesmo sendo a casa o primeiro local de devoção era nos templos que boa parte dos fiéis buscava apoio. Mas devido à necessidade de isolamento social as igrejas passaram a realizar transmissões ao vivo dos cultos por meio das redes sociais. Para o pastor José Paulo, além de aproximar os membros já congregados, as transmissões ao vivo conseguem também atrair novos fiéis. “A gente teve alguns resultados muito interessantes. A primeira Igreja Batista de Bonito tinha cerca de 150 a 180 pessoas ali frequentando os cultos de domingo à noite. O pastor estava muito alegre porque ele teve 2000 visualizações na live dele”.

Mesmo para as religiões que têm características mais particulares, estar na presença de um grupo é significativo. É o caso dos druidas, que não vivem com base em regras escritas ou livros sagrados, mas dos saberes passados de geração em geração por meio da cultura oral ou transcrições. Suas crenças se baseiam no contato com a natureza, nas práticas fundamentadas na história, cultura e valores das populações celtas e de seus sacerdotes e na busca da cura de si, da comunidade e da terra. 

As reuniões não são obrigatoriedade entre os druidas, essa é uma opção relativa a cada vertente. “A fé normalmente é algo muito particular. Então, ensinamentos e aprendizagens podem ser algo extremamente individual, mas nós humanos provamos que somos seres sociais”, explicou o professor de História e praticante do Druidismo Moderno, Hugo Gondim. 

Devido às recomendações de autoridades e da OMS, os druidas buscam maneiras de praticar a cura que acreditam, respeitando as limitações derivadas da pandemia. “Nesse exato momento creio que médicos druidas estão nos hospitais tentando salvar pacientes e outros druidas cientistas estão tentando buscar a cura, assim como outros estão ficando em casa em oração, meditação e isolamento. O importante é permanecer com a cura de si, da comunidade e da Terra”, disse Hugo Gondim.

Para ritos em que o convívio social e o contato sejam imprescindíveis a adaptação é mais desafiadora. É o caso da Umbanda, que não consegue realizar incorporações nem transferências de energia à distância. “Eu pelo menos uma vez por semana vou lá no centro continuar a firmeza da casa. Ela não está abandonada e nem deve. Temos feito o termo que falamos que é ‘obrigação’, que é o processo de vir na casa, ligar as velas. E eu faço isso uma vez na semana, praticamente o mesmo dia da semana. E dali rogo a espiritualidade para que proteja todos nós, nossa comunidade, nossa cidade, nosso estado, nosso país e também o mundo”, esclareceu o dirigente do templo, Luís Otávio Mongelli.

Fiéis do templo
de umbanda
pai oxalá
reunidos antes
da pandemia.

Foto: Acervo Luís Otávio

Mas não foram apenas os rituais cotidianos que mudaram. A emergência sanitária altera também datas comemorativas importantes para as comunidades religiosas. Domingo de Ramos, celebração de Lava Pés, Sexta-Feira Santa e Páscoa são exemplos de datas e celebrações marcantes para os cristãos. O padre e coordenador geral da arquidiocese de Campo Grande, Vander Casemiro, conta que no Domingo de Ramos era costume dos católicos fazer procissões e reuniões coletivas dentro e fora das igrejas. 

O padre explica que nessa situação atípica foi dada a orientação para que as missas fossem realizadas apenas com um número restrito de pessoas, bem como transmitidas pelas redes sociais. Apesar disso, alguns ritos foram mantidos. “Nós pedimos que as pessoas preparassem em suas casas um pequeno altar com imagens, a Bíblia, vela, e que pudessem colocar na porta um crucifixo com um ramo, um galho de folha de árvore. Isso tem um sentido aparentemente muito simples, mas para os cristãos católicos isso é extremamente importante, porque é como se eles estivessem participando de fato do culto, dentro do rito”, completa.

Com o isolamento, o valor da coletividade passa a ser destacado e traz reflexões acerca de comportamentos individualistas e egoístas. “Muitas pessoas que não olham e não olhavam porque não aprenderam nas suas famílias a respeitar os idosos, a olhar com afeto para eles, para suas experiências acumuladas, que só olhavam para os idosos como estorvo, estão tendo esses questionamentos sendo colocados a prova todo dia. Espero que esse modo de vida de fato saia da pandemia melhor”, desabafa o pesquisador Rivaldo Venâncio. Nesse sentido, a religião tem um papel importante por reforçar a cultura de serviço e amor ao próximo por meio da fé. 

Embora no dia 8 de maio um decreto estadual sancionado pelo Governador Reinaldo Azambuja (PSDB) tenha autorizado o funcionamento de templos religiosos em meio a quarentena ao incluí-los na lista de ‘atividades essenciais’, algumas igrejas de Campo Grande permaneceram operando virtualmente. Nas que voltaram às atividades segue a necessidade de respeitar as orientações das autoridades sanitárias, como o distanciamento mínimo de um metro e meio, uso de máscaras caseiras ou artesanais e o uso de álcool em gel.

A importância de reunir

A vida social é uma necessidade para o homem, pois existir politicamente é permanecer de forma solidária com outros seres semelhantes. Assim, é natural do ser humano estar em busca de algo ou alguém para acreditar, seguir, conviver e se associar. “O convívio dos seus semelhantes lhe é tão imprescindível como ao peixe a água, aos pássaros a liberdade dos ares”, citou o filósofo e sacerdote Leonel Franca, no livro A psicologia da fé e o problema de Deus. Por isso, para que se torne plenamente humano é preciso se conservar em comunidade.

Assim, o ser humano busca maneiras de satisfazer as necessidades materiais indispensáveis à manutenção da própria existência, exercendo influência sobre as esferas da vida social, como a religião, cultura, instituições políticas e outros.

As crenças e valores religiosos podem influenciar na conduta do indivíduo em sociedade. Antes do surgimento do cristianismo as religiões não monoteístas – ou politeístas, por acreditarem em diversos deuses –, denominadas pelos cristãos como pagãs, já faziam reuniões em seus próprios templos. “O termo ‘pagão’ ficou ligado a um olhar negativo por séculos e ainda hoje muitas pessoas estranham o conceito. Na atualidade o Paganismo ou Neo-Paganismo é um conjunto de crenças espirituais que estão ligadas por laços étnicos, filosóficos, culturais, religiosos e sócio-históricos que não são judaico-cristãos, não querendo dizer que sejam um contraponto – o que muitas vezes causa confusão”, explicou Hugo Gondim. 

Além do Druidismo Moderno, ligado à cultura e religião dos povos celtas, o Xamanismo, vinculado a tradições de povos indígenas do mundo inteiro e o Hinduísmo, plenamente vivo há séculos na Índia, estão entre as religiões pagãs conhecidas. Gondim acrescenta que as tradições pagãs podem ser consideradas as visões religiosas mais antigas do mundo.

Hugo Gondim explica que é um
druida solitário, mas ainda assim
sempre está em contato com
colegas para que possa
compartilhar ideias, músicas,
textos, rituais ou dúvidas.

Foto: Joab Nascimento

Hugo Gondim ainda explica que “orações, festividades sagradas, reuniões, banquetes, danças, leituras, experiências meditativas”, a maioria delas realizada em grupo são, “de forma simplificada, ‘receitas’ para alcançar o sagrado na sua experiência com o outro e o mundo ao redor”. No entanto, existem alguns fiéis que praticam cultos restritos a seus ambientes familiares, como os druidas. Mas mesmo eles também precisam estar em contato com o outro, via internet para, por exemplo, aprender, entender e compartilhar ensinamentos.

As religiões cristãs tendem para a vivência de reuniões coletivas, seja em pequenos ou grandes grupos. Nelas há a adoração coletiva, a comunhão e o ensino por meio da Bíblia, elementos que conduzem os fiéis a aprenderem e compartilharem o que é ensinado. O pastor José Paulo explica que “quanto maior o grupo melhor a possibilidade de você ter aprofundamento, tanto na vida secular, experiências, contato com pessoas, como no crescimento espiritual, bíblico e compreensão do que Deus está fazendo por você e você está fazendo pelo outro”.

Em sua chegada a Campo Grande as religiões afro-brasileiras tinham reuniões com números pequenos de pessoas. No entanto, com o aumento da procura por esses ritos, houve o acréscimo no número de fiéis, resultando em reuniões com maior público, o que é fundamental para o acolhimento, aproximação, sensações presentes, contato social e a possibilidade de troca de energia. “A umbanda não é só colocar o branco ou dizer que é, mas o sentir. E nos faz de alguma forma buscarmos sermos melhores todos os dias e nos lapidarmos, com um grau de importância extremamente alto. Pois é nosso reduto, porto seguro, nosso chão, nossa religação, conexão, tudo aquilo que possa oferecer nossa evolução, amparo e ajuda a nossa comunidade e aos consulentes que confiam em nós”, conclui o dirigente do templo Umbanda, Luís Otávio Mongelli.