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Opinião 105

Furta-Cor

Ser mãe é habitar um paradoxo. É sentir amor e cansaço, alegria e solidão, plenitude e vazio – tudo ao mesmo tempo

Ser mãe é habitar um paradoxo. É sentir amor e cansaço, alegria e solidão, plenitude e vazio – tudo ao mesmo tempo. A furta-cor, que muda conforme a luz que incide sobre ela, é a metáfora para a maternidade possível: mutável, complexa e difícil de ser definida. No entanto, a sociedade insiste em pintá-la com cores pastéis e reduzir a experiência da maternidade a sorrisos serenos e bebês adormecidos. Essa romantização esconde dados importantes: 25% das mães de recém-nascidos no Brasil são diagnosticadas com o transtorno, segundo a Fiocruz.

Falar sobre saúde mental materna ainda é um tabu, já que esbarra nas idealizações de que a maternidade é um instinto, inato e sempre feliz. Essa romantização não é somente mentirosa, mas também perigosa. Quando uma mãe não sente esse “amor instantâneo” pelo bebê ou é consumida pelo cansaço, ela pode se ver diante de uma dupla dor: a do sofrimento e a da culpa por não estar correspondendo às expectativas de mãe realizada e satisfeita.

Os dados escancaram uma realidade inadmissível: milhares de mães são deixadas à própria sorte em seus momentos de vulnerabilidade, perdidas em um labirinto de emoções com as quais elas não conseguem, na maioria das vezes, lidar sozinhas.

O acompanhamento psicológico no pré-natal e no puerpério não deveria ser considerado um luxo para poucas. É urgente e necessita atenção permanente, com profissionais de obstetrícia treinados para identificar sinais de depressão e ansiedade. Mas não basta esperar que isso aconteça. Precisamos conhecer, entender, cobrar e exigir a saúde mental materna como questão de saúde pública.


Ninguém prepara a mulher para o terremoto físico e emocional que a maternidade traz. Em poucos meses, o corpo se transforma, os hormônios viram de ponta-cabeça e a mente precisa se reinventar. São mudanças que deixam marcas – nas cicatrizes, no cansaço, na nova forma de enxergar o mundo. Como pode ser considerado tão habitual ou comum quando nada mais é como antes? A maternidade não é só cuidar de um bebê, é sobreviver à própria transformação. Ninguém deveria fazer isso sozinho.


Hormônios como progesterona e estrogênio atingem níveis extraordinários durante a gravidez, influenciando desde o humor até a estrutura cerebral – fenômeno conhecido como “maternidade do cérebro”, com alterações em áreas responsáveis pelo cuidado e pela empatia, por exemplo. No pós-parto, a abrupta queda hormonal, combinada com a privação de sono e as novas demandas, criam um terreno fértil para a ansiedade e a depressão. Essas mudanças não são escolhas, mas processos biológicos que exigem compreensão e suporte. Reconhecer essa complexidade é fundamental para substituir a romantização por acolhimento.

As redes de apoio também podem ser um outro tipo de antídoto para a solidão materna – não tanto pela companhia e pessoas ao redor -, mas pela possibilidade de ajuda e amparo. Uma mãe que engravidou cedo, sentiu muita dor no parto e não teve nenhuma ajuda do marido ou de outras pessoas, ao invés de sentir o clique de amor que muitos falam, pode sentir desespero e arrependimento. “Levei quase três anos para amá-lo, tive que fazer terapia e precisei de muita ajuda para conseguir sentir algo”. E esse não é um relato isolado.


Na metáfora óptica do furta-cor, as nuances da saúde maternal nos convidam a enxergar a maternidade de forma realista, dentro das possibilidades de cada mulher. Para isso, foi criada a Campanha Maio Furta-Cor, que propõe normalizar as mães que choram, duvidam, perdem a paciência e sentem saudades da vida antes dos filhos.


A psicóloga Rayane Lima, especialista na saúde mental perinatal e representante da campanha em Campo Grande/MS, estima que 70% das mães ocultam ou minimizam a própria saúde mental, o que dificulta ainda mais o diagnóstico.


Sem compreensão, apoio e tratamento, o peso da maternidade pode ter um impacto devastador nas mulheres. A maternidade precisa ser um ato coletivo. Já dizia o provérbio africano: “para criar uma criança é preciso uma aldeia inteira”.