Um amor que não se prende a gerações e une pessoas de todas as idades na torcida pela seleção brasileira
Texto: Enzo Pereira Cardoso | Mateus Adriano | Reuel Oliveira

“Em 58 foi Pelé, Em 62 foi o Mané, Em 70 o esquadrão, Primeiro a ser tricampeão. Oh, 94 Romário, 2002 Fenômeno, Primeiro tetracampeão, Único penta é Brasilzão!”.
Essa é uma das músicas criadas na Copa do Mundo de 2018, que mostra a soberania da seleção brasileira no esporte e o motivo de sermos chamados de “país do futebol”. De quatro em quatro anos as pessoas enfeitam suas casas com bandeiras, pintando os meios fios de verde e amarelo, se reúnem e transformam os dias de jogo em uma grande festa. Os anos de Copa são muito especiais para a família de Ketlen Gomes, 28. Ela nasceu em 1994, ano em que a seleção foi tetracampeã, nos Estados Unidos. Seu filho Calebe, 4, veio ao mundo em 2018, ano de uma Copa que o torcedor brasileiro não gosta muito de recordar. Para 2022, a expectativa da mãe é poder festejar a vitória da seleção com o pequeno.
Ketlen é jornalista, formada na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Nascida no Rio de Janeiro, veio à Campo Grande aos 12 anos. Ela se apaixonou logo cedo pelo futebol. “Acho que o futebol nasceu comigo, meus pais amam a copa, em casa sempre vestimos a camisa, enfeitamos a casa, recebemos amigos, é sempre uma festa. E isso desde criança, então foi crescendo comigo”, lembra. A carioca espera que seu filho siga com essa tradição.
Se engana quem pensa que será a primeira Copa do Mundo que Calebe irá acompanhar. Em 2019 ele já acompanhou, com a mãe, o Mundial Feminino realizado na França. Ketlen é apaixonada por futebol desde pequena, quando percebia na sua família o forte sentimento pelo esporte, e incentiva seu filho a trilhar esse caminho. “Quando ele era bebê, começou a última Copa, e nós assistimos todos os jogos. Ele também viu jogos da última Copa do Mundo feminina, levei-o um dia no bar, pra assistir com as meninas. Ele vai aos meus jogos pela atlética, desde a barriga. Eu amo esse mundo esportivo, e o Calebe vai me acompanhando e adora”, conta a jornalista sorridente.
A família de Ketlen exemplifica como a Copa do Mundo é um evento que transita entre gerações. Assim como a família Marcondes, que o avô Eonio, 57, o pai, Kauê, 37, e o neto Renan, 12, são um modelo do futebol hereditário, a paixão pelo esporte que vai passando de geração em geração. E esse gosto da família pelo futebol se expressa na torcida pelo Flamengo, time dos três. O discurso de Renan e Kauê exemplifica essa tradição. “Meu pai me ensinou a assistir futebol, desde quando eu era bem pequeno”, ressalta Kauê. Isso faz com que a chama jamais se apague.
No Brasil, em especial, essa tradição já foi muito maior, mas hoje vem perdendo força em alguns lares. Dirceu dos Santos Silva, professor de Educação Física na UFMS, percebe essa diminuição no interesse pela seleção, mas não vê um motivo em específico para isso. “Você via uma movimentação de pintar as ruas antes da Copa do Mundo, e atualmente não tem mais. Acho que tem perdido essas tradições sim. Agora eu não sei exatamente o motivo, se é falta de incentivos, se é formato de família, de estrutura de cidade mais violenta”, explica. Ele também comenta que sua família não tem esse costume de se reunir para torcer.
A baixa competitividade da seleção brasileira é um ponto que influencia na perda da tradição, por exemplo. A perspectiva do Kauê e da Ketlen é de quem na infância viu o Brasil chegar a três finais seguidas, em 1994,1998 e 2002, e ganhar dois títulos, ou seja, se acostumaram a ver uma seleção forte e dominante. Já a geração do Renan, não teve a mesma sorte. O mais comum para eles são decepções, a maior de todas sendo a derrota de 7×1 contra a Alemanha na Copa do Mundo de 2014, sediada justamente no Brasil, o que só piorou a situação. Logo o interesse caiu consideravelmente, pois os resultados ruins dentro de campo afastam a torcida.
Além dos fatores citados por Dirceu, alguns pontos podem ajudar a entender a perda de interesse de uma parcela da população na seleção brasileira. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) talvez seja o ponto principal. A entidade deixa a desejar para grande parte dos torcedores. Seja na sua atuação com a seleção, ou com os clubes nacionais. Nos últimos anos a CBF, que administra o futebol no Brasil, foi alvo de acusações de corrupção e assédio, além de trocar cinco vezes de presidente, por motivos diversos. Rogério Caboclo, o último a deixar o cargo, saiu sob acusação de assédio moral a um diretor e sexual a duas funcionárias da instituição, sendo afastado por 21 meses, até 2023.
“Os escândalos na CBF só contribuem para a gente ficar descrente nos resultados existentes no futebol, onde você vê uma grande quantidade de roubalheira, desvios, falcatruas e você fica descrente daquilo que está acontecendo”, afirma Eonio Marcondes, que apesar das críticas estará na torcida pela seleção canarinho junto com seu filho Kauê e seu neto Renan. Kauê já não tem a mesma animação. “Hoje em dia não tenho mais o mesmo ânimo para acompanhar. Mas, se não for atrapalhar minha rotina, pretendo acompanhar pelo menos as seleções principais”.
Outro fator que acaba afastando alguns torcedores da seleção é a falta de jogos no próprio país. O Brasil Global Tour, – uma série de jogos da seleção em um tour mundial – contrato assinado pela CBF para divulgar as marcas para o exterior por meio de amistosos, fez com que a Amarelinha disputasse 52 amistosos entre 2012 e 2019. Desses 52 jogos, apenas nove foram realizados no Brasil. O fato desses amistosos serem contra equipes menos tradicionais também influencia no desinteresse. Foram apenas nove partidas contra equipes que estavam entre as 10 primeiras no Ranking da FIFA. Desses jogos, somente duas sediadas em solo brasileiro. Os dados são do braço da Rec.Sport.Soccer Statistics Foundation – a RSSSF Brasil. É uma junção de fatores que implica em menor adesão ao time que representa o país.

O Sequestro da Camisa Amarela
A camisa diversas vezes na história teve uma ligação forte com a política. Na época da ditadura militar, em 1970, a seleção foi tricampeã mundial e o governo reforçou o fato para ganhar aprovação popular, como uma forma de pão e circo. O ex-presidente Fernando Collor tentou se utilizar do mesmo artifício, quando sua gestão foi ameaçada de impeachment. Ele discursou pedindo ao povo para sair em seu apoio vestindo uma peça de roupa com as cores da bandeira, porém o que houve foi uma manifestação contra o Collor, em que os manifestantes saíram de preto, para evidenciarem a discordância a ele.
Desde 2013, a camisa tem sido associada a grupos políticos. A direita conservadora tem feito uso da camisa como símbolo do patriotismo. O movimento passe livre, contra o aumento do passe de ônibus, e as manifestações pró-impeachment, em 2015, foram o estopim para o sequestro desse símbolo brasileiro. Em 2018, por exemplo, a Nike afirmou ter vendido duas vezes mais camisas do que em 2014, ano de Copa no Brasil. Neste ano, o simbolismo da vestimenta foi utilizado pela campanha à presidência, com o pretexto de resgate das origens patrióticas, supostamente perdidas. Tal fato afetou, inclusive, a Copa da época, dificultando a relação do uniforme com a paixão pelo futebol. Esse efeito separatista tem influência até os dias de hoje.
Recentemente, o atacante da seleção brasileira, Richarlison, fez críticas ao uso da camisa para fins políticos. “Hoje em dia, o pessoal leva muito [a camisa]para o lado político. Isso faz a gente perder a identidade da camisa e da bandeira amarela. Acho importante que eu como jogador, torcedor e brasileiro, tente levar essa identificação para todo o mundo. É importante reconhecer que a gente é brasileiro, tem sangue brasileiro, e levar isso para o mundo”, comentou o camisa 9, em Portugal, após partida da Liga dos Campeões, em 13 de setembro, pelo Tottenham, seu clube na Inglaterra.
Dirceu concorda com o jogador. “Então sim, tem essa associação atual do uso da camisa da seleção principalmente relacionado com a questão das corrupções da CBF […] Então eu acho que todas essas problemáticas que ocorrem no esporte afastam sim o torcedor da seleção brasileira”, analisa o professor.



Ketlen e Kauê partem de pontos de vista diferentes sobre o tema. Enquanto a mãe de Calebe afirma que pretende comprar o uniforme azul para seu filho, o pai de Renan é contrário à associação da camisa com a política, pois o amarelo está na história da seleção. “A camisa amarela está associada a bandeira, não vejo como manifestação política o uso da camisa amarela”, afirma. Quando perguntado se compraria a amarelinha para seu filho, foi enfático. “Sim, com certeza.”
A juventude retomando a tradição
Embora parte da população tenha perdido interesse na seleção brasileira, ainda é possível encontrar jovens que mantêm o sentimento pela Canarinho. Nos amistosos de preparação para o mundial, bares ficaram repletos de amigos reunidos para torcer para o Brasil. Em redes sociais, como o Twitter, é nítida a empolgação para a Copa do Mundo. Para essa geração é a chance de ver o primeiro grande título.
Davi Pires, 16, é um desses jovens que não esconde a expectativa pelo torneio. “Eu estou ansioso porque, assim, eu sou novo, então eu nunca vi o Brasil ser campeão, igual meu pai. Então, toda vez é aquela expectativa de ganhar, mas dessa vez ainda mais.(janela) Sinto que a nossa seleção é forte e pode conquistar o título. Eu espero muito que ganhe”, relata. A união dos torcedores de diversos clubes graças a seleção brasileira é o que encanta Davi às vésperas da Copa do Mundo. Essa união ocorre por fatores como o fanatismo pelo futebol e a idolatria de jogadores como Neymar, Richarlison, entre outros. A copa é um importante evento de integração social. Além dos jogos, pessoas de todas as idades se reúnem para trocar figurinhas, por exemplo. O Álbum da Copa é sempre uma febre.
Vinicius Junior e Lucas Paquetá também estão sempre se manifestando no Twitter e no Instagram. Essa relação dos craques com a juventude resulta em um importante processo de restabelecimento dos laços entre os brasileiros e a seleção nacional.
Se os jovens conseguem por conta própria essa união para a torcida, as crianças dependem de seus pais. Ao invés de bares, a festa delas acontece na casa de familiares. E no que depender de Ketlen, Calebe será mais um entre os torcedores da seleção. “Mostrei pro Calebe uns vídeos de Copa, para ele saber o que é, e ele disse que está animado. Vai torcer pelo Brasil”. Renan também depende de seus pais para se inserir na cultura de torcer em família para a seleção nacional. A inserção dos pequenos nesse mundo é o primeiro passo para a retomada da tradição.
No Catar, os jogadores esperam esse apoio, mesmo que tão distante, para dar alegria aos Davis, Renans e Calebes espalhados pelo Brasil.
COMENTÁRIO: O sonho é possível
Em 2022, a seleção pentacampeã da Copa do Mundo vai em busca do hexa nessa nova edição da competição. O tão sonhado sexto título, que parece ter escorregado das mãos dos brasileiros tantas e tantas vezes e por anos pareceu tão distante, agora está mais próxima do que nunca.
Apesar dos recentes escândalos na CBF e do sequestro político da camisa amarela da seleção, que mancham a imagem do futebol brasileiro, a Copa é um momento de integração, festas e comemoração. Esperamos que em 2022, com mais um título, o simbolismo e a tradição brasileira sejam recuperados.
O Brasil chega no Catar com a condição de favorito. Os adversários mais fortes como França, Inglaterra e Bélgica, passam por péssimos momentos, com lesões de importantes jogadores, trabalhos extremamente contestados de se seus técnicos o que planta dúvida na mente dos torcedores. Enquanto isso, Espanha, Holanda e Alemanha sofrem na reconstrução de seus times, e buscam o amadurecimento de seus jovens atletas, que podem um dia brilhar e levar suas seleções a brigar pelo título da competição. Por enquanto, procuram apenas se manter entre as principais potências.
Com bases nas fontes entrevistadas para a reportagem “futebol hereditário”, é notável uma animação maior por parte da torcida. Acreditamos que o elenco brasileiro atual influencia muito nisso. A convocação dos jogadores já é oficial: foram definidos os 26 atletas que irão representar a seleção. O poder defensivo é marcado por nomes como Alisson, Thiago Silva, Marquinhos e Casemiro, que dificilmente são superados, e formam uma muralha diante do gol brasileiro. O ataque por sua vez domina os adversários com seu futebol alegre e ousado, provenientes da juventude e do famoso “futebol arte”, com atacantes como Antony, Vinícius Júnior, Raphinha e Richarlison, que tem destaque nos seus respectivos times, seguidos pela liderança do principal jogador da seleção, e candidato a melhor do mundo, Neymar. Ele é a maior joia da última geração brasileira de jogadores e se tratando da sua possível despedida da competição, é uma motivação a mais para a conquista.
A confiança vai além do campo e chega nas arquibancadas, com um amor que é hereditário. A nova geração chega como uma chama de esperança que vai apoiar o time a buscar o único resultado que importa: ser hexa campeão.